sexta-feira, 26 de junho de 2020

UM NOVO TEMPO DA FAMÍLIA REVISITADA AO ULTRAPASSE DA PANDEMIA. ARTIGO DE JONES FIGUEIREDO ALVES

Um novo tempo da família revisitada ao ultrapasse da pandemia
 JONES FIGUEIRÊDO ALVES
Depois do fim da grande fome na China, que matou milhões de pessoas em 1961, a introdução da política do filho único para garantir famílias menores reduziu abissalmente a taxa de natalidade; ali se registrando, ano passado, a menor observada nos último setenta anos (10,48 nascimentos a cada mil pessoas) (01).
Quais políticas públicas terá o mundo para suas famílias, ao fim da grande pandemia, quando para além de mortes contadas, as desigualdades sociais serão mais acentuadas e todos terão, como pessoas em dignidade, a fome do absoluto?
Nesse caminho, diversas vertentes paralelas deverão ter novas trilhas. A família, ao depois, continuará a mesma consiga própria? O Estado continuará desprovido de políticas públicas suficientes a melhor provê-la? E como estarão os seus laços sociais com a economia, a protegê-la dos limites morais de mercado?
Impõe-se refletir com Immanuel Kant, na ponderação imediata:
“No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. O que tem um preço pode ser substituído por uma coisa equivalente; ao contrário, o que está acima de todo preço, não admitindo, portanto, equivalente, é o que tem uma dignidade” (02).
Essa dignidade inconsútil será a palavra-chave para o novo tempo da família revisitada ao ultrapasse da pandemia.
Os maiores interesses protetivos, despertados por uma nova tomada de consciência crítica social indicam que tudo haverá, necessariamente, de ser diferente, e por certo surgirão uma nova cultura pelo bem-estar familiar, uma nova segurança jurídica garantidora, uma nova economia do bem comum e novas leis de suporte. Vejamos:
(i) A Família na família

Este (re)começo terá seu ponto de partida na própria família, quando impende urgente uma reautoanálise de seus integrantes, acerca das readequações vivenciais ao pós-confinamento, de seus dissensos e dos seus interesses pessoais, à devida e exata medida onde devem preponderar as responsabilidades comuns.
1. O “princípio da responsabilidade comum familiar”, induvidosamente, presidirá as relações familiares, potencializando regras do Código Civil que apontam nessa diretiva, a exemplo dos artigos 1.511 (comunhão de vida), 1630 (responsabilidade do poder familiar) e 1.696 (direito e dever de alimentos recíprocos entre pais e filhos e extensivos a todos os ascendentes), e dos institutos jurídicos familistas, como os da paternidade responsável e o do cuidado essencial aos idosos.
Apoios mútuos na experiência de adversidades temporárias, a adaptação aos acontecimentos supervenientes por afetação dos resultados da pandemia, o reequilíbrio de recursos e das necessidades familiares, as intervenções morais e afetivas, contribuirão por este referido princípio, sob a égide da solidariedade, à formação da “família resiliente” ou da “família có-responsável”, que surgirá no novo tempo real.
Quando reconhecido que o coronavirus, durante o confinamento, resgatou a extrema relevância da família, como instituição, revela-se igualmente relevante que esse resgate não deva ser diluído ou prejudicado em tempo do ultrapasse da pandemia. Então, não apenas a melhor doutrina, mas o surgimento de videoclipes colaborativos e os de reflexões diárias em mídias sociais contribuirão, neste sentido, para que a família consolide o seu reencontro consigo mesma. Nesse viés, a indispensável contribuição dos psicólogos e psicanalistas de família e do papel indutor e proativo dos juristas integrantes do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
2. A “geração canguru” ou “geração boomerang” retoma, agora, a sua maior configuração. Nos ciclos da vida familiar, a “síndrome do ninho vazio” - SNV (Carter e McGoldrick) (03), em antecipação da maturidade, tem sido substituída pela chamada “adolescência estendida”, com maior convivência entre pais e filhos, quando cerca de 24% de jovens entre 25 e 34 anos continuam vivendo com seus pais. Precisamente: um a cada quatro pessoas, segundo os indicadores sociais do IBGE (2015). Resultado de mudanças comportamentais, protraindo os casamentos em favor das carreiras profissionais. (04)
A propósito, a adolescência, ganhou sobrevida ou novos limites cronológicos em seis anos, definidos pela Organização Mundial da Saúde com critério etário dos dez aos dezenove anos (adolescents) e pela Organização das Nações Unidas (ONU) entre 15 e 24 anos (youth). (05)
Assim, fenômeno da fase pandêmica, a “geração canguru” (designação dada pelo IBGE em 2013), foi o maior retorno dos filhos maiores aos seus berços de origem. Famílias singles constituídas por solteiros que moram sós se reunificaram às suas famílias nucleares, o ponto do início. No depois, essas configurações não deverão ser, abruptamente, desconstituídas, pelo simples regresso a um “status quo ante” de normalidade, até porque haverá uma “nova normalidade” a ser vivenciada.
Com veemência, prevalecerão as contingências econômicas de muitos que, afastados do mercado de trabalho, pelo aumento do desemprego ou nele prejudicados, pelos baixos ganhos, precisarão de um novo arrimo paterno para a recomposição de um equilíbrio financeiro desejável.
3. Alimentos parentais de circunstâncias episódicas poderão ensejar maiores demandas judiciais. Diferenciados dos alimentos derivados do dever de sustento (art. 1.566, IV, CC), ou dos alimentos educacionais (Súmula 358 do STJ) os alimentos solidários são admitidos pelo art. 1.696 do Código Civil, a qualquer tempo.
Neste sentido, pontifica a jurisprudência do STJ, referindo o ministro Marco Aurélio Bellize:
“A obrigação alimentar devida aos filhos transmuda-se do dever de sustento inerente ao poder familiar, com previsão legal no artigo 1566 o Código Civil (CC), para o dever de solidariedade resultante da relação de parentesco, que tem como causa jurídica o vínculo ascendente-descendente e previsão expressa no artigo 1696 do CC”.
De efeito, esse elo determinante não se extingue (embora possível seja relativizar a reciprocidade) tornando certo, pelo princípio da solidariedade, que a obrigação alimentar venha ser reclamada daquele que a possa prestar, em cenário do vir a ser necessário, como suporte de ajuda financeira.
Impende perceber uma dimensão sazonal de efeitos tributários, qual a da figura de dependentes temporários, o que reclama urgente tratamento legal na espécie.
(ii) A Família na saúde
1. Jean Tirole, Prêmio Nobel de Economia (2014), em sua obra “Economia do Bem Comum”, recém-lançada no país (abril/2020), trata do tema da medicina preventiva, mediante o reforço do emprego da saúde digital, “ainda uma prima pobre da medicina curativa”, como solução do acesso igualitário aos cuidados médicos. Ele antecipa os problemas que a epidemia evidenciou: “os cuidados médicos, hoje em perigo pela conjunção da inflação dos custos e da fragilidade de nossas finanças públicas” e indica as estratégias de superação (06)
2. Os nossos dados de saúde, à nível pessoal ou familiar, devem ser um patrimônio “real time” para diagnósticos precisos e mais acessíveis em tempo contínuo, cuja coleta poderá ser feita pelos próprios interessados, “através de sensores eventualmente ligados a smartphones”. Implica dizer, com fácil acesso e sem maiores ônus para a população.
3. Lado outro, o uso do sistema da telemedicina foi permitido pela Lei nº 13.989/20, de 15 de abril, no seu espectro mais abrangente (art. 3º), como “o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde” (07). Regulamentado para seus fins apenas emergenciais; “enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2)”, caso será de tornar-se a telemedicina uma prática permanente, por representar um indicador de maior eficiência em estratégia viável ao melhor acesso à saúde e em efetividade ao disposto pelo art. 196 da CF.
4. A saúde da família deve constituir política prioritária de governo, ao ultrapasse da pandemia, diante das notórias e mortais deficiências do sistema de saúde pública. Quando em abril passado, 50 mil pacientes “não tiveram acesso a diagnóstico e tratamento para o câncer”, cancelando-se cerca de 70% das cirurgias oncológicas, a indicar previsão de aumento de cerca de 20% das mortes, nesse estrito âmbito de enfermidade, de acordo com a SBCO (Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica) (08); impende lamentar quantas vidas foram perdidas somente por desígnios da fragilidade do sistema.
5. Enquanto isso, a sustentabilidade do direito à saúde continua, flagrantemente, sob os primeiros esforços dos seus próprios destinatários; não se entendendo, em efetividade ao direito fundamental, possam despesas pessoais médicas serem subtraídas das deduções do Imposto de Renda, como defendem alguns, em prejuízo do incentivo.
(iii) A Família na economia

