segunda-feira, 30 de março de 2020

CONTRATOS DE FRANQUIA E COVID-19. ARTIGO DE ALINE TERRA E VYNICIUS GUIMARÃES.

Contratos de Franquia e COVID-19
 Aline de Miranda Valverde Terra[1]
Vynicius Pereira Guimarães[2]

A acelerada expansão da COVID-19 cria cenário de insegurança econômica e jurídica nos mais diversos setores do mercado. Os desafios ganham redobrada complexidade no setor do franchising, que, além de lidar com as incertezas que ora assombram os contratos de longa duração de uma forma geral, suscita uma série de questões que lhe são peculiares.
Com efeito, não apenas a pandemia em si, mas diversas medidas adotadas pelo Poder Público a fim de contê-la – no Rio de Janeiro, por exemplo, emblemáticas foram a suspensão, pelo prazo de 15 dias, das “atividades coletivas de cinema, teatro e afins” (Decreto 46.970, de 13 de março de 2020, art. 4, II), e a recomendação de “fechamento de ‘shopping center’, centro comercial e estabelecimentos congêneres” (Decreto 46.973, de 16 de março de 2020, art. 5º, IV) – podem impactar severamente a relação entre franqueado e franqueador, sobretudo naquilo que diz respeito ao pagamento das contraprestações pecuniárias pelo franqueado – mais especificamente da taxa de franquia, dos royalties e da taxa de publicidade – e, ainda, de eventuais aluguéis de ponto comercial que lhe seja sublocado pelo franqueador.
Como sabido, a taxa de franquia se refere à contrapartida inicial, geralmente estabelecida em valor fixo e paga de uma só vez, que remunera o franqueador pela assistência para implementação da franquia, pela transferência do know-how e pela cessão do uso da marca e sinais distintivos, além da cessão dos manuais de operação, do acesso aos projetos arquitetônicos e da assessoria na escolha do ponto comercial. Os royalties, por sua vez, traduzem a contraprestação periódica paga pelo franqueado a título de remuneração pela assistência técnica fornecida – nela incluída consultoria de campo e o treinamento de pessoal –, pela manutenção do uso da marca e por todos os benefícios que o pertencimento à rede de franchising lhe proporciona. A taxa de publicidade corresponde à contribuição do franqueado – paga, em geral, mensalmente, e estabelecida em percentual do faturamento ou em valor prefixado no contrato – voltada a cobrir as despesas do franqueador com a divulgação da rede de franquias.
A primeira questão a ser enfrentada no atual contexto fático diz respeito à possibilidade de redução da taxa de franquia, dos royalties e da taxa de publicidade. Para tanto, investiga-se, em linhas iniciais, a maneira pela qual a propagação da COVID-19 pode afetar o cumprimento dessas prestações pelo franqueado, partindo-se da premissa de que referido impacto é temporário – não se ignora, evidentemente, que a crise pode se estender para além do fim da pandemia ou da suspensão das restrições impostas pelo Poder Público, acometendo mais drasticamente certos ramos de negócio, o que deve ser levado em consideração para a solução da questão posta. Sublinhe-se, por oportuno, que não se pode desprezar, no exame a ser empreendido, o fato de o regime de franquia se operar a partir da lógica de rede, em que a alteração de uma específica relação contratual pode impactar em todo o sistema daquela particular rede de franquia. Há que se ter, portanto, redobrado comedimento na análise acerca da possibilidade de redução de referidas verbas em cada situação específica.
As dificuldades suscitadas pela atual conjuntura se tornam ainda mais robustas diante da silente Lei 13.966/2019, a Nova Lei das Franquias, que entrou em vigor no último dia 25 de março, mas não ofereceu qualquer disciplina que aponte alguma solução para os impactos sofridos em contextos extraordinários como o atual. Em rigor, a lei se ocupa, sobretudo, da Circular de Oferta de Franquia, e não dispõe sobre o conteúdo da relação negocial e tampouco define extensivamente os direitos e deveres dos contratantes. Diante da falta de regramento específico e da ausência de previsão contratual que aloque legitimamente a uma das partes os efeitos decorrentes da implementação do risco, impõe-se buscar a solução adequada a partir de interpretação sistemática do ordenamento jurídico.
No tocante à taxa de franquia, por corresponder à contraprestação pela implementação da unidade franqueada, pela transferência do know-how e pela cessão do uso da marca, não se verifica, ao menos a priori, o severo comprometimento de sua finalidade, já que o franqueador poderá, ainda que parcialmente, cumprir com seus deveres iniciais, mesmo que o Poder Público tenha impedido o exercício da atividade objeto do negócio, pelo que se entende devida na sua integralidade. Significa dizer que, caso já tenha sido paga, não parece haver justificativa para sua restituição, nem mesmo parcial, uma vez que ou bem as prestações do franqueador já terão sido executadas ou poderão ser paulatinamente realizadas conforme a situação vá se normalizando – considerando-se, como apontado, a premissa de um cenário de crise temporário. De outro lado, na hipótese de a quantia ainda não ter sido adimplida, afigura-se possível cogitar de renegociação da forma do pagamento: em vez de o valor ser pago de uma só vez, como sói acontecer ordinariamente, pode-se ajustar o seu parcelamento, a permitir ao franqueado pagar a taxa na justa medida do trabalho que puder ser realizado pelo franqueador na conjuntura atual. Em ambos os casos, contudo, poder-se-ia refletir, quiçá, sobre a possibilidade de prorrogação do contrato de franquia por prazo correspondente ao tempo em que o franqueado não pôde operar, ou sofreu rigorosa restrição em suas atividades, de modo que o valor pago a título de taxa de franquia contemple, de fato, todo o período pelo qual se havia ajustado a transferência do know-how e a cessão do uso da marca pelo franqueado.
Em relação aos royalties, a análise se torna mais complexa, e aqui, mais do que nunca, as consequências gravosas provocadas pelos recentes eventos deverão ser observadas à luz do programa contratual específico e do ramo de atuação da franquia. É dizer: franquia de supermercado, por exemplo, não sofre os impactos econômicos negativos diretos da COVID-19 na mesma medida que franquia de academia de ginástica, cuja atividade está severamente comprometida, seja em razão de ordem governamental determinando a redução do horário de funcionamento ou mesmo sua total suspensão das atividades, ou então de drástico cancelamento de matrículas em decorrência da recomendação de isolamento social.
