ALTERAÇÕES
DO CÓDIGO CIVIL PELA LEI 13.146/2015 (ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA).
REPERCUSSÕES PARA O DIREITO DE
FAMÍLIA E CONFRONTAÇÕES COM O NOVO CPC. SEGUNDA PARTE.
Ainda
não em vigor, o Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei 13.146/2015 – tem
gerado grandes debates entre os civilistas, especialmente pelo fato de ter
almejado a plena inclusão civil de pessoas que eram tidas como absoluta e
relativamente incapazes no sistema anterior.
Percebemos,
pela leitura de textos publicados na internet, que duas correntes se formaram a
respeito da norma. A primeira – à qual estão filiados José Fernando Simão e
Vitor Kümpel – condena as modificações, pois a dignidade de tais pessoas
deveria ser resguardada por meio de sua proteção como vulneráveis (dignidade-vulnerabilidade). A segunda
vertente – liderada por Joyceane Bezerra, Paulo Lôbo, Nelson Rosenvald, Jones
Figueirêdo Alves, Rodrigo da Cunha Pereira e Pablo Stolze – aplaude a inovação,
pela tutela da dignidade-liberdade
das pessoas com deficiência, evidenciada pelos objetivos de sua inclusão.
Entre
uma ou outra visão, a priori, estamos
alinhados aos segundos juristas citados. A propósito, cabe lembrar que o
Estatuto da Pessoa com Deficiência regulamenta a Convenção de Nova York,
tratado de direitos humanos do qual o Brasil é signatário, e que gera efeitos como emenda constitucional (art.
5º, § 3º, da CF/1988 e Decreto 6.949/2009).
Nos termos do seu art. 1º, o propósito da Convenção "é promover,
proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e
promover o respeito pela sua dignidade inerente". Todavia, ressalte-se que somente o tempo e a
prática – a partir de janeiro de 2016 e não de dezembro de 2015, como constou
de nosso texto anterior publicado neste canal – poderão demonstrar se o melhor
caminho é mesmo a dignidade-liberdade,
ao invés da anterior dignidade-vulnerabilidade. Não se pode negar que talvez seja tarde
demais para se perceber o eventual engano...
Pois
bem, em matéria de interdição, consideráveis foram as mudanças engendradas pelo
Estatuto da Pessoa com Deficiência, estando presentes vários atropelamentos legislativos pelo Novo
CPC, em vigor a partir de março de 2016.
A
primeira alteração diz respeito, a saber, se ainda será cabível o processo de
interdição ou se viável juridicamente apenas uma demanda com nomeação de um
curador. Por certo é que a Lei 13.046/2015 altera o art. 1.768 do Código Civil,
deixando de mencionar que "a interdição será promovida"; e passando a
enunciar que "o processo que define os termos da curatela deve ser
promovido". O grande problema é que esse dispositivo material é revogado
expressamente pelo art. 1.072, inciso II, do CPC/2015. Sendo assim, pelo menos
aparentemente, ficará em vigor por pouco tempo, entre janeiro e março de 2016,
quando o Estatuto Processual passar a ter vigência. Pensamos que será
necessária uma nova norma, que faça com que o novo dispositivo volte a vigorar, afastando-se esse primeiro atropelamento legislativo.
De
qualquer modo, só a edição de uma terceira norma apontando qual das duas deve
prevalecer não basta, pois o Novo CPC é inteiramente estruturado no processo de
interdição, como se nota do tratamento constante entre os seus arts. 747 a 758.
Sendo assim, parece-nos que será imperiosa uma reforma considerável do CPC/2015,
deixando-se de lado a antiga possibilidade da interdição. A propósito da
superação desse tradicional modelo, pontua Paulo Lôbo que "não há que se
falar mais de 'interdição', que, em nosso direito, sempre teve por finalidade
vedar o exercício, pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, de todos
os atos da vida civil, impondo-se a mediação de seu curador. Cuidar-se-á,
apenas, de curatela específica, para determinados atos".
Constata-se
que entre os motivos de revogação de dispositivos do Código Civil que tratam da
curatela pelo Novo CPC está o fim de concentrar os legitimados para a ação de
interdição no Estatuto Processual. Ademais, a expressão deve, constante do então art. 1.768 do CC/2002, era criticada por ser peremptória, tendo sido substituída pelo
termo pode, pelo Novo CPC. Conforme o art. 747 do CPC/2015, que supostamente unificou
o tratamento do tema, “a interdição pode ser promovida: I – pelo cônjuge ou companheiro; II – pelos parentes ou tutores; III – pelo
representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando; IV – pelo
Ministério Público. Parágrafo único. A legitimidade deverá ser comprovada por
documentação que acompanhe a petição inicial”. Repise-se que essa é a norma que
irá prevalecer a partir de março de 2016, perdendo vigência, aparentemente, o
preceito incluído pelo Estatuto das Pessoas com Deficiência, que estabelece também
a legitimidade ao próprio sujeito (autointerdição).