1. As famílias de baixa renda que ganharam maior visibilidade social perante o Poder Público deverão merecer uma nova atenção legislativa. Os aportes financeiros durante a crise devem, em bom rigor, continuar permanentes como medidas impostergáveis através de mecanismos de inclusão social, v.g. a da Renda Mínima e de outros benefícios.
2. Avizinha-se uma nova moldura jurídica de proteção econômica à primeira infância, que servirá para melhor estruturar as famílias, que tenham filhos até seis anos de idade. Neste sentido, o país já possui, com a Lei nº 13.257/2016, de 08 de março, uma das leis mais avançadas do mundo sobre políticas públicas para crianças nessa faixa etária, conhecida como o Marco Legal da Primeira Infância.
Resta implementar os benefícios sociais pertinentes, com tratamento protetivo adequado, notadamente diante daqueles infantes agora colocados em orfandades impostas pela pandemia.
(iv) A Família na ancianidade
1. Os resultados da pandemia demonstram que a idade importa e que pessoas mais velhas estiveram mais presentes na conta da vitimização do vírus. Significa dizer, suscetíveis, pela idade avançada, a infecções destrutivas. O destaque situou-se na população idosa residente em instituições de longa permanência (asilos) onde a propagação do vírus tornou-se mais rápida e letal.
Nesse cenário, importa trabalhar cuidados mais intensivos e o primeiro deles será definir o perfil do idoso em face de suas próprias vulnerabilidades, a partir de suas respostas imunológicas distintas.
2. Lado outro, os créditos consignados lançados em contas de aposentadorias de pessoas idosas, designadamente a atender as deficiências financeiras dos filhos, são incentivados por uma publicidade opressiva e assumidos sob grave comprometimento à qualidade de vida dos devedores, titulares de proventos já insuficientes. Essa realidade subjacente, desafiada no pós-pandemia, exige uma nova postura legislativa acautelatória.
3. Anota-se a aprovação pelo Senado, quinta-feira última (18.06.20), do PLS nº 1.328/20, para a suspensão temporária de pagamentos das prestações das operações de créditos consignados em benefícios previdenciários, enquanto persistir à emergência de saúde pública em decorrência da COVID19. A suspensão será por cento e vinte (120) dias, ou seja, por quatro parcelas nos contratos das operações de créditos.
É bem a hipótese de presumir que esta próxima Lei terá a eficácia de suspender, a tempo imediato, pelas instituições financeiras, os descontos; tudo a impedir a burocracia em seus fins. A velhice desprotegida acredita nisso.
4. Com identidade de razões, tenha-se a dinâmica dos Conselhos Tutelares de Idosos (art. 7º, Lei nº 10.741/2003, E.I.) como órgãos permanentes e autônomos, não jurisdicionais, à exata similitude dos Conselhos Tutelares da Criança e do Adolescente, previstos no art. 131 da lei de regência (ECA).
(v) A Família “de lege ferenda”

1. Medidas de enfrentamento à violência doméstica tendem a ser editadas, no advento de leis específicas, a exemplo das oferecidas no PL nº 1.291/2020, próximo de sua sanção presidencial.
O novel trato normativo, conduzido pelo projeto, situa-se durante a emergência de saúde pública decorrente da pandemia do coronavirus quando, em bom rigor, as providencias ali contidas deveriam ser implementadas a tempo todo, emergencial ou não.
Bem é certo, como fundamenta o projeto, que essa legislação “se articula com a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 12.015/2009), a Lei de Atendimento obrigatório e Integral a pessoas em situação de violência (Lei 12.845/2013)”. E, também, com o Decreto nº 7.958/2013 que estabeleceu as diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual.
2. Cumpre consolidar um Estatuto Emergencial de Proteção da Família, pelos diversos projetos de lei ora em tramitação, com a presença indispensável do Congresso às percepções de um novo tempo real para a família brasileira. Designadamente, diante do que preconiza o art. 226 § 8º, da Constituição Federal/1988 quanto às obrigações de o Estado assegurar assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram.
É induvidoso que os tempos quarentenais colocam, ao seu ultrapasse, as pessoas e as famílias em inteira e singular prontidão. Logo, evidencia-se que a vida deverá ser vivida a partir das qualidades das famílias, revitalizadas pelos afetos e em proteções maiores.
Incontroverso que “a busca das verdades absolutas é o único caminho a estabelecer o que é verdadeiro”, impende não transigir com as carências sociais das famílias e com omissões detectadas no tecido de suas existências. A família é um valor absoluto. Novos códigos morais e sociais servirão a essa concretude de superações.
Urge, então, pensar com o filósofo francês Jacques Maritain, em sua influente metafísica: o homem tem fome do absoluto.
Anotações:
(01) A política foi abolida em 29.10.2015, depois de mais de trinta anos de sua vigência, com cerca de 90 milhões de filhos únicos na China, denominados “pequenos imperadores”.
(02) KANT, Immanuel. Fundamentos da metafisica dos costumes (1785), II
(03) CARTER, Betty. McGoldrick, Mônica. As mudanças nos ciclos de vida familiar. Uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 2ª ed.,1995.
(04) Pelo censo do IBGE, a “geração canguru” é formada de filhos entre 25 e 29 anos (62%), de 30 a 34 anos (30%) e de 35 a 39 anos (15%).
(05) EISENSTEIN, E. Adolescência: definições, conceitos e critérios. Adolesc. Saúde, 2005; 2 (2): 6-7.
Web:
(06) TIROLE, Jean. Economia do bem comum. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, 551 p.; pp. 425-426;
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)
Fonte: Consultor Jurídico – Conjur, em 23.06.2020

quarta-feira, 24 de junho de 2020

A LEI 14.010/2020 E OS TRATAMENTOS RELATIVOS AO DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES

A LEI N. 14.010/2020 E OS TRATAMENTOS RELATIVOS AO DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES
Flávio Tartuce[1]
Foi sancionada no último dia 10 de junho de 2020 a Lei n. 14.010/2020, que cria um Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus. Como se sabe, a nova norma tem origem no Projeto de Lei n. 1.179/2020, proposto originalmente pelo Senador Antonio Anastasia, após iniciativa dos Ministros Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, e Antonio Carlos Ferreira, do Superior Tribunal de Justiça. Para o trabalho de sua elaboração foi composta uma comissão de juristas, liderada pelos Professores Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodrigo Xavier Leonardo, que elaborou o texto, contando com minha participação, mediante sugestões enviadas à coordenação dos trabalhos e também ao Senador Rodrigo Pacheco e ao Deputado Vanderlei Macris, na tramitação no Congresso Nacional. As propostas feitas por mim também foram assinadas pelos Professores José Fernando Simão e Maurício Bunazar.
Ao final, muitos foram os vetos realizados pelo Sr. Presidente da República, Jair Bolsonaro, após ouvir os seus respectivos Ministérios, o que acabou por esvaziar a concretude da nova lei, especialmente no âmbito dos contratos. Houve também um grande atraso na sua votação na Câmara dos Deputados, o que prejudicou o seu caráter emergencial, pois quando da sua sanção já estamos, aparentemente, superando a primeira onda da pandemia em muitos locais do País.
Sobre o Direito de Família e das Sucessões, as duas regras que estavam no Projeto de Lei n. 1.179/2020 foram totalmente mantidas, sem qualquer modificação ou veto. São os arts. 15 e 16 da Lei n. 14.010/2020, o primeiro sobre alimentos e o segundo sobre a abertura e encerramento dos inventários.
Pois bem, a primeira norma dispões que, até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º, do CPC/2015, deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, e não mais em regime fechado, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações.
Esse art. 15 da Lei n. 14.010/2020 segue o texto constante da Recomendação n. 62, de 17 de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que em seu art. 6º orienta os magistrados com competência cível que "considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus". No mesmo sentido, aliás, já vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça, desde o início da crise pandêmica, como se retira dos seguintes acórdãos, das suas duas Turmas de Direito Privado:
"HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. DEVEDOR DE ALIMENTOS. PEDIDO DE SUBSTITUIÇÃO DA MEDIDA POR PRISÃO DOMICILIAR. SUPERAÇÃO DO ÓBICE PREVISTO NA SÚMULA N. 691/STF. RECOMENDAÇÃO N. 62/2020 DO CNJ. PANDEMIA DO CORONOVÍRUS (COVID 19). SITUAÇÃO EXCEPCIONAL A AUTORIZAR A CONCESSÃO DA ORDEM. SUSPENSÃO DO CUMPRIMENTO DA PRISÃO CIVIL. 1. Controvérsia em torno da regularidade da prisão civil do devedor inadimplemente de prestação alimentícia, bem como acerca da forma de seu cumprimento no momento da pandemia pelo coronavírus (Covid 19). 2. Possibilidade de superação do óbice previsto na Súmula n. 691 do STF, em casos de flagrante ilegalidade ou quando indispensável para garantir a efetividade da prestação jurisdicional, o que não ocorre no caso dos autos. 3. Considerando a gravidade do atual momento, em face da pandemia provocada pelo coronavírus (Covid-19), a exigir medidas para contenção do contágio, foi deferida parcialmente a liminar para assegurar ao paciente, o direito à prisão domiciliar, em atenção à Recomendação CNJ n. 62/2020. 4. Esta Terceira Turma do STJ, porém, recentemente, analisando pela primeira vez a questão em colegiado, concluiu que a melhor alternativa, no momento, é apenas a suspensão da execução das prisões civis por dívidas alimentares durante o período da pandemia, cujas condições serão estipuladas na origem pelos juízos da execução da prisão civil, inclusive com relação à duração, levando em conta as determinações do Governo Federal e dos Estados quanto à decretação do fim da pandemia (HC n. 574.495/SP). 5. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA" (STJ, HC 580.261/MG, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/06/2020, DJe 08/06/2020).
"HABEAS CORPUS. OBRIGAÇÃO ALIMENTÍCIA. INADIMPLEMENTO PRISÃO CIVIL. DECRETAÇÃO. PANDEMIA. SÚMULA N. 309/STJ. ART. 528, § 7º, DO CPC/2015. PRISÃO CIVIL. PANDEMIA (COVID-19). SUSPENSÃO TEMPORÁRIA. POSSIBILIDADE. DIFERIMENTO. PROVISORIEDADE. 1. Em virtude da pandemia causada pelo coronavírus (Covid-19), admite-se, excepcionalmente, a suspensão da prisão dos devedores por dívida alimentícia em regime fechado. 2. Hipótese emergencial de saúde pública que autoriza provisoriamente o diferimento da execução da obrigação cível enquanto pendente a pandemia. 3. Ordem concedida" (STJ, HC 574.495/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/05/2020, DJe 01/06/2020).
"HABEAS CORPUS. FAMÍLIA. PRISÃO CIVIL. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR EM FAVOR DE EX-CÔNJUGE. INADIMPLEMENTO DE OBRIGAÇÃO ATUAL (SÚMULA 390/STJ). SITUAÇÃO FINANCEIRA DO DEVEDOR. INCURSÃO PROBATÓRIA INVIÁVEL EM SEDE DE RITO SUMÁRIO. PACIENTE IDOSO E CONVALESCENTE DE DOENÇA GRAVE. SITUAÇÃO OBJETIVA. PANDEMIA DO COVID-19. RISCO DE CONTÁGIO. CABIMENTO DE PRISÃO DOMICILIAR. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. No caso em exame, a execução de alimentos refere-se a débito atual, não estando demonstrada pelas provas pré-constituídas a efetiva ausência de rendimentos. A verificação da redução da capacidade econômica do alimentante e a revisão das justificativas apresentadas para o inadimplemento da obrigação demandam dilação probatória, inviável em sede de Habeas Corpus. 2. Diante do iminente risco de contágio pelo Covid-19, bem como em razão dos esforços expendidos pelas autoridades públicas em reduzir o avanço da pandemia, é recomendável o cumprimento da prisão civil por dívida alimentar em regime diverso do fechado em estabelecimento estatal. 3. Ordem de habeas corpus parcialmente concedida para que o paciente, devedor de alimentos, possa cumprir a prisão civil em regime domiciliar" (STJ, HC 563.444/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 05/05/2020, DJe 08/05/2020).
De todo modo, como se pode retirar da parte final do art. 15 da Lei n. 14.010/2020 e também dos julgados, o afastamento da prisão civil em regime fechado no presente momento não afasta a viabilidade de cobrança posterior da dívida em aberto. Merece ser destaque, ainda, o último acórdão, ao afastar a prisão do devedor idoso, o que já vinha sendo aplicando mesmo antes do surgimento da Covid-19.
Acrescente-se ainda decisão do próprio STJ que afastou a prisão civil do devedor de alimentos compensatórios – aqueles que visam apenas a reequilibrar o equilíbrio econômico-financeiro após o fim do casamento ou da união estável –, em tempos de pandemia. Como constou do trecho final da ementa, "na hipótese dos autos, a obrigação alimentícia foi fixada, visando indenizar a ex-esposa do recorrente pelos frutos advindos do patrimônio comum do casal, que se encontra sob a administração do ora recorrente, bem como a fim de manter o padrão de vida da alimentanda, revelando-se ilegal a prisão do recorrente/alimentante, a demandar a suspensão do decreto prisional, enquanto perdurar essa crise proveniente da pandemia causada por Covid-19, sem prejuízo de nova análise da ordem de prisão, de forma definitiva, oportunamente, após restaurada a situação normalidade" (STJ, RHC 117.996/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/06/2020, DJe 08/06/2020). Na verdade, o próprio Tribunal já vinha entendendo que não cabe a prisão civil em casos tais, presentes esses alimentos.