Nessa direção, nos casos em que o franqueado já não puder explorar a franquia em sua total potencialidade, restará configurada a impossibilidade superveniente, inimputável, parcial e temporária. Nesse cenário, vislumbra-se a possibilidade, a depender sempre das circunstâncias do caso concreto, de redução do valor dos royalties proporcionalmente à deterioração de suas respectivas contraprestações  a marca já não será capaz de oferecer, temporariamente, todas as vantagens e benefícios econômicos de outrora, ou o próprio franqueador pode se ver obrigado a reduzir ou suspender a assistência técnica que lhe compete, por exemplo. Trata-se, em verdade, de solução consagrada pelo ordenamento brasileiro, como se verifica no tratamento dispensado à impossibilidade parcial superveniente no âmbito da disciplina geral das obrigações de dar coisa certa (art. 235, CC) assim como no campo do regramento específico do contrato de locação (art. 567, CC). Há de se aplicar, em definitivo, a mesma ratio à situação analisada, a fim de se manter a coerência do sistema, sejam os royalties estabelecidos em valor fixo ou mesmo em percentual sobre o faturamento. É verdade que, neste caso, a redução do faturamento já terá por consequência direta a redução do valor pago a título de royalties. Ainda assim, importante considerar que o próprio percentual foi estabelecido tomando por base certo estado de coisas – vale dizer, as potencialidades regulares da marca, por exemplo – que, uma vez alterado por fato inimputável a ambas as partes justificará sua redução à proporção das “deteriorações”, isto é, limitações impostas às contraprestações do franqueador remuneradas por referida verba.
No que tange à taxa de publicidade, tudo depende do objeto da franquia e da estratégia de marketing do franqueador. A princípio, não parece que a COVID-19 permita alguma alteração no seu pagamento, vez que ao franqueador ainda caberá promover as campanhas de marketing contratadas, com a possibilidade, inclusive, de se valer do cenário de crise para apostar em uma ou outra tática de venda e abordagem de seus produtos ou serviços. Na maior parte dos casos, não haverá razão para que, diante da temporária excepcionalidade, a rede de franquias “suma do mapa publicitário”, deixando de promover suas campanhas. A parcela será devida em benefício não apenas do franqueador, mas de toda a rede, que, espera-se, retornará suas atividades passada a crise. No entanto, nada impede que o objeto da franquia recomende, no atual panorama, alguma restrição das campanhas de marketing, a justificar a proporcional redução da taxa de publicidade originalmente pactuada.
Ainda, quanto aos aluguéis devidos pelo franqueado ao franqueador que subloca o ponto comercial, a questão pode encontrar solução no artigo 3º da nova Lei das Franquias, que, no inciso II de seu parágrafo único, admite a possibilidade de o valor do aluguel ser superior àquele pago pelo franqueador ao proprietário do imóvel, desde que “o valor pago a maior ao franqueador na sublocação não implique excessiva onerosidade ao franqueado, garantida a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro da sublocação na vigência do contrato de franquia”. Trata-se de cláusula de proteção do equilíbrio econômico-financeiro nos contratos de franquia, a permitir também a redução do valor pago a título de sublocação quando se revelar excessivamente oneroso para o franqueado.
Importa, ademais, recordar o já citado artigo 567 do Código Civil, segundo o qual “se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava”. De fato, como se observou em outra sede, “deterioraram-se”, sem culpa do franqueado, as faculdades a ele transferidas, já que não consegue, por ora, usar o imóvel sublocado “de acordo com toda a sua potencialidade, comercializando os produtos ou prestando os serviços da forma a que se propunha de modo a auferir os proveitos econômicos daí advindos” [3], a autorizá-lo a requerer a redução do valor do aluguel, mesmo que ainda não tenha transcorrido o prazo de 3 anos previsto no art. 19 da lei 8.245/91, tendo em vista a aplicação subsidiária do Código Civil às locações comerciais.
Frise-se, uma vez mais, que as implicações geradas pela pandemia ou pelo ato do príncipe não podem ser aferidas abstrata e aprioristicamente. A análise, como já alertado, dependerá das especificidades de cada caso concreto, devendo-se verificar a proporção em que a atividade da unidade franqueada foi atingida, em que momento o negócio foi celebrado, se e de que maneira o contrato reparte os riscos entre as partes, e se o contrato foi celebrado adesivamente.
A solução não é fácil, e torna-se ainda mais desafiadora em razão da lógica de rede em que se opera o sistema de franquias. Por isso mesmo, a revisão do contrato por meio da redução de royalties, da taxa de publicidade e do aluguel há de ser, sobretudo, proporcional à restrição das respectivas contraprestações, sob pena de gerar indesejável desequilíbrio em desfavor dos próprios franqueadores, a quem cabe fornecer suporte não apenas ao franqueado individualmente considerado, mas a toda a rede.
Seja como for, os caminhos propostos devem ser utilizados com parcimônia, apenas e tão somente diante do efetivo impacto negativo dos eventos adversos no âmbito do concreto negócio, e na exata medida de sua repercussão no contrato. Significa dizer que devem ser coibidos, a todo custo, comportamentos oportunistas e desleais de franqueados ou franqueadores que, já não satisfeitos com a relação que se vinha desenvolvendo, tentam se valer do momento crítico para rever o contrato e obter alguma vantagem ilegítima.
De todo modo, as circunstâncias apontam que o melhor caminho a seguir é o da negociação, das soluções consensuais pautadas na boa-fé, que devem ser buscadas não apenas entre o franqueador e um franqueado específico, mas, de maneira geral, entre todos os participantes da mesma rede franqueada, de modo a conciliar e otimizar os interesses em jogo. E é justamente o que afirma José Roberto Fernández, diretor executivo da Federação Ibero-americana de Franquias (FIAF): “Os franqueadores terão a vontade de negociar com seus franqueados as taxas de royalties. Este é um cenário esperado que terá um impacto econômico para franqueadores e franqueados e eles devem ser negociados durante a crise”.[4]
A crise vai passar. Ainda que os prejuízos se mostrem mais evidentes neste momento e se somem a cada dia notícias desencorajadoras, faz-se imperioso olhar para além das urgências imediatas, a fim de que se enxerguem soluções em prol da preservação das redes de franquias como unidades orgânicas, bem como do próprio sistema de franchising como atividade econômica.

