Contratos de Franquia e COVID-19
Aline de Miranda Valverde Terra[1]
Vynicius Pereira Guimarães[2]
A acelerada expansão da COVID-19 cria cenário de insegurança econômica e jurídica nos mais diversos setores do mercado. Os desafios ganham redobrada complexidade no setor do franchising, que, além de lidar com as incertezas que ora assombram os contratos de longa duração de uma forma geral, suscita uma série de questões que lhe são peculiares.
Com efeito, não apenas a pandemia em si, mas diversas medidas adotadas pelo Poder Público a fim de contê-la – no Rio de Janeiro, por exemplo, emblemáticas foram a suspensão, pelo prazo de 15 dias, das “atividades coletivas de cinema, teatro e afins” (Decreto 46.970, de 13 de março de 2020, art. 4, II), e a recomendação de “fechamento de ‘shopping center’, centro comercial e estabelecimentos congêneres” (Decreto 46.973, de 16 de março de 2020, art. 5º, IV) – podem impactar severamente a relação entre franqueado e franqueador, sobretudo naquilo que diz respeito ao pagamento das contraprestações pecuniárias pelo franqueado – mais especificamente da taxa de franquia, dos royalties e da taxa de publicidade – e, ainda, de eventuais aluguéis de ponto comercial que lhe seja sublocado pelo franqueador.
Como sabido, a taxa de franquia se refere à contrapartida inicial, geralmente estabelecida em valor fixo e paga de uma só vez, que remunera o franqueador pela assistência para implementação da franquia, pela transferência do know-how e pela cessão do uso da marca e sinais distintivos, além da cessão dos manuais de operação, do acesso aos projetos arquitetônicos e da assessoria na escolha do ponto comercial. Os royalties, por sua vez, traduzem a contraprestação periódica paga pelo franqueado a título de remuneração pela assistência técnica fornecida – nela incluída consultoria de campo e o treinamento de pessoal –, pela manutenção do uso da marca e por todos os benefícios que o pertencimento à rede de franchising lhe proporciona. A taxa de publicidade corresponde à contribuição do franqueado – paga, em geral, mensalmente, e estabelecida em percentual do faturamento ou em valor prefixado no contrato – voltada a cobrir as despesas do franqueador com a divulgação da rede de franquias.
A primeira questão a ser enfrentada no atual contexto fático diz respeito à possibilidade de redução da taxa de franquia, dos royalties e da taxa de publicidade. Para tanto, investiga-se, em linhas iniciais, a maneira pela qual a propagação da COVID-19 pode afetar o cumprimento dessas prestações pelo franqueado, partindo-se da premissa de que referido impacto é temporário – não se ignora, evidentemente, que a crise pode se estender para além do fim da pandemia ou da suspensão das restrições impostas pelo Poder Público, acometendo mais drasticamente certos ramos de negócio, o que deve ser levado em consideração para a solução da questão posta. Sublinhe-se, por oportuno, que não se pode desprezar, no exame a ser empreendido, o fato de o regime de franquia se operar a partir da lógica de rede, em que a alteração de uma específica relação contratual pode impactar em todo o sistema daquela particular rede de franquia. Há que se ter, portanto, redobrado comedimento na análise acerca da possibilidade de redução de referidas verbas em cada situação específica.
As dificuldades suscitadas pela atual conjuntura se tornam ainda mais robustas diante da silente Lei 13.966/2019, a Nova Lei das Franquias, que entrou em vigor no último dia 25 de março, mas não ofereceu qualquer disciplina que aponte alguma solução para os impactos sofridos em contextos extraordinários como o atual. Em rigor, a lei se ocupa, sobretudo, da Circular de Oferta de Franquia, e não dispõe sobre o conteúdo da relação negocial e tampouco define extensivamente os direitos e deveres dos contratantes. Diante da falta de regramento específico e da ausência de previsão contratual que aloque legitimamente a uma das partes os efeitos decorrentes da implementação do risco, impõe-se buscar a solução adequada a partir de interpretação sistemática do ordenamento jurídico.