Sobre o Direito das Sucessões, o art. 16 da Lei n. 14.010/2020 trata da suspensão dos prazos para a instauração e o encerramento dos processos de inventário e da partilha, previstos no art. 611 do CPC/2015. Para as sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020, o termo inicial para a instauração será o dia 30 de outubro de 2020, e não mais dois meses da abertura da sucessão, como consta da norma processual. Além disso, está previsto no comando que o prazo de doze meses para que seja ultimado o processo de inventário e a partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da entrada em vigor da lei – 12 de junho de 2020, quando foi publicada –, até a citada data de 30 de outubro.
Como se sabe, as sanções para o descumprimento dessa norma processual dizem respeito à possibilidade de cada Estado da Federação ou o Distrito Federal instituir uma multa pelo retardamento do início ou da ultimação do inventário, não havendo qualquer inconstitucionalidade nessa instituição, conforme consta da Súmula 542 do Supremo Tribunal Federal.
No caso de São Paulo, por exemplo, o tema está tratado pela Lei Estadual n. 10.750/2000, no seu art. 21, inc. I, que prevê uma multa de 10% a 20%, calculada sobre o ITCMD, a última se houver um atraso superior a 180 dias no seu requerimento. No Rio de Janeiro, o art. 37, inc. V, da Lei Estadual n. 7.174/2015 também prevê uma multa de 10% sobre o imposto, cobrada em dobro quando constatada a infração no curso de um procedimento fiscal. Outras unidades da Federação, como Santa Catarina e o Distrito Federal, preveem multas fixas de 20% sobre o ITCMD, nas Leis n. 13.136/2004 e 5.452/2015, respectivamente.
Rodrigo Reis Mazzei e Deborah Azevedo Freire entendem que todas essas multas fiscais foram afastadas pelo artigo da nova lei emergencial, eis que "como é a lei federal que trata do prazo de instauração do inventário causa mortis, os diplomas estaduais e o distrital estão atrelados a tal comando, somente podendo aplicar a multa se não for descumprido o preceito que emana da legislação produzida pela União Federal, em respeito ao art. 22, I, da CF/88. Em suma, somente a União Federal pode regular Direito Civil e Direito Processual Civil, sendo o prazo para a instauração do inventário causa mortis assunto íntimo à competência prevista no art. 22, I, do Diploma Constitucional. O fato faz com que, inclusive, não seja incomum que a legislação local traga menção à aplicação de legislação federal em relação ao prazo para a instauração do inventário causa mortis" (MAZZEI, Rodrigo Reis; FREIRE, Deborah Azevedo. A instauração do inventário causa mortis. Breves (mas não óbvias) anotações a partir do regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Revista Nacional de Direito de Família e das Sucessões, n. 35, Porto Alegre: Magister, mar./abr. 2020. p. 23).
Sendo assim, concluem que a suspensão dos prazos do art. 611 do CPC/2015 pela Lei n. 14.010/2020 afasta essas multas fiscais: "isso, porque como os ditames do citado dispositivo do CPC estão afetados pelo art. 19 do RJET, caso se obedeça à normatização transitória não há conduta contrária à legislação que permita a imposição de qualquer multa, inclusive de natureza fiscal" (MAZZEI, Rodrigo Reis; FREIRE, Deborah Azevedo. A instauração do inventário causa mortis. Breves (mas não óbvias) anotações a partir do regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Revista Nacional de Direito de Família e das Sucessões, n. 35, Porto Alegre: Magister, mar./abr. 2020. p. 23). Anote-se que os autores comentaram o art. 19 do então Projeto n. 1.179/2020, que hoje equivale ao art. 16 da Lei n. 14.010/2020.
Todavia, a questão não é pacífica. José Fernando Simão - em artigo ainda inédito, escrito em coautoria comigo e com Maurício Bunazar -, sustenta que essa conclusão não vale para o Estado de São Paulo, citando os últimos autores e rebatendo os seus argumentos. Vejamos as suas palavras:
"Curiosa é a conclusão, em meu sentir, equivocada, sobre a legislação tributária do Estado de São Paulo. Afirmam os autores que: 'Em São Paulo, por exemplo, o art. 21, I, da Lei nº 10.705/2000, prevê que se o inventário (ou arrolamento) não for requerido dentro do prazo fixado pela legislação federal, o ITCMD será calculado com acréscimo de multa equivalente a 10% (dez por cento) do valor do imposto, mas se o atraso exceder a 180 (cento e oitenta) dias, a multa será de 20% (vinte por cento).
Com a devida vênia, a lei estadual de São Paulo não diz isso. O artigo 21 deve ser lido conjuntamente com o artigo 17. Seguindo máxima de Jean Portalis, um dos autores do Code Napoleón, uma lei não se interpreta por leitura de um artigo isoladamente, mas sim, um artigo pelo outro. E o artigo 17 da Lei 10.705 de 2000 assim determina:
'Artigo 17 - Na transmissão 'causa mortis', o imposto será pago até o prazo de 30 (trinta) dias após a decisão homologatória do cálculo ou do despacho que determinar seu pagamento, observado o disposto no artigo 15 desta lei. § 1º - O prazo de recolhimento do imposto não poderá ser superior a 180 (cento e oitenta) dias da abertura da sucessão, sob pena de sujeitar-se o débito à taxa de juros prevista no artigo 20, acrescido das penalidades cabíveis, ressalvado, por motivo justo, o caso de dilação desse prazo pela autoridade judicial'.
Há prazo limite para recolhimento do tributo expresso e que, como se sabe, o prazo da lei especial (para recolhimento do tributo), ao não mencionar a abertura do inventário, não se suspende pela lei especial. Aliás, a interpretação em sentido contrário ignora um fato: o tributo pode ser recolhido, mesmo se inventário não houver. Uma tabela ajuda na compreensão da questão. (...).
Em conclusão, a data da abertura do inventário, para fins da lei paulista, é irrelevante, pois o ITCMD deve ser recolhido em 180 dias da abertura da sucessão, da morte, sem qualquer relação com o prazo de 2 meses do artigo 611 agora 'dilatado' pelo RJET.
Para o caso de São Paulo, o RJET é inócuo caso o recolhimento do ITCMD não ocorra no prazo máximo de 180 dias contados da morte: haverá multa de 20%. Vamos agora explicar, então, o texto do artigo 21, I da lei paulista, compilado por Rodrigo Mazzei e Deborah Azevedo Freire:
'I - no inventário e arrolamento que não for requerido dentro do prazo de 60 (sessenta) dias da abertura da sucessão, o imposto será calculado com acréscimo de multa equivalente a 10% (dez por cento) do valor do imposto; se o atraso exceder a 180 (cento e oitenta) dias, a multa será de 20% (vinte por cento)'.
Se o inventário não for requerido em 60 dias da abertura da sucessão (o que não corresponde aos dois meses do art. 611 do CPC, pois prazo que se conta em dia difere de prazo que se conta em meses), mas o tributo for recolhido nesse prazo, multa não há. Se o inventário for requerido nesse prazo e o tributo não for recolhido, multa haverá de 10%, salvo dilação desse prazo pela autoridade judicial (art. 17 da lei 10.705/2000). Essa é a interpretação sistemática da lei paulista. Não por fatias, mas um artigo lido pelo outro. O artigo 17 é chave de interpretação do artigo 21" (SIMÃO, José Fernando. Comentários ao que sobrou da Lei n. 14.010/2020, que cria um sistema emergencial de Direito Privado em Tempos de pandemia. No prelo).
De fato, essa é uma questão tormentosa, que deve atingir o Poder Judiciário, havendo fortes argumentos nas duas teses levantadas. A priori, estou filiado às primeiras lições, diante da competência da União Federal para tratar de temas atinentes ao Direito das Sucessões, correlato ao Direito Civil e Processual Civil. Ademais, a lei emergencial de 2020 parece ser mais específica do que as normas estaduais, como se o seu próprio nome demonstra. Além disso, vale lembrar que o fim social da norma emergencial – nos termos do art. 5º da LINDB –, foi justamente o de suspender esses prazos processuais e, como consequências, as multas fiscais. Sendo assim, concluir o contrário esvaziaria sobremaneira a nova regra. De toda sorte, reitero a minha percepção que o debate exposto existirá no futuro, com interesses conflitantes de contribuintes e do Fisco Estadual. Veremos como a jurisprudência brasileira se comportará no futuro.