[1] Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio. Sócia de Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica.
[2] Mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogado.
[3] TERRA, Aline de Miranda Valverde. Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Migalhas. 20 mar. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/322241/covid-19-e-os-contratos-de-locacao-em-shopping-center:

domingo, 29 de março de 2020

RESUMO. INFORMATIVO 666 DO STJ. MARÇO DE 2020

RESUMO. INFORMATIVO 666 DO STJ. 27 DE MARÇO DE 2020.
TERCEIRA TURMA
PROCESSO
REsp 1.683.419-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 20/02/2020, DJe 26/02/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Débito condominial. Imóvel que passa a pertencer apenas à ex-companheira que não figurou na ação de cobrança. Cumprimento de sentença. Penhora do bem. Possibilidade. Obrigação propter rem.
DESTAQUE
O imóvel gerador dos débitos condominiais pode ser objeto de penhora em cumprimento de sentença, ainda que somente o ex-companheiro tenha figurado no polo passivo da ação de conhecimento.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Segundo o entendimento do STJ, a obrigação de pagamento das despesas condominiais é de natureza propter rem, ou seja, é obrigação "própria da coisa", ou, ainda, assumida "por causa da coisa". Por isso, a pessoa do devedor se individualiza exclusivamente pela titularidade do direito real, desvinculada de qualquer manifestação da vontade do sujeito.
Havendo mais de um proprietário do imóvel, como ordinariamente ocorre entre cônjuges ou companheiros, a responsabilidade pelo adimplemento das cotas condominiais é solidária, o que, todavia, não implica exigência de litisconsórcio necessário entre os co-proprietários, podendo o condomínio demandar contra qualquer um deles ou contra todos em conjunto, conforme melhor lhe aprouver.
Na hipótese, à época da fase de conhecimento, o imóvel encontrava-se registrado em nome dos dois companheiros, mostrando-se válido e eficaz o acordo firmado por apenas um dos proprietários com o condomínio. No caso, não sendo efetuado o pagamento do débito, é viável a penhora do imóvel gerador das despesas, ainda que, nesse novo momento processual, esteja o bem registrado apenas em nome da ex-companheira, que não participou da fase de conhecimento.

PROCESSO
REsp 1.719.131-MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 11/02/2020, DJe 14/02/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO MARCÁRIO
TEMA
Violação ao direito de exclusividade da marca. Dever de indenizar. Atuação colaborativa de empresas. Responsabilidade solidária (art. 942 do CC/2002). Possibilidade.
DESTAQUE
A empresa que comercializa responde solidariamente com o fabricante de produtos contrafeitos pelos danos causados pelo uso indevido da marca.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A questão perpassa por assentar os limites da responsabilidade pela exposição à venda de produtos contrafeitos. Nesse cenário, é importante consignar que a contrafação é a reprodução, no todo ou em parte, de marca registrada, ou sua imitação, quando a imitação possa induzir confusão. Por meio dela, dilui-se a própria identidade do fabricante, criando-se na mente dos consumidores confusão sobre quem são os competidores e duplicando fornecedores para um mesmo produto (nesse sentido: REsp n. 1.032.014/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 4/6/2009).
A colocação de bens contrafeitos no mercado pode ser concretizada pelo próprio fabricante, ou por meio de terceiros, os quais se disponham a levar os bens contrafeitos à efetiva exposição à venda. Nesses últimos casos, é nítido que a participação do terceiro é determinante para a criação daquela confusão acerca dos competidores, dificultando sobremaneira a vinculação do produto ao seu fabricante, função precípua do instituto da marca.
Assim, a violação do instituto marcário acaba sendo realizada não apenas pela fabricação de produto similar e pela imitação da marca, mas também pelos atos subsequentes que efetivamente introduzem no mercado a oferta dos bens contrafeitos. Tem-se aí a prática de uma causalidade comum, em que ambas as empresas concorrem efetivamente para o abalo do direito exclusivo da exploração de marca registrada.
É verdade que não há na Lei n. 9.279/1996 a previsão de hipóteses de solidariedade do dever de reparar decorrente de atos de contrafação. Entretanto, à míngua de regra específica, não se encontra a responsabilidade dos causadores do dano num vácuo legislativo absoluto, devendo-se aplicar, ao caso dos autos, a norma geral prevista no art. 942 do CC/2002. Com efeito, disciplina o referido dispositivo do Código Civil que os co-autores de violações a direitos de outrem respondem solidariamente pela obrigação de indenizar.
Desse modo, até mesmo uma eventual distinção acerca da proporção da concorrência de cada uma das condutas para causação do dano indenizável não pode ser oposta à vítima da violação marcária. Ademais, diante de contexto fático em que é possível se discriminarem condutas lesivas de ambas as empresas, a existência de grupo econômico apenas incrementa o ônus probatório daquele que pretende obstar a comprovação do fato constitutivo do direito à prestação jurisdicional. No caso, as empresas recorrentes, integrantes do mesmo grupo empresarial, atuaram ativamente na colocação dos bens contrafeitos no mercado: enquanto uma fabrica os bens, a outra oferta-os à comercialização, sendo, portanto, responsáveis solidárias pelo dano causado pela diluição da marca.