No tocante à taxa de franquia, por corresponder à contraprestação pela implementação da unidade franqueada, pela transferência do know-how e pela cessão do uso da marca, não se verifica, ao menos a priori, o severo comprometimento de sua finalidade, já que o franqueador poderá, ainda que parcialmente, cumprir com seus deveres iniciais, mesmo que o Poder Público tenha impedido o exercício da atividade objeto do negócio, pelo que se entende devida na sua integralidade. Significa dizer que, caso já tenha sido paga, não parece haver justificativa para sua restituição, nem mesmo parcial, uma vez que ou bem as prestações do franqueador já terão sido executadas ou poderão ser paulatinamente realizadas conforme a situação vá se normalizando – considerando-se, como apontado, a premissa de um cenário de crise temporário. De outro lado, na hipótese de a quantia ainda não ter sido adimplida, afigura-se possível cogitar de renegociação da forma do pagamento: em vez de o valor ser pago de uma só vez, como sói acontecer ordinariamente, pode-se ajustar o seu parcelamento, a permitir ao franqueado pagar a taxa na justa medida do trabalho que puder ser realizado pelo franqueador na conjuntura atual. Em ambos os casos, contudo, poder-se-ia refletir, quiçá, sobre a possibilidade de prorrogação do contrato de franquia por prazo correspondente ao tempo em que o franqueado não pôde operar, ou sofreu rigorosa restrição em suas atividades, de modo que o valor pago a título de taxa de franquia contemple, de fato, todo o período pelo qual se havia ajustado a transferência do know-how e a cessão do uso da marca pelo franqueado.
Em relação aos royalties, a análise se torna mais complexa, e aqui, mais do que nunca, as consequências gravosas provocadas pelos recentes eventos deverão ser observadas à luz do programa contratual específico e do ramo de atuação da franquia. É dizer: franquia de supermercado, por exemplo, não sofre os impactos econômicos negativos diretos da COVID-19 na mesma medida que franquia de academia de ginástica, cuja atividade está severamente comprometida, seja em razão de ordem governamental determinando a redução do horário de funcionamento ou mesmo sua total suspensão das atividades, ou então de drástico cancelamento de matrículas em decorrência da recomendação de isolamento social.
Nessa direção, nos casos em que o franqueado já não puder explorar a franquia em sua total potencialidade, restará configurada a impossibilidade superveniente, inimputável, parcial e temporária. Nesse cenário, vislumbra-se a possibilidade, a depender sempre das circunstâncias do caso concreto, de redução do valor dos royalties proporcionalmente à deterioração de suas respectivas contraprestações – a marca já não será capaz de oferecer, temporariamente, todas as vantagens e benefícios econômicos de outrora, ou o próprio franqueador pode se ver obrigado a reduzir ou suspender a assistência técnica que lhe compete, por exemplo. Trata-se, em verdade, de solução consagrada pelo ordenamento brasileiro, como se verifica no tratamento dispensado à impossibilidade parcial superveniente no âmbito da disciplina geral das obrigações de dar coisa certa (art. 235, CC) assim como no campo do regramento específico do contrato de locação (art. 567, CC). Há de se aplicar, em definitivo, a mesma ratio à situação analisada, a fim de se manter a coerência do sistema, sejam os royalties estabelecidos em valor fixo ou mesmo em percentual sobre o faturamento. É verdade que, neste caso, a redução do faturamento já terá por consequência direta a redução do valor pago a título de royalties. Ainda assim, importante considerar que o próprio percentual foi estabelecido tomando por base certo estado de coisas – vale dizer, as potencialidades regulares da marca, por exemplo – que, uma vez alterado por fato inimputável a ambas as partes justificará sua redução à proporção das “deteriorações”, isto é, limitações impostas às contraprestações do franqueador remuneradas por referida verba.
No que tange à taxa de publicidade, tudo depende do objeto da franquia e da estratégia de marketing do franqueador. A princípio, não parece que a COVID-19 permita alguma alteração no seu pagamento, vez que ao franqueador ainda caberá promover as campanhas de marketing contratadas, com a possibilidade, inclusive, de se valer do cenário de crise para apostar em uma ou outra tática de venda e abordagem de seus produtos ou serviços. Na maior parte dos casos, não haverá razão para que, diante da temporária excepcionalidade, a rede de franquias “suma do mapa publicitário”, deixando de promover suas campanhas. A parcela será devida em benefício não apenas do franqueador, mas de toda a rede, que, espera-se, retornará suas atividades passada a crise. No entanto, nada impede que o objeto da franquia recomende, no atual panorama, alguma restrição das campanhas de marketing, a justificar a proporcional redução da taxa de publicidade originalmente pactuada.