[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

domingo, 21 de junho de 2020

RESUMO. INFORMATIVO 672 DO STJ.

RESUMO. INFORMATIVO 672 DO STJ.
SEGUNDA SEÇÃO
PROCESSO
REsp 1.804.965-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 27/05/2020, DJe 01/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Imóvel adquirido pelo Sistema Financeiro de Habitação - SFH. Adesão ao seguro habitacional obrigatório. Vícios estruturais de construção (vícios ocultos). Revelação após extinção do contrato. Responsabilidade da seguradora. Boa-fé objetiva. Função social do contrato.
DESTAQUE
Os vícios estruturais de construção estão cobertos pelo seguro habitacional obrigatório vinculado ao crédito imobiliário concedido pelo Sistema Financeiro da Habitação - SFH, ainda que só se revelem depois da extinção do contrato.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a controvérsia a definir se os prejuízos resultantes de sinistros relacionados a vícios estruturais de construção estão acobertados pelo seguro habitacional obrigatório, vinculado a crédito imobiliário concedido para aquisição de imóvel pelo Sistema Financeiro da Habitação - SFH.
Em virtude da mutualidade ínsita ao contrato de seguro, o risco coberto é previamente delimitado e, por conseguinte, limitada é também a obrigação da seguradora de indenizar. Mas o exame dessa limitação não pode perder de vista a própria causa do contrato de seguro, que é a garantia do interesse legítimo do segurado.
Assim como tem o segurado o dever de veracidade nas declarações prestadas, a fim de possibilitar a correta avaliação do risco pelo segurador, a boa-fé objetiva impõe ao segurador, na fase pré-contratual, o dever, dentre outros, de dar informações claras e objetivas sobre o contrato, para permitir que o segurado compreenda, com exatidão, o verdadeiro alcance da garantia contratada, e, nas fases de execução e pós-contratual, o dever de evitar subterfúgios para tentar se eximir de sua responsabilidade com relação aos riscos previamente determinados.
Esse dever de informação do segurador ganha maior importância quando se trata de um contrato de adesão – como, em regra, são os contratos de seguro –, pois se trata de circunstância que, por si só, torna vulnerável a posição do segurado.
A necessidade de se assegurar, na interpretação do contrato, um padrão mínimo de qualidade do consentimento do segurado, implica o reconhecimento da abusividade formal das cláusulas que desrespeitem ou comprometam a sua livre manifestação de vontade, como parte vulnerável.
No âmbito do SFH, o seguro habitacional ganha conformação diferenciada, uma vez que integra a política nacional de habitação, destinada a facilitar a aquisição da casa própria, especialmente pelas classes de menor renda da população, tratando-se, pois, de contrato obrigatório que visa à proteção da família e à salvaguarda do imóvel que garante o respectivo financiamento imobiliário, resguardando, assim, os recursos públicos direcionados à manutenção do sistema.
A partir dessa perspectiva, infere-se que uma das justas expectativas do segurado, ao aderir ao seguro habitacional obrigatório para aquisição da casa própria pelo SFH, é a de receber o bem imóvel próprio e adequado ao uso a que se destina. E a essa expectativa legítima de garantia corresponde a de ser devidamente indenizado pelos prejuízos suportados em decorrência de danos originados na vigência do contrato e geradores dos riscos cobertos pela seguradora, segundo o previsto na apólice, como razoavelmente se pressupõe ocorrer com os vícios estruturais de construção.
Ora, os danos suportados pelos segurados não são verificados exclusivamente em razão do decurso do tempo e da utilização normal da coisa, mas resultam de vícios estruturais de construção, a que não deram causa, nem poderiam de qualquer modo evitar, e que, evidentemente, apenas se agravam com o decurso do tempo e a utilização normal da coisa.
A interpretação fundada na boa-fé objetiva, contextualizada pela função socioeconômica que desempenha o contrato de seguro habitacional obrigatório vinculado ao SFH, leva a concluir que a restrição de cobertura, no tocante aos riscos indicados, deve ser compreendida como a exclusão da responsabilidade da seguradora com relação aos riscos que resultem de atos praticados pelo próprio segurado ou do uso e desgaste natural e esperado do bem, tendo como baliza a expectativa de vida útil do imóvel, porque configuram a atuação de forças normais sobre o prédio.
Os vícios estruturais de construção provocam, por si mesmos, a atuação de forças anormais sobre a edificação, na medida em que, se é fragilizado o seu alicerce, qualquer esforço sobre ele – que seria naturalmente suportado, acaso a estrutura estivesse íntegra – é potencializado, do ponto de vista das suas consequências, porque apto a ocasionar danos não esperados na situação de normalidade de fruição do bem.
Desse modo, à luz dos parâmetros da boa-fé objetiva e da função social do contrato, que os vícios estruturais de construção estão acobertados pelo seguro habitacional, cujos efeitos devem se prolongar no tempo, mesmo após a conclusão do contrato, para acobertar o sinistro concomitante à vigência deste, ainda que só se revele depois de sua extinção (vício oculto).
TERCEIRA TURMA
PROCESSO
REsp 1.748.779-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 19/05/2020, DJe 25/05/2020
RAMO DO DIREITO
TEMA
Letra de câmbio. Declaração unilateral do sacador. Aceite. Eventualidade. Facultatividade. Sacado não aceitante. Relação cambial. Inexistência. Protesto. Não interferência sobre o prazo prescricional da ação extracambial.
DESTAQUE
Na letra de câmbio não aceita não há obrigação cambial que vincule o sacado e assim, o sacador somente tem ação extracambial contra o sacado não aceitante, cujo prazo prescricional não sofre as interferências do protesto do título de crédito.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a discussão a determinar se o protesto da letra não aceita e que não circula tem o condão de interromper o prazo prescricional da dívida que serviu de causa subjacente para a emissão do título de crédito.
Entre os efeitos do protesto, o Código Civil prevê, em seu art. 202, III, a possibilidade de que o protesto cambial interrompa a prescrição. É necessário, no entanto, estabelecer o efetivo alcance dessa disposição do diploma material civil, a fim de se afastar equívocos interpretativos que poderiam conduzir a efeitos indesejados pela norma.
Deve-se entender que a prescrição interrompida pelo protesto cambial se refere, conforme aduz a doutrina, única e exclusivamente à "ação cambiária, regra que se aplica por não existir na legislação cambiária norma sobre a matéria", e, ademais, somente tem em mira a pretensão dirigida ao responsável principal e, eventualmente, aos devedores indiretos do título, entre os quais não se enquadra o sacado não aceitante.
De fato, por força do princípio da autonomia das relações cambiais – segundo o qual a relação jurídica causal que enseja a emissão do título e a relação cambiária são completamente distintas, não estando, nos termos da doutrina, "o cumprimento das obrigações assumidas por alguém no título vinculado a outra obrigação qualquer, mesmo ao negócio que deu lugar ao nascimento do título" , a interrupção da prescrição deve atingir unicamente a ação cambiária.
Dessa forma, na letra de câmbio não aceita, não há obrigação cambial que vincule o sacado e, assim, o sacador somente tem ação extracambial contra o sacado não aceitante, cujo prazo prescricional não sofre as interferências do protesto do título de crédito.
Ademais, o prazo prescricional da ação cambial interrompida pelo protesto se refere àquela que pode ser exercitada pelo portador contra o responsável principal e os devedores indiretos.
Isso é, por sua vez, decorrência da leitura do art. 70 da Lei Uniforme de Genebra, que é regra especial em relação ao Código Civil quanto ao tema e que estabelece, em seu caput, o prazo de 3 anos para a ação contra o aceitante e, em sua alínea primeira, o prazo de um ano para as ações do portador contra os endossantes e contra o sacador, a contar da data do protesto feito em tempo útil, e do art. 71 do referido diploma legislativo, segundo o qual "a interrupção da prescrição só produz efeito em relação à pessoa para quem a interrupção foi feita".
Portanto, nas letras de câmbio sacadas na vigência do Código Civil/2002 e nas quais não tenha havido aceite pelo sacado, seu protesto somente produz efeito interruptivo sobre o prazo prescricional sobre as ações cambiárias do portador sobre o aceitante ou sobre o sacador e os demais devedores indiretos, na hipótese de ter ocorrido sua circulação.
PROCESSO
REsp 1.689.220-RS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 19/05/2020, DJe 27/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Divórcio. Partilha. Cotas sociais de empresa. Separação de fato. Administração exclusiva de um dos cônjuges. Atividades encerradas. Juros e correção monetária. Cabimento.
DESTAQUE
Incidem juros e correção monetária sobre a avaliação do conteúdo econômico de cotas sociais de empresa objeto de partilha em divórcio que, após a separação do casal, sob a administração exclusiva de um dos ex-cônjuges, encerrou suas atividades comerciais.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a controvérsia a saber se incidem juros e correção monetária, desde a citação até a data do efetivo pagamento, na forma do artigo 389 do Código Civil de 2002, sobre o valor da avaliação de cotas empresariais apurado conforme sua importância ao tempo da separação de fato dos ex-cônjuges.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica ao reconhecer a possibilidade de partilha, em ação de divórcio, da expressão econômica resultante de cotas empresariais que integraram o patrimônio comum construído na vigência do relacionamento outrora estabelecido entre as partes, independentemente da natureza da sociedade.
A Terceira Turma, ao julgar o REsp n. 1.537.107/PR, teve a oportunidade de debater hipótese em que se partilhou a valorização decorrente da administração da empresa que, nos anos seguintes à separação do então casal, experimentou crescimento financeiro a ser dividido por força da reconhecida copropriedade das cotas, não podendo "o recorrente apartar a sua ex-cônjuge do sucesso da sociedade" (Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/11/2016, DJe 25/11/2016).
Na presente situação, por sua vez, discute-se justamente realidade fática em que o "varão ficou na posse e administração da pessoa jurídica, que encerrou suas atividades após a separação".
Na espécie, a ex-cônjuge teve reconhecido o direito à metade do valor integralizado das cotas empresariais em debate. Ocorre que, tendo em vista o encerramento das atividades da empresa após a separação do então casal, constatada na data da avaliação, o objeto partilhado consiste, em última instância, no próprio capital investido na sociedade à época do relacionamento, devidamente atualizado.
Tendo em vista que o encerramento da empresa não deve impor ao ex-cônjuge, que ficou privado do patrimônio relativo às mencionadas cotas, o ônus de arcar com os prejuízos decorrentes da administração exclusiva, incabível o afastamento dos juros no pagamento das perdas e danos sobre o valor financeiro do mencionado bem sob pena de, ao assim o fazer, cristalizar indevido desequilíbrio na divisão de bens pactuada quando da partilha.
Assim, diante do encerramento das atividades negociais, resta ao devedor suprir o valor integralizado outrora alocado na empresa e por ele gerido exclusivamente, convertendo-o nos autos em perdas e danos aptos a representar os direitos patrimoniais sobre as cotas sociais então devidas à recorrida. Por esse motivo, correta a avaliação que inclua não só a obrigação principal, mas também seus acessórios, ou seja, juros e correção monetária.
PROCESSO
REsp 1.809.548-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 19/05/2020, DJe 27/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Embargos de terceiro. Cessão de direitos hereditários. Bem determinado. Ausência de nulidade. Negócio jurídico válido. Eficácia condicionada que não impede a transmissão da posse.
DESTAQUE
A cessão de direitos hereditários sobre bem singular viabiliza a transmissão da posse, que pode ser objeto de tutela específica na via dos embargos de terceiro.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
No caso, busca-se a comprovação da propriedade/posse do imóvel objeto de penhora, por meio de embargos de terceiro opostos por adquirente de direitos hereditários sobre imóvel pertencente a espólio, cedidos a terceiros antes de ultimada a partilha com a anuência daquelas que se apresentavam como únicas herdeiras, a despeito do reconhecimento de outros dois sucessores por sentença proferida em ação de investigação de paternidade cumulada com petição de herança.
Quanto ao ponto, consigna-se que, em regra, o juízo de procedência dos embargos de terceiro está condicionado à comprovação da posse ou do domínio sobre o imóvel que sofreu a constrição, por meio de prova documental ou testemunhal, cabendo ao juiz, no caso de reconhecer suficientemente provado o domínio ou a posse, determinar a suspensão das medidas constritivas sobre o bem litigioso, além da manutenção ou da reintegração provisória da posse, se o embargante a houver requerido (arts. 677 e 678 do CPC/2015).
Quanto à cessão de direitos, o Código Civil de 2002 dispõe: "Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública. § 2º É ineficaz a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente".
No que tange, à existência, à validade e à eficácia da cessão de direitos hereditários sobre bem determinado da herança, observa-se que: a) a cessão de direitos hereditários sobre bem singular, desde que celebrada por escritura pública e não envolva o direito de incapazes, não é negócio jurídico nulo, tampouco inválido, ficando apenas a sua eficácia condicionada a evento futuro e incerto consubstanciado na efetiva atribuição do bem ao herdeiro cedente por ocasião da partilha; b) a ineficácia se opera somente em relação aos demais herdeiros; c) se celebrado pelo único herdeiro ou havendo a anuência de todos os coerdeiros, o negócio é válido e eficaz desde o seu nascimento, independentemente de autorização judicial, pois o que a lei busca evitar é que um único herdeiro, em prejuízo dos demais, aliene um bem que ainda não lhe pertence, e d) se o negócio não é nulo, mas tem apenas a sua eficácia suspensa, a cessão de direitos hereditários sobre bem singular viabiliza a transmissão da posse, que pode ser objeto de tutela específica na via dos embargos de terceiro.
Assim, embora controvertida a matéria, tanto na doutrina como na jurisprudência dos tribunais, o fato de não ser a cessão de direitos hereditários sobre bem individualizado eivada de nulidade, mas apenas ineficaz em relação aos coerdeiros que com ela não anuíram, é o quanto basta para, na via dos embargos de terceiro, assegurar à cessionária a manutenção de sua posse.
Salienta-se, ademais, que admite-se a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, mesmo que desprovido do registro, a teor da Súmula n. 84/STJ, entendimento que também deve ser aplicado na hipótese em que a posse é defendida com base em instrumento público de cessão de direitos hereditários.