PROCESSO
REsp 1.802.170-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 20/02/2020, DJe 26/02/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO PENAL
TEMA
Extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva do Estado. Independência das jurisdições cível e penal. Ação civil ex delicto. Interesse processual. Prescrição afastada.
DESTAQUE
A decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado na ação penal não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O propósito recursal consiste em decidir sobre o interesse processual para o ajuizamento de ação civil ex delicto, quando declara a extinção da punibilidade em virtude da prescrição da pretensão punitiva do Estado.
O ordenamento jurídico estabelece a relativa independência entre as jurisdições cível e penal, de tal modo que quem pretende ser ressarcido dos danos sofridos com a prática de um delito pode escolher, de duas, uma das opções: ajuizar a correspondente ação cível de indenização ou aguardar o desfecho da ação penal, para, então, liquidar ou executar o título judicial eventualmente constituído pela sentença penal condenatória transitada em julgado.
A decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato.
O art. 200 do CC/2002 dispõe que, quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva.
Logo, conquanto a ação de conhecimento possa ser ajuizada a partir do momento em que nasce a pretensão do ofendido, o prazo em curso da prescrição da pretensão reparatória se suspende no momento em que o mesmo fato é apurado na esfera criminal, passando ele a ter também a faculdade de liquidar ou executar eventual sentença penal condenatória transitada em julgado.
Assimconsiderando a suspensão do prazo prescricional desde o ajuizamento da ação penal até a sentença penal definitiva, não há falar em inércia e, por conseguinte, em prescrição da pretensão indenizatória.

PROCESSO
REsp 1.832.148-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 20/02/2020, DJe 26/02/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO MARCÁRIO
TEMA
Ação de nulidade de marca. Renúncia ao registro. Efeitos ex nunc. Perda do objeto da ação. Inocorrência.
DESTAQUE
A renúncia ao registro não enseja a perda do objeto da ação que veicula pretensão de declaração de nulidade da marca.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Trata-se de ação de obrigação de fazer c/c indenizatória objetivando, a decretação da nulidade do registro para a proteção da marca mista.
Ocorre que, posteriormente ao ajuizamento da ação, houve requerimento junto ao INPI de renúncia do registro marcário, o qual foi homologado pela autarquia federal e publicado na Revista da Propriedade Industrial (RPI), ensejando a extinção da marca mista correspondente.
Como é cediço, a renúncia total é uma das formas de extinção do registro marcário, conforme expressamente prevê a norma do art. 142, II, da Lei 9.279/96.
Os efeitos decorrentes da renúncia ao registro operam-se prospectivamente – efeitos ex nunc –, como ocorre, em regra, com qualquer direito disponível cuja aquisição se deu mediante a prática de ato administrativo.
Destaca-se que a renúncia do respectivo titular ao registro marcário não pode ser confundida, em seus efeitos, com a decretação de nulidade do ato administrativo que concedeu tal registro, a qual opera efeitos ex tunc, segundo regra expressa do art. 167 da LPI.
Isso porque, diferentemente do que ocorre em casos de nulidade, na renúncia não se discute a presença ou não de algum vício que macule a marca ab initio.
De fato, tratando-se de ato administrativo que vigeu e produziu efeitos no mundo jurídico, com presunção de legalidade, a situação em comento enseja a necessária proteção de eventuais direitos e obrigações gerados durante sua vigência.
Nesse contexto, portanto, é que não comporta acolhida a tese da perda superveniente do objeto da ação de nulidade do registro, uma vez que os efeitos decorrentes da eventual procedência do pedido de nulidade não são os mesmos daqueles advindos da renúncia ao registro correspondente.
Vale destacar, por fim, que o próprio art. 172 da LPI, ao tratar do processo administrativo de nulidade, estabelece que nem mesmo a extinção do registro marcário impede o prosseguimento deste, de modo que destoaria do razoável impedir a tramitação da ação judicial movida com idêntico objetivo

PROCESSO
REsp 1.758.800-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 18/02/2020, DJe 21/02/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Cumprimento de sentença. Intimação do devedor na pessoa do advogado. Despacho. Gravame às partes. Agravo de instrumento. Cabimento.
DESTAQUE
Cabe agravo de instrumento contra o pronunciamento judicial que, na fase de cumprimento de sentença, determinou a intimação do executado, na pessoa do advogado, para cumprir obrigação de fazer, sob pena de multa.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Há julgados desta Corte no sentido de que é "incabível agravo de instrumento contra o despacho que determina a citação dos devedores para pagamento ou oferta de bens à penhora" sob o fundamento de que tal pronunciamento judicial não contém qualquer carga decisória.
A Corte Especial consignou que a irrecorribilidade de um pronunciamento judicial advém não só da circunstância de se tratar formalmente de despacho, mas também do fato de que seu conteúdo não é apto a causar gravame às partes.
No entanto, verifica-se, no particular, que o comando dirigido ao executado é apto a causar-lhe prejuízo, diante da inobservância da necessidade de intimação pessoal do devedor para a incidência de multa pelo descumprimento de obrigação de fazer. Isso porque a ordem judicial, ainda que contrária ao entendimento do STJ, produz plenamente seus efeitos até que seja invalidada.
Com efeito, cabível o agravo de instrumento contra o despacho que, na fase de cumprimento de sentença, determina a intimação do executado, na pessoa do advogado, para cumprir obrigação de fazer, sob pena de multa, para que se determine a intimação pessoal para o cumprimento de tal obrigação.