Ainda, quanto aos aluguéis devidos pelo franqueado ao franqueador que subloca o ponto comercial, a questão pode encontrar solução no artigo 3º da nova Lei das Franquias, que, no inciso II de seu parágrafo único, admite a possibilidade de o valor do aluguel ser superior àquele pago pelo franqueador ao proprietário do imóvel, desde que “o valor pago a maior ao franqueador na sublocação não implique excessiva onerosidade ao franqueado, garantida a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro da sublocação na vigência do contrato de franquia”. Trata-se de cláusula de proteção do equilíbrio econômico-financeiro nos contratos de franquia, a permitir também a redução do valor pago a título de sublocação quando se revelar excessivamente oneroso para o franqueado.
Importa, ademais, recordar o já citado artigo 567 do Código Civil, segundo o qual “se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava”. De fato, como se observou em outra sede, “deterioraram-se”, sem culpa do franqueado, as faculdades a ele transferidas, já que não consegue, por ora, usar o imóvel sublocado “de acordo com toda a sua potencialidade, comercializando os produtos ou prestando os serviços da forma a que se propunha de modo a auferir os proveitos econômicos daí advindos” [3], a autorizá-lo a requerer a redução do valor do aluguel, mesmo que ainda não tenha transcorrido o prazo de 3 anos previsto no art. 19 da lei 8.245/91, tendo em vista a aplicação subsidiária do Código Civil às locações comerciais.
Frise-se, uma vez mais, que as implicações geradas pela pandemia ou pelo ato do príncipe não podem ser aferidas abstrata e aprioristicamente. A análise, como já alertado, dependerá das especificidades de cada caso concreto, devendo-se verificar a proporção em que a atividade da unidade franqueada foi atingida, em que momento o negócio foi celebrado, se e de que maneira o contrato reparte os riscos entre as partes, e se o contrato foi celebrado adesivamente.
A solução não é fácil, e torna-se ainda mais desafiadora em razão da lógica de rede em que se opera o sistema de franquias. Por isso mesmo, a revisão do contrato por meio da redução de royalties, da taxa de publicidade e do aluguel há de ser, sobretudo, proporcional à restrição das respectivas contraprestações, sob pena de gerar indesejável desequilíbrio em desfavor dos próprios franqueadores, a quem cabe fornecer suporte não apenas ao franqueado individualmente considerado, mas a toda a rede.
Seja como for, os caminhos propostos devem ser utilizados com parcimônia, apenas e tão somente diante do efetivo impacto negativo dos eventos adversos no âmbito do concreto negócio, e na exata medida de sua repercussão no contrato. Significa dizer que devem ser coibidos, a todo custo, comportamentos oportunistas e desleais de franqueados ou franqueadores que, já não satisfeitos com a relação que se vinha desenvolvendo, tentam se valer do momento crítico para rever o contrato e obter alguma vantagem ilegítima.
De todo modo, as circunstâncias apontam que o melhor caminho a seguir é o da negociação, das soluções consensuais pautadas na boa-fé, que devem ser buscadas não apenas entre o franqueador e um franqueado específico, mas, de maneira geral, entre todos os participantes da mesma rede franqueada, de modo a conciliar e otimizar os interesses em jogo. E é justamente o que afirma José Roberto Fernández, diretor executivo da Federação Ibero-americana de Franquias (FIAF): “Os franqueadores terão a vontade de negociar com seus franqueados as taxas de royalties. Este é um cenário esperado que terá um impacto econômico para franqueadores e franqueados e eles devem ser negociados durante a crise”.[4]
A crise vai passar. Ainda que os prejuízos se mostrem mais evidentes neste momento e se somem a cada dia notícias desencorajadoras, faz-se imperioso olhar para além das urgências imediatas, a fim de que se enxerguem soluções em prol da preservação das redes de franquias como unidades orgânicas, bem como do próprio sistema de franchising como atividade econômica.
[1] Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio. Sócia de Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica.
[2] Mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogado.
[3] TERRA, Aline de Miranda Valverde. Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Migalhas. 20 mar. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/322241/covid-19-e-os-contratos-de-locacao-em-shopping-center:
[4] Disponível em: https://www.abf.com.br/fiaf-divulga-estudo-sobre-efeitos-do-covid-19-no-setor-de-franquias/