PROCESSO
REsp 1.812.465-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 12/05/2020, DJe 18/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Locação residencial. Contrato por prazo indeterminado. Denúncia vazia. Ação de despejo. Notificação premonitória. Obrigatoriedade.
DESTAQUE
A notificação premonitória constitui pressuposto processual para ação de despejo em locação por denúncia vazia de contrato por prazo indeterminado.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A notificação premonitória para o encerramento do contrato de locação por denúncia vazia é obrigatória e, assim, não seria permitido ao locador ajuizar uma ação de despejo sem ser conferido ao locatário o aviso prévio de que trata o art. 46, § 2º, da Lei do Inquilinato.
A necessidade da referida notificação, previamente ao ajuizamento da ação de despejo, encontra fundamentos em uma série de motivos práticos e sociais e tem a finalidade precípua de reduzir os impactos negativos que necessariamente surgem com a efetivação do despejo.
A doutrina aponta uma exceção para a ocorrência da notificação premonitória, que é o ajuizamento da ação de despejo nos 30 (trinta) dias subsequentes ao término do prazo do contrato de locação. Somente nessa hipótese a citação da ação de despejo poderia substituir a notificação premonitória.
Assim, em se tratando de contrato por prazo indeterminado, caso a ação de despejo seja ajuizada sem a prévia notificação, deverá ser extinto o processo, sem a resolução do mérito, por falta de condição essencial ao seu normal desenvolvimento.

