Novo CPC e o Direito Civil - Evicção
Fonte:
Jornal Carta Forense.
José
Fernando Simão. Professor Associado do Departamento de Direito Civil da
Faculdade de Direito da USP. Livre-docente, Doutor e Mestre pela USP. Advogado
e consultor jurídico.
Demorei
para ler o projeto de Código de Processo Civil aprovado em 2014 pelo Congresso
Nacional e que, ainda, aguarda a sanção presidencial para se tornar lei.
Como
civilista que sou, tendo vivido a aprovação do Código Civil em 2002, penso que
a revogação de um Código por meio da aprovação de um novo é um momento
histórico na vida do país. É de se indagar se essas radicais mudanças, muitas
vezes com rupturas históricas, efetivamente são soluções melhores para o
sistema. A pergunta que se faz é: vale a pena trocar de Código?
Por
mais que leia e ouça os processualistas discorrerem a respeito da lei aprovada,
não me convenci que essa mudança, com seu enorme custo para o Brasil, tenha
sido efetivamente positiva.
E
pior, nem poderia utilizar o argumento do conformismo nesse momento, qual seja,
como agora é lei, nada mais pode ser feito. Temos uma lei aprovada e não
sancionada. Será que virá a ser lei? Já houve na História do Brasil um
Código Penal que foi revogado em plena vacatio
legis[1].
Contudo,
apesar dessa incerteza, de não se saber se haverá veto a um ou alguns
dispositivos, a ansiedade pós-moderna exige que se estude a lei aprovada. A lei
que me baseio foi-me enviada por Flávio Tartuce com uma ressalva: “os artigos
podem sofrer mudanças em sua numeração”.
Por
uma questão de boa-fé objetiva e dever de informar, faço a mesma ressalva.
Ainda, há de ressaltar que como primeiras reflexões, servirão para iniciar um
debate e não para sua conclusão.
Um
dos temas de intersecção entre o direito material e o processual é o da
evicção. Matéria da teoria geral dos contratos, evicção ocorre quando o
adquirente de determinada coisa a perde para seu real proprietário. É o chamado
vício de direito. Vem do termo latino ex vincere, ou seja, vencer. Verifica-se
evicção quando determinada pessoa adquire bem de alguém que não é seu real
proprietário. Exemplificamos. Se o comprador adquire um imóvel de quem achava
ser o dono, mas a matrícula do bem era falsa, o real proprietário pode
ingressar em juízo, reivindicando a propriedade para si e o alienante
responderá perante o comprador pela perda da coisa.
Em
termos legais, a matéria é tratada pelo Código Civil e que cuida de questão
processual é a disposta no artigo 456 que dispõe:
“Art.
456. Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente
notificará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando
e como lhe determinarem as leis do processo.
Parágrafo
único. Não atendendo o alienante à denunciação da lide, e sendo manifesta a
procedência da evicção, pode o adquirente deixar de oferecer contestação, ou
usar de recursos”.
Cabe,
agora, cotejarmos os dispositivos do atual CPC e do aprovado:
CPC
atual
|
CPC
aprovado
|
Art. 70.
A denunciação da lide é obrigatória:
I – ao
alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi
transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção
lhe resulta;
|
Art. 125. É admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das
partes:
I – ao
alienante imediato, no processo relativo à coisa cujo domínio foi transferido
ao denunciante, a fim de que possa exercer os direitos que da evicção lhe
resultam;
Parágrafo único.
O direito regressivo será exercido por ação autônoma quando a denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovida ou não for permitida |
Note-se
que, de início, a denunciação da lide não é mais obrigatória nos termos do CPC
aprovado. É verdade que grande parte da doutrina já afirmava que essa
obrigatoriedade não deveria ser considerada. Silvio Venosa afirma que cabe ao
réu efetivar a denunciação, mas, a partir daí, não se formam cadeias de lides
secundárias como “muitos juízes erradamente permitem. A lei, ao determinar a
intimação e não a citação do segundo denunciado, não o transforma
automaticamente em parte (vol. 2, 13ª edição, Atlas, 2013, p. 581).
A
questão se resolve com o novo CPC. O adjetivo “obrigatória” desaparece,
restando ao réu (evicto), optar pela denunciação para criar a lide secundária
quanto ao adquirente. E se o réu não optar pela denunciação, terá ação autônoma
de regresso (parágrafo único do art. 125 do novo CPC).
Como
se interpreta, então, o verbo “notificará” do art. 456 do Código Civil? Duas
possíveis soluções:
a)
“notificará” passa a ser letra morte da lei, pois o processo civil permite ação
de regresso autônoma, logo a notificação passa a ser desnecessária. No conflito
de normas, a lei especial se sobrepôs à geral.
b)
“notificará” continua a impor o dever de notificar, seja por meio judicial ou
extrajudicial, sem se criar lides secundárias sucessivas. E qual a sanção para
a desobediência do evicto? A perda do direito de cobrar do adquirente o que da
evicção resulta.
Essa
segunda corrente segue orientação já superada na vigência do CPC de 1973 e,
agora, fica ainda mais obsoleta. Já não era esse o entendimento do STJ:
DENUNCIAÇÃO
DA LIDE. AUSÊNCIA DE OBRIGATORIEDADE. Esta Corte tem entendimento assente no
sentido de que “direito que o evicto tem de recobrar o preço, que pagou pela
coisa evicta, independe, para ser exercitado, de ter ele denunciado a lide ao
alienante, na ação em que terceiro reivindicara a coisa” (REsp 255.639/SP, Rel.
Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, Terceira Turma, DJ de 11/06/2001) (AgRg no
Ag 917.314/PR, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em
15/12/2009, DJe 22/02/2010
A segunda
questão diz respeito à denunciação per
saltum, ou seja, aquela promovida pelo evicto, nos termos do art. 456 do
CC, contra “o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores”. Mas isso é tema
de nossa próxima Coluna.
[1].
O conhecido Projeto Nélson Hungria, 1963, que pretendia substituir o Código
Penal de 1940, devidamente revisado, foi promulgado pelo Decreto-Lei 1.004, de
21 de outubro de 1969, retificado pela Lei 6.016/1973. O Código Penal de 1969,
como ficou conhecido, teve sua vigência sucessivamente postergada, até final
revogação pela Lei 6.578/1978
Nenhum comentário:
Postar um comentário