QUARTA TURMA
PROCESSO
REsp 1.232.387-MG, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel. Acd. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, por maioria, julgado em 11/02/2020, DJe 28/02/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Adoção. Código Civil/1916. Registro civil de nascimento do adotado. Nomes dos ascendentes dos pais adotivos. Inclusão. Impossibilidade.
DESTAQUE
O registro civil de nascimento de pessoa adotada sob a égide do Código Civil/1916 não pode ser alterado para a inclusão dos nomes dos ascendentes dos pais adotivos.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a questão a analisar possibilidade de alteração do registro civil de nascimento para fazer constar o nome dos ascendentes dos pais adotivos. Vale ressaltar que a requerente não veicula nenhum pedido atinente à aplicação da norma jurídica vigente para a salvaguarda de quaisquer direitos patrimoniais ou sucessórios, tampouco pretende a equiparação do ato adotivo realizado no ano de 1962 à adoção estatutária.
Contudo, o ordenamento jurídico vigente ao tempo em que realizada a adoção simples, por meio de escritura pública (natureza contratual), previa que o parentesco resultante da adoção era meramente civil e limitava-se ao adotante e ao adotado, não se estendendo aos familiares daquele, uma vez que foram mantidos os vínculos do adotado com a sua família biológica.
Assim, inviável o acolhimento da reivindicação, dada a impossibilidade de modificação do ato jurídico perfeito e acabado da adoção levada a efeito em 1962, quando a lei previa a manutenção não apenas dos vínculos, mas também dos direitos e deveres decorrentes do parentesco natural, dada a expressa e clara disposição constante do artigo 378 do Código Civil/1916: "Os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio poder, que será transferido do pai natural para o adotivo."

PROCESSO
AgInt no AREsp 1.414.776-SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 11/02/2020, DJe 04/03/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR
TEMA
Serviços médico-hospitares. Falha na prestação de serviços. Operadora de plano de saúde. Hospital e plano de saúde pertencentes à mesma rede. Responsabilidade solidária.
DESTAQUE
A operadora de plano de saúde tem responsabilidade solidária por defeito na prestação de serviço médico, quando o presta por meio de hospital próprio e médicos contratados, ou por meio de médicos e hospitais credenciados.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Inicialmente, anote-se que se o contrato é fundado na prestação de serviços médicos e hospitalares próprios e/ou credenciados, no qual a operadora de plano de saúde mantém hospitais e emprega médicos, ou indica um rol de conveniados, não há como afastar sua responsabilidade solidária pela má prestação do serviço.
A operadora do plano de saúde, na condição de prestadora de serviço, responde perante o consumidor pelos defeitos em sua prestação, seja quando os presta por meio de hospital próprio e médicos contratados, seja quando por meio de médicos e hospitais credenciados, nos termos dos arts. 2º, 3º, 14 e 34 do Código de Defesa do Consumidor; art. 1.521, III, do Código Civil de 1916, e art. 932, III, do Código Civil de 2002. Essa responsabilidade é objetiva e solidária em relação ao consumidor, mas, na relação interna, respondem o hospital, o médico e a operadora do plano de saúde, nos limites de sua culpa (REsp 866.371/RS, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 27/03/2012, DJe de 20/08/2012).
No caso, a demora para a autorização da cirurgia indicada como urgente pela equipe médica do hospital, sem justificativa plausível, caracteriza defeito na prestação do serviço da operadora do plano de saúde, resultando na sua responsabilização.

PROCESSO
REsp 1.823.077-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 20/02/2020, DJe 03/03/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR
TEMA
Plano de saúde. Fertilização in vitro. Negativa de cobertura. Ausência de previsão contratual expressa. Recusa justificada.
DESTAQUE
Não é abusiva a negativa de custeio, pela operadora do plano de saúde, do tratamento de fertilização in vitro, quando não houver previsão contratual expressa.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a controvérsia a definir se a negativa de cobertura médica, pelo plano de saúde, de tratamento de fertilização in vitro configura-se abusiva, à luz do que dispõem os artigos 10-III e 35-C, III, da Lei n. 9.656/1998 (Lei dos planos de saúde), incluído pela Lei n. 11.935/2009.
Inicialmente, a inseminação artificial e a fertilização in vitro são técnicas distintas de fecundação. Nesse contexto, a Resolução Normativa n. 192 da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, no sentido de que "a inseminação artificial e o fornecimento de medicamentos de uso domiciliar, definidos nos incisos III e VI do art. 13 da Resolução Normativa - RN n. 167/2008, não são de cobertura obrigatória", está de acordo com o disposto nos incisos III e VI do art. 10 da Lei n. 9.656/1998.
Não há, pois, lógica em que o procedimento médico de inseminação artificial seja, por um lado, de cobertura facultativa - consoante a regra do art. 10, III, da lei de regência - e, por outro, a fertilização in vitro, que tem característica complexa e onerosa, tenha cobertura obrigatória.
A interpretação dos artigos supracitados deve ocorrer de maneira sistemática e teleológica, de modo a conferir exegese que garanta o equilíbrio atuarial do sistema de suplementação privada de assistência à saúde, não podendo as operadoras de plano de saúde serem obrigadas ao custeio de procedimento que são, segundo a lei de regência e a própria regulamentação da ANS, de natureza facultativa, salvo expressa previsão contratual.
A fertilização in vitro não possui cobertura obrigatória de modo que, na hipótese de ausência de previsão contratual expressa, é impositivo o afastamento do dever de custeio do mencionado tratamento pela operadora do plano de saúde.

sexta-feira, 27 de março de 2020

O CORONAVÍRUS E OS CONTRATOS. EXTINÇÃO, REVISÃO E CONSERVAÇÃO. BOA-FÉ, BOM SENSO E SOLIDARIEDADE.