PROCESSO
REsp 1.861.025-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 12/05/2020, DJe 18/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Embargos de terceiro. Compromisso de compra e venda desprovido de registro. Posse não concretizada. Imóvel em construção. Aplicação da Súmula 84/STJ.
DESTAQUE
É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda, ainda que desprovido de registro, de imóvel adquirido na planta que se encontra em fase de construção.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Para a oposição de embargos de terceiro, além de ostentar a qualidade de terceiro, o embargante deve ser senhor ou possuidor da coisa ou do direito que tenha sofrido constrição judicial, nos termos do art. 674 do CPC/2015.
Frise-se que a posse que permite a oposição dos embargos de terceiro é tanto a direta quanto a indireta. E, diferentemente do que ocorre nas ações possessórias, a insurgência do terceiro embargante não se dá contra a regularidade~, ou não, do ato de turbação ou esbulho que lhe impôs, mas contra a afirmação de que o bem constrito está na esfera de responsabilidade patrimonial do executado.
Além disso, faz-se de suma importância relembrar o enunciado da Súmula 84/STJ, que preceitua que é admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda, ainda que desprovido de registro.
Na hipótese, o imóvel adquirido ainda estava em fase de construção, razão pela qual o instrumento particular de compra e venda – deve ser considerado para comprovação da posse, admitindo-se, por via de consequência, a oposição dos embargos de terceiro.

PROCESSO
RMS 56.941-DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 19/05/2020, DJe 27/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL, DIREITO REGISTRAL
TEMA
Ação negatória de filiação. Sentença de procedência transitada em julgado. Averbação. Direito subjetivo e personalíssimo. Não caracterização. Consequência legal obrigatória. Art. 10, II, do Código Civil.
DESTAQUE
A averbação de sentença proferida em ação negatória de filiação não consubstancia, em si, um direito subjetivo autônomo das partes litigantes, tampouco se confunde com o direito personalíssimo ali discutido.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A averbação de sentença transitada em julgado, a qual declara ou reconhece determinado estado de filiação - como se dá nas ações negatórias de maternidade/paternidade, em caso de procedência -, constitui consequência legal obrigatória do que restou declarado e reconhecido judicialmente, o que se dá, ordinariamente, de ofício.
Nos termos do art. 10, inciso II, do Código Civil, far-se-á a averbação de registro público dos atos judiciais e extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação. Assim, a averbação constitui ato acessório destinado a modificar o teor constante do registro, em virtude de determinação judicial, conferindo-lhe, em atenção ao princípio da veracidade, que rege o registro público, publicidade e segurança jurídica.
Não existe nenhuma faculdade conferida às partes envolvidas a respeito de proceder ou não à referida averbação, como se tal providência constituísse, em si, um direito personalíssimo delas. Não há, pois, como confundir o exercício do direito subjetivo de ação de caráter personalíssimo, como o é a pretensão de desconstituir estado de filiação, cuja prerrogativa é exclusiva das pessoas insertas nesse vínculo jurídico (pai/mãe e filho), com o ato acessório da averbação da sentença de procedência transitada em julgado, que se afigura como mera consequência legal obrigatória.
Na eventualidade de tal proceder não ser observado - o que, no caso, deu-se em virtude de falha do serviço judiciário (houve expedição, mas não houve o encaminhamento do mandado de averbação ao Ofício do Registro Civil das Pessoas Naturais) -, não se impõe à parte interessada o manejo de específica ação para esse propósito. A providência de averbação da sentença, por essa razão, não se submete a qualquer prazo, seja ele decadencial ou prescricional.

PROCESSO
REsp 1.851.104-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 12/05/2020, DJe 18/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL, DIREITO REGISTRAL
TEMA
Contrato de compra e venda. Desmembramento de imóvel. Matrícula individualizada. Necessidade. Averbação junto ao Cartório de Registro de Imóveis. Condição indispensável para a procedência da ação de adjudicação compulsória.
DESTAQUE
A averbação do desmembramento de imóvel urbano é condição indispensável para a procedência da ação de adjudicação compulsória.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A norma contida no artigo 37 da Lei n. 6.766/1979 (Lei de parcelamento do solo urbano) afirma que "É vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado".
Além disso, segundo o regramento previsto no Decreto-Lei n. 58/1937, julgada procedente a ação de adjudicação compulsória, a sentença valerá como título para transcrição no cartório de registro de imóveis respectivo.
Assim, se o imóvel de cuja escritura se exige a outorga não tem matrícula própria, individualizada no registro de imóveis, eventual sentença que substitua a declaração de vontade do promitente vendedor torna-se inócua, pois insuscetível de transcrição.
A ação de adjudicação compulsória, classificada como ação de execução em sentido lato, não se limita a condenar, dispensando execução típica posterior. Por isso a existência de imóvel registrável é condição específica da ação de adjudicação compulsória, de modo que a averbação do desmembramento de imóvel urbano, devidamente aprovado pela prefeitura municipal, é formalidade que antecede necessariamente o registro de área fracionada.

PROCESSO
REsp 1.771.169-SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 26/05/2020, DJe 29/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR
TEMA
Morte de paciente atendido em hospital particular conveniado ao SUS. Responsabilidade civil dos médicos. Prestação de serviço público indivisível e universal (uti universi). Art. 1º-C da Lei n. 9.494/1997. Prazo prescricional quinquenal.
DESTAQUE
Na hipótese de responsabilidade civil de médicos pela morte de paciente em atendimento custeado pelo SUS incidirá o prazo do art. 1º-C da Lei n. 9.494/1997, segundo o qual prescreverá em cinco anos a pretensão de obter indenização
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Segundo estabelecem os arts. 196 e seguintes da CF/1988, a saúde, direito fundamental de todos, é dever do Estado, cabendo à iniciativa privada participar, em caráter complementar (art. 4º, § 2º, da Lei n. 8.080/1990), do conjunto de ações e serviços que visem favorecer o acesso universal e igualitário às atividades voltadas a sua promoção, proteção e recuperação, constituindo um sistema único – o SUS.
A participação complementar da iniciativa privada na execução de ações e serviços de saúde se formaliza mediante contrato ou convênio com a administração pública (parágrafo único do art. 24 da Lei n. 8.080/1990), nos termos da Lei n. 8.666/1990 (art. 5º da Portaria n. 2.657/2016 do Ministério da Saúde), utilizando-se como referência, para efeito de remuneração, a Tabela de Procedimentos do SUS (§ 6º do art. 3º da Portaria n. 2.657/2016 do Ministério da Saúde).
Quando prestado diretamente pelo Estado, no âmbito de seus hospitais ou postos de saúde, ou quando delegado à iniciativa privada, por convênio ou contrato com a administração pública, para prestá-lo às expensas do SUS, o serviço de saúde constitui serviço público social.
A participação complementar da iniciativa privada – seja das pessoas jurídicas, seja dos respectivos profissionais – na execução de atividades de saúde caracteriza-se como serviço público indivisível e universal (uti universi), o que afasta, por conseguinte, a incidência das regras do CDC.
Dessa forma, afastada a incidência do art. 27 do CDC, tem-se a aplicação, na espécie, do art. 1º-C da Lei n. 9.494/1997, segundo o qual prescreverá em cinco anos o direito de obter indenização dos danos causados pelos agentes de pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.
Ainda, as Turmas que compõem a Segunda Seção firmaram o entendimento de que "tal norma (art. 1º-C da Lei n. 9.494/1997), por ter natureza especial, destinando-se clara e especificamente aos danos causados por agentes de pessoas jurídicas de direito público ou privado prestadoras de serviços públicos, não foi revogada, expressa ou tacitamente, pelo art. 206, § 3º, V, do CC/2002, de natureza geral", e de que "o Poder Judiciário, na sua atividade de interpretação e de aplicação da lei, têm considerado o prazo de 5 (cinco) anos mais adequado e razoável para a solução de litígios relacionados às atividades do serviço público, sob qualquer enfoque" (REsp 1.083.686/RJ, Quarta Turma, julgado em 15/08/2017, DJe de 29/08/2017).