O
mesmo deve ser dito em relação ao art. 1.769 do Código Civil, que passou a
prever, com a norma de julho de 2015, que o Ministério Público somente
promoverá o processo que define os termos da curatela: a) nos casos de deficiência mental ou intelectual; b) se não existir ou não promover a
interdição alguma das pessoas designadas nos incisos I e II do artigo 1.768; e c) se, existindo, forem incapazes as
pessoas mencionadas no inciso antecedente. Mais uma vez, o Novo Código de
Processo Civil revoga esse preceito (art. 1.072, inciso II). Aperfeiçoando a
redação do art. 1.178 do CPC/1973, o art. 748 do Novo Codex passa a
estabelecer que o Ministério Público só promoverá interdição em caso de doença
mental grave: a) se as pessoas designadas nos incisos I, II e III do
art. 747 não existirem ou não promoverem a interdição; e b) se,
existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas nos incisos I e II do art.
747. O que se percebe é que a legitimidade do MP é somente subsidiária e
extraordinária,
funcionando como substituto processual, seja por uma ou por outra norma. De
toda sorte, o texto alterado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência é mais
amplo, ao mencionar a sua legitimidade em caso de deficiência mental ou
intelectual, o que não consta do Novo CPC.
O
art. 1.771 do Código Civil também foi alterado pela Lei 13.146/2015. O diploma
previa anteriormente que "antes de pronunciar-se acerca da interdição, o
juiz, assistido por especialistas, examinará pessoalmente o arguido de
incapacidade". Agora, passou a expressar que "antes de se pronunciar
acerca dos termos da curatela, o juiz, que deverá ser assistido por equipe
multidisciplinar, entrevistará pessoalmente o interditando”. Em suma,
substitui-se a menção aos especialistas por
equipe multidisciplinar, o que é mais consentâneo com as
atividades de orientação multicultural. Eis
outro dispositivo que também perderá vigência, por ter sido revogado
expressamente pelo Código de Processo Civil de 2015 (art. 1.072, inciso II).
Nos
termos do art. 751 da norma instrumental de 2015, que igualmente concentrou o
tratamento da situação e que prevalecerá ao final, o interditando será citado
para, em dia designado, comparecer perante o juiz, que o entrevistará
minuciosamente acerca de sua vida, negócios, bens, vontades, preferências e
laços familiares e afetivos e sobre o que mais lhe parecer necessário para
convencimento quanto à sua capacidade para praticar atos da vida civil, devendo
ser reduzidas a termo as perguntas e respostas. Não podendo o interditando
deslocar-se, o juiz o ouvirá no local onde estiver (§ 1º). A entrevista poderá
ser acompanhada por especialista (§ 2º). Durante a entrevista, é assegurado o
emprego de recursos tecnológicos capazes de permitir ou de auxiliar o
interditando a expressar suas vontades e preferências e a responder às
perguntas formuladas (§ 3º). A critério do juiz, poderá ser requisitada a
oitiva de parentes e de pessoas próximas (§ 4º do art. 751 do CPC/2015). Aqui,
o Estatuto Processual é mais minucioso quanto aos procedimentos, apesar de não
mencionar a equipe multidisciplinar, mas a atuação de especialista.
Mesmo
destino, de revogação, terá o novo art. 1.772 do Código Civil, in verbis: "O juiz determinará,
segundo as potencialidades da pessoa, os limites da curatela, circunscritos às
restrições constantes do art. 1.782, e indicará curador. Parágrafo único. Para
a escolha do curador, o juiz levará em conta a vontade e as preferências do
interditando, a ausência de conflito de interesses e de influência indevida, a
proporcionalidade e a adequação às circunstâncias da pessoa”. A principal
novidade constante pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência diz respeito à
inclusão do parágrafo único, que vem em boa hora, dando preferência à vontade
da pessoa. Espera-se, mais uma vez, que uma nova norma surja, para que tal
comando não perca eficácia, pois o texto do parágrafo único do diploma é
salutar.
Com
é notório, sempre se considerou que nos casos de interdição de deficientes
mentais, ébrios habituais, toxicômanos e pródigos, por ser a interdição
relativa, deveria o juiz determinar os limites da curatela, ou seja, da
curatela parcial. Essa era a regra retirada do art. 1.772 do CC/2002, em sua
redação original; também revogada pelo art. 1.072, inciso II, do CPC/2015.
Todavia, novamente, o objetivo da revogação foi apenas de concentrar o tema no
diploma instrumental, sendo esse o mesmo sentido pelo mesmo, aparentemente, do
art. 753, § 2º, do CPC/2015 ("O laudo pericial indicará especificadamente,
se for o caso, os atos para os quais haverá necessidade de curatela").
Todas
essas considerações e comparações revelam uma grande confusão legislativa, um
verdadeiro caos pelo atropelamento de leis sucessivas e sem
o devido cuidado dos seus elaboradores. Existem muitos outros problemas a ser
sanados, cabendo expor neste breve trabalho apenas alguns deles.
Como
se nota, o trabalho dos civilistas e processualistas – sem falar dos operadores e julgadores que lidam com os
casos práticos no seu cotidiano jurídico
– será grande e intenso nos próximos anos, com o fim de sanar todas
essas controvérsias e curar os feridos pelos atropelamentos da lei. Tudo está muito confuso, deixando-nos
perdidos.
Doutor em Direito Civil pela USP. Professor do
programa de mestrado e doutorado da FADISP – Faculdade Especializada em
Direito. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD – Escola Paulista de Direito,
sendo coordenador dos últimos. Professor da Rede LFG. Diretor nacional e
estadual do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado e
consultor jurídico em São Paulo.