O CORONAVÍRUS E OS CONTRATOS. EXTINÇÃO, REVISÃO E CONSERVAÇÃO. BOA-FÉ, BOM SENSO E SOLIDARIEDADE
Flávio Tartuce[1]
O novo coronavírus − tecnicamente chamado de Covid-19 − transformou-se em uma pandemia de repercussões inimagináveis para todos, atingindo em cheio os contratos e demais negócios jurídicos. Desde o surgimento do vírus no Brasil, muito já se produziu a respeito das repercussões contratuais, destacando-se, de imediato, os textos publicados nesta coluna Migalhas Contratuais, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Por certo é que não só nos momentos de aguda crise, mas também depois que ela passar, enormes são e serão os desafios a superar no enfrentamento das questões contratuais.
Junto-me, assim, a outros juristas que já enfrentaram o difícil tema, caso de Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Aline Valverde, Anderson Schreiber, Rodrigo da Guia, Eduardo Nunes e Carlos Eduardo Pianovski. Neste meu breve estudo, procurarei demonstrar, em termos gerais, os grandes dilemas que dizem respeito à extinção, revisão ou conservação das avenças. O texto está dividido em cinco partes, de forma bem didática.
Na primeira delas, serão expostas as ferramentas que o Direito Privado apresenta para a extinção ou revisão dos contratos. Na segunda, os instrumentos de conservação, de permanência do negociado, de respeito à palavra dada. Na terceira parte, apresentarei uma dúvida do Professor Anderson Schreiber, sobre duas possíveis soluções para a análise dos contratos em tempos de pandemia, dando a minha resposta. Na quarta, tomarei por base o artigo de Eduardo Nunes e Rodrigo da Guia, sobre a distinção de três hipóteses concretas que devem ser analisadas, dependendo da situação em que se situe cada negócio jurídico e os institutos aplicáveis para sua extinção ou revisão. Na quinta, trarei algumas sugestões para solucionar as novas dúvidas do cotidiano dos negócios em geral.
Pois bem, iniciando-se pelos instrumentos existentes no sistema para a revisão ou resolução contratual, elenco os seguintes, muitos deles já destacados em textos até aqui publicados, em rol meramente exemplificativo:
a) Alegação de caso fortuito − evento totalmente imprevisível − ou força maior − evento previsível, mas inevitável −, nos termos do art. 393 do Código Civil, para justificar o inadimplemento. Por esse comando, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes desses eventos se expressamente não se houver por eles responsabilizado, por força do contrato.
b) Resolução ou revisão do contrato com base na teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva, o que tem fundamento, nas relações civis, nos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil. Nunca é demais lembrar que a codificação privada exige, além da onerosidade excessiva, que o fato novo superveniente que causou o desequilíbrio seja, ao menos, imprevisível, afirmação que vale para a pandemia de Covid-19. Quanto aos contratos de consumo, a revisão ou resolução contratual dispensa a imprevisibilidade, bastando um fato novo que cause a quebra da base objetiva do negócio, da proporcionalidade das prestações (art. 6º, inc. V, da Lei n. 8.078/1990).
c) Utilização do instituto da impossibilidade da prestação, mesmo que sem culpa da parte da relação obrigacional, o que gera a sua resolução ou extinção, sem a imputação de perdas e danos, ou seja, sem que surja o dever de responder por eventuais prejuízos causados pela extinção do negócio. A impossibilidade tem por fundamento o art. 234 do Código Civil − no caso de obrigação de dar −, o seu art. 248 − em se tratando de obrigação de fazer − e o art. 250 da codificação privada − presente a obrigação de não fazer.
d) Argumento da exceção de contrato não cumprido, retirado do art. 476 do Código Civil, segundo o qual, em um contrato bilateral − com deveres proporcionais para ambos os pactuantes −, uma parte não pode exigir que a outra cumpra com a sua obrigação se não cumprir com a própria. Como efeito resolutivo, se ambas as partes não cumprirem com o que é devido, o negócio será reputado como extinto e resolvido, desde que isso seja alegado em uma demanda judicial, pois trata-se de uma cláusula resolutiva tácita (art. 474 do CC).
e) A exceção de contrato não cumprido também cabe no caso de iminência de descumprimento por uma das partes, como se retira do art. 477 do CC/2002, podendo-se exigir o cumprimento antecipado ou garantias prévias, sob pena de resolução. Desse último preceito retira-se a exceção de inseguridade, suspendendo-se o cumprimento do contrato até que as exigência contidas na norma sejam atendidas (Enunciado n. 438 da V Jornada de Direito Civil). Também é possível dele abstrair a tese da quebra antecipada do contrato ou inadimplemento antecipado, quando os fatos demonstrarem, de forma séria e real, que o descumprimento é iminente (Enunciado n. 437 da V Jornada de Direito Civil).
f) Alegação da frustração do fim da causa do contrato, como se retira do Enunciado n. 166 da III Jornada de Direito Civil, outra afirmação doutrinária interessante para os dias atuais: "a frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil". Apesar de o Código Civil Brasileiro não ter adotado expressamente a teoria da causa do contrato ou do negócio jurídico − como fez, por exemplo, o Código Civil Italiano (arts. 1.325, 1.343 a 1.345) −, tem-se associado a tese da frustração do fim com a função social do contrato, em sua eficácia interna, o que conta com o meu apoio doutrinário. Assim sendo, se, por um motivo estranho às partes, o contrato perder sua razão de ser, será reputado extinto, mais uma vez com a resolução sem perdas e danos.
Expostos os principais argumentos para a revisão ou resolução dos contratos, tem-se, por outra via, com vistas à sua manutenção, se não de acordo com o que foi inicialmente pactuado, em sentido muito próximo:
a) Boa-fé objetiva, o que tem fundamento nos arts. 113, 187 e 422 do Código Civil, sem prejuízo de outras regras específicas, como a norma relativa ao seguro (art. 765 do CC). Como é notório, a Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/2019) alterou o primeiro comando, inserindo dois novos parágrafos, valorizando sobremaneira o avençado e aumentando a força da autonomia privada. Assim, nos termos do novo § 1º do art. 113 do CC/2002, a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativos ao tipo de negócio; corresponder à boa-fé; for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e corresponder àquela que seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. Ademais, está previsto que as partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. A valorização da boa-fé também é retirada do art. 3º, incs. V e VIII, da Lei n. 13.874/2019 ("Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: (...) V − gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário; (...) VIII − ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública").
b) Força obrigatória das convenções e dos contratos, concretizado na máxima pacta sunt servanda, adotada expressamente por vários preceitos da Lei da Liberdade Econômica, com destaque para o seu art. 2º − ao valorizar a liberdade como princípio inerente à garantia no exercício de atividades econômicas − e para os últimos comandos transcritos.
c) Função Social do Contrato, novamente em sua eficácia interna, no sentido de conservar ao máximo os negócios pactuados e a autonomia privada (arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do CC). Nesse sentido, destaco o Enunciado n. 22, aprovado na I Jornada de Direito Civil: "a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas". Constata-se, portanto, que esse princípio pode ser utilizado, em suas diferentes expressões, tanto para a extinção como para a manutenção do contrato.
d) Função Social do Contrato, em sua eficácia externa, no sentido de que a solução contratual não pode trazer lesões a interesses difusos e coletivos, bem como prejuízos a terceiros, caso de consumidores. Dentro dessa ordem, o contrato não pode ofender valores ambientais ou atinentes à concorrência.
e) Princípio da Intervenção Mínima do Estado nas relações contratuais, constante do novo parágrafo único do art. 421 do Código Civil, inserido pela citada Lei da Liberdade Econômica: "nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual". Apesar de dúvida levantada por alguns civilistas quanto à existência ou não desse princípio nas relações contratuais − mormente diante de um Código Civil com várias normas de ordem pública e com caráter intervencionista −, é possível reconhecer a sua aplicação restrita aos contratos paritários − com ampla negociação do seu conteúdo −, foco principal da Lei n. 13.874/2019.
f) Incidência das regras relativas ao inadimplemento, seja absoluto ou relativo, caso dos arts. 389, 390, 391, 394 e 396 do Código Civil, sem prejuízo das consequências jurídicas dele advindas, constantes das normas seguintes, as relativas aos juros e à cláusula penal. Como consequência dos dispositivos que tratam do inadimplemento contratual, o art. 475 do Código Civil prevê que "a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". Sobre a exigência de cumprimento do contrato, constante do último preceito, o Código de Processo Civil consagra mecanismos de tutela específica para as obrigações de dar coisa certa, fazer e não fazer, como a fixação de multa diária ou astreintes (arts. 497, 498 e 536 do CPC/2015).
Expostos os argumentos que podem ser utilizados de forma contraposta nas demandas relativas à pandemia, todos eles muito plausíveis, cabe interrogar, como fez Anderson Schreiber em mensagem eletrônica, qual seria a melhor solução para os contratos em tempos de pandemia. Aplicar a generalização para a extinção ou revisão imediata, com a utilização dos primeiros mecanismos listados, liberando-se o devedor de suas obrigações em muitas das situações ou até como regra geral? Ou, por outra via, analisar o impacto específico para cada contrato, sendo possível também utilizar os mecanismos de conservação? A minha resposta, como quer o jurista citado, é pelo segundo caminho, buscando-se um equilíbrio entre as teses conflitantes.
A propósito, em artigo muito bem desenvolvido, Eduardo Nunes de Souza e Rodrigo da Guia procuram separar três grupos ou hipóteses de contratos, propondo soluções diversas com vistas à resolução ou revisão (Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322574/resolucao-contratual-nos-tempos-do-no.... Acesso em: 26 mar. 2020).
No primeiro grupo estão aqueles contratos em que houve a intervenção do Estado por atos normativos para fazer cessar as atividades, um fato do príncipe, como nos casos de cinemas, restaurantes, teatros e lojas em shopping centers ou fora deles. Para esses negócios, os autores sugerem a incidência da impossibilidade da prestação, com a suspensão de pagamentos ou eventual resolução no futuro, sem imputação de culpa a qualquer uma das partes.
No segundo grupo de contratos situam-se os negócios em que não há ato normativo de intervenção, mas está presente a falta de interesse da parte quanto ao seu conteúdo, o que se verifica para as compras de passagens áreas. Nesses, incide a tese da frustração do fim da causa, que, como visto, tem relação com a função social do contrato, resolvendo-se este sem a imputação de culpa a qualquer uma das partes. De todo modo, não se pode admitir, com essa solução, uma proteção exagerada de qualquer uma dos partes para que, por exemplo, os valores sejam devolvidos somente após um longo período de tempo, fora da esperada razoabilidade. Assim, um prazo de doze meses para a devolução dos valores relativos às passagens áreas me parece algo excessivo.