PROCESSO
REsp 1.758.858-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 19/05/2020, DJe 25/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO COMERCIAL, DIREITO REGISTRAL
TEMA
Decisão judicial que permite a averbação de protesto na matrícula de um imóvel. Mera publicidade da manifestação de vontade do promovente. Ausência de efeitos sobre as relações jurídicas e direitos. Embargos de terceiro. Recurso incabível.
DESTAQUE
Não são cabíveis embargos de terceiro para desconstituir decisão judicial que permite a averbação de protesto na matrícula de um imóvel.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a controvérsia ao cabimento de embargos de terceiro contra a decisão que defere o pedido de averbação do protesto contra a alienação de bens na matrícula do imóvel.
Sobre o tema, vale esclarecer que os embargos de terceiro são remédio processual à disposição do terceiro prejudicado por um esbulho judicial, o qual se configura quando a atuação jurisdicional alcança bens que excedam os limites patrimoniais da obrigação exigida.
Entretanto, o protesto é medida judicial destinada a comprovar ou documentar uma manifestação formal de vontade do promovente, o qual busca, por meio de referido procedimento, comunicar a terceiros interessados sua intenção de fazer atuar no mundo jurídico uma determinada pretensão. Desse modo, o protesto, por si mesmo, não modifica relações jurídicas, servindo apenas ao desiderato de dar publicidade a uma comunicação de intenções do promovente.
Portanto, a averbação do protesto contra a alienação de bens na matrícula do imóvel não cumpre outro propósito senão o de dar a efetiva publicidade da manifestação de vontade do promovente, sem diminuir ou acrescentar direitos das partes interessadas, tampouco constituir efetivo óbice à negociação ou à escrituração da compra e venda.
Com efeito, como os embargos de terceiro destinam-se à desconstituição de uma apreensão judicial de um bem, observa-se que os embargos de terceiro não são o procedimento adequado à obtenção do registro da escritura da compra e venda de imóvel –, eis que ausente o esse pressuposto essencial de seu cabimento.

PROCESSO
REsp 1.853.347-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 05/05/2020, DJe 11/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR
TEMA
Termo inicial do prazo bienal. Art. 61, caput, da Lei n. 11.101/2005. Data da concessão da recuperação judicial. Termos aditivos. Irrelevância.
DESTAQUE
Nos casos em que há aditamento ao plano de recuperação judicial, o termo inicial do prazo bienal de que trata o artigo 61, caput, da Lei n. 11.101/2005 deve ser a data da concessão da recuperação judicial.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a controvérsia a definir se, nos casos em que há aditamento ao plano de recuperação judicial, o termo inicial do prazo bienal de que trata o art. 61, caput, da Lei n. 11.101/2005 deve ser a data da concessão da recuperação judicial, ou a data em que foi homologado o aditivo ao plano.
A Lei n. 11.101/2005 não prevê a possibilidade de que, após a aprovação do plano de recuperação judicial, sejam apresentados aditivos ou mesmo um novo plano para aprovação dos credores
De fato, o art. 53 da LRF determina que o credor apresente o plano de recuperação judicial no prazo de 60 (sessenta) dias e, no caso de haver objeção de algum dos credores, que seja convocada assembleia geral de credores para deliberar a respeito de seus termos (art. 56 da LRF).
É certo que, na assembleia de credores, o plano poderá sofrer modificações, fruto das negociações ali desenvolvidas, e, caso haja concordância do devedor e inexistência de diminuição unicamente dos direitos garantidos aos credores ausentes, o plano será aprovado (também podendo ocorrer sua rejeição com a decretação da quebra). E, uma vez aprovado o plano de recuperação judicial, a lei de regência não mais cuida da possibilidade de novas deliberações acerca de seu conteúdo.
A LRF estabeleceu, em seu art. 61, caput, o prazo de 2 (dois) anos para o devedor permanecer em recuperação judicial, que se inicia com a concessão da recuperação judicial (art. 58 da LRF) e que se encerra com o cumprimento de todas as obrigações previstas no plano que se vencerem até 2 (dois) anos do termo inicial.
É preciso esclarecer, desde logo, que o fato de a recuperação judicial se encerrar no prazo de 2 (dois) anos não significa que o plano não possa prever prazos mais alongados para o cumprimento das obrigações, mas, sim, que o cumprimento somente será acompanhado pelo Judiciário, pelo Ministério Público e pelo administrador judicial nessa fase, para depois estar sob a fiscalização única dos credores.
Trata-se de uma presunção do legislador, como ensina a doutrina, de "que o devedor que se submeteu a todos os percalços do pedido de recuperação, que preencheu todas as exigências legais, que cumpriu suas obrigações por dois anos consecutivos, certamente terá atingido uma situação na qual deverá cumprir todas as obrigações assumidas".
Algumas situações, entretanto, não foram antevistas pelo legislador na aplicação do art. 61 da LRF, mas foram se apresentando na prática, como : (i) pode o plano de recuperação judicial prever prazo menor para o período de fiscalização e encerramento da recuperação judicial? (ii) no caso de o plano de recuperação judicial prever período de carência para o início dos pagamentos superior a 2 (dois) anos, o prazo bienal para fiscalização do cumprimento das obrigações é contado a partir do final da carência, ou da concessão da recuperação? e (iii) na hipótese de haver alteração do plano de recuperação judicial, com a apresentação de aditamentos, qual o termo inicial do prazo de fiscalização?
Essa última questão é o objeto do recurso, mas, juntamente com as anteriores, traz à reflexão o motivo pelo qual o período para permanecer em recuperação judicial deve ser delimitado.
O estabelecimento de um prazo de supervisão judicial agrega ao processo de recuperação um qualificativo de transparência indispensável para angariar a confiança dos credores, facilitando as negociações organizadas, o cumprimento do stay period e a aprovação dos planos de recuperação judicial.
Sob essa perspectiva, era essencial que o legislador estabelecesse um prazo mínimo de efetiva fiscalização judicial da recuperação judicial, durante o qual o credor se veria confortado pela exigência do cumprimento dos requisitos para concessão da recuperação judicial e pela possibilidade direta de convolação da recuperação judicial em falência, no caso de descumprimento das obrigações (art. 61, § 1, da LRF), com a revogação da novação dos créditos (art. 61, § 2, da LRF).
Por outro lado, a fixação de um prazo máximo para o encerramento da recuperação judicial também se mostra indispensável para afastar os efeitos negativos de sua perpetuação, como o aumento dos custos do processo, a dificuldade de acesso ao crédito e a judicialização das decisões que cabem aos agentes de mercado, passando o juiz a desempenhar o papel de muleta para o devedor e garante do credor.
Assim, alcançado o principal objetivo do processo