Por fim, no terceiro grupo temos os contratos em que houve um agravamento do sacrifício econômico para uma ou ambas as partes, caso de grandes contratos de fornecimento entre empresas, ou empréstimos bancários para o incremento do capital de giro. Aqui, devem ser subsumidos os preceitos relacionados à revisão ou mesmo resolução por onerosidade excessiva, caso dos arts. 317 e 478 do Código Civil. Não se pode esquecer que, diante do princípio da conservação e da correspondente função social do contrato, a extinção do contrato deve ser a última medida a ser tomada. Nesse contexto, cito o Enunciado n. 176 da III Jornada de Direito Civil: "em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual".
A divisão proposta pelos autores parece-me perfeita. Porém, não se pode perder de vista algumas ressalvas para a manutenção das avenças, para o salvamento dos contratos. Além da premissa de ser a revisão a regra e a resolução contratual a exceção, é sempre recomendável o atendimento aos deveres de informar e de transparência, relacionados à boa-fé objetiva. Assim, penso que as partes devem, sempre que possível e imediatamente, comunicar qual a sua situação econômica e se pretendem ou não cumprir com as suas obrigações futuras. No caso da impossibilidade de cumprimento, é saudável que a parte apresente já um plano de pagamento, com diluição das parcelas no futuro.
Nesse contexto, pode ser aplicado algo próximo à moratória legal, prevista no art. 916 do Código de Processo Civil. Conforme esse comando, em havendo execução de quantia certa, no prazo para embargos, reconhecendo o crédito do exequente e comprovando o depósito de trinta por cento do valor em execução, acrescido de custas e de honorários de advogado, o executado poderá requerer que lhe seja permitido pagar o restante em até seis parcelas mensais, acrescidas de correção monetária e de juros de um por cento ao mês. Esse plano de pagamento, previsto na própria lei processual, é interessante e pode ser aplicado extrajudicialmente. Isso não obsta, contudo, que os prazos e percentuais sejam alterados, a depender das circunstâncias fáticas e da própria natureza da pactuação. Também é possível sustentar − uma vez que a pandemia é um fato que gera consequências não imputáveis aos contratantes −, o afastamento da cobrança dos encargos e acessórios da dívida, como juros moratórios e multas contratuais.
Aprofundando, entendo ser interessante, por colaboração entre as partes, a instituição de "prazos de graça" ou de "prazos de favor", com a extensão para pagamento ou para cumprimento posterior das obrigações. Tal solução, a propósito, consta do art. 47 da Convenção de Viena sobre Venda Internacional de Mercadorias (CISG), que no Brasil foi internalizada por força do Decreto n. 8.327/2014. Vejamos o seu teor:
“(1) O comprador poderá conceder ao vendedor prazo suplementar razoável para o cumprimento de suas obrigações. (2) Salvo se tiver recebido a comunicação do vendedor de que não cumprirá suas obrigações no prazo fixado conforme o parágrafo anterior, o comprador não poderá exercer qualquer ação por descumprimento do contrato, durante o prazo suplementar. Todavia, o comprador não perderá, por este fato, o direito de exigir indenização das perdas e danos decorrentes do atraso no cumprimento do contrato”.
Trata-se do que se denomina como extensão de prazo (Nachfrist), cuja aplicação, nesses tempos de crise, pode ser ampliada para outros contratos e negócios jurídicos, além da compra e venda internacional de mercadorias. Nesse contexto, é viável a concessão de um prazo adicional ou período de carência de uma parte à outra, período em que não caberá alegar a resolução contratual por inadimplemento, o que tem o intuito de conservar a avença, diante do dever de colaboração retirado da boa-fé.
Sem prejuízo dessas soluções consensuais, seria interessante a edição de leis emergentes para a solução dos contratos privados, como normas que estabeleçam moratórias em determinados contratos? Essa é uma dúvida atroz, que já tem dividido os juristas. Cito, como tal proposição, o Projeto de Lei n. 884/2020, originário do Senado Federal, que pretende suspender imediatamente as cobranças de aluguéis em todas as locações, por noventa dias. A proposta também almeja que os valores de aluguéis devidos deverão ser assumidos pelo Governo Federal quando o proprietário do imóvel alugado possuir patrimônio em valor inferior a R$ 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil reais) declarado em seu imposto de renda. O grande problema de propostas como essa − além da comum crítica de uma intervenção excessiva do Estado nos contratos − é o de cair na antes citada generalização.
Assim, reitero a minha posição de que todos os contratos merecem uma análise pontual, dentro do esperado bom senso, como consequência imediata do princípio da boa-fé objetiva. As partes devem, assim, procurar soluções intermediárias e razoáveis, movidas pela equidade e pela boa razão. Os contratos relacionais ou cativos de longa duração, concretizados no tempo e com grande possibilidade de continuarem a se perpetuar no futuro, merecem prioridade de cumprimento, além daqueles negócios que envolvem conteúdo existencial, além do patrimônio, caso dos contratos de plano de saúde.
Chegou o momento de as partes contratuais no Brasil deixarem de se tratar como adversários e passarem a ser comportar como parceiros de verdade. Ao invés do confronto, é preciso agir com solidariedade. De nada adiantará uma disputa judicial por décadas, com contratos desfeitos e relações jurídicas extintas de forma definitiva. Bom senso, boa-fé e solidariedade. Essas ferramentas serão essenciais, no presente e no futuro, muitas vezes mais do que os remédios ou instrumentos jurídicos antes citados, sejam aqueles que geram a extinção ou a conservação dos negócios.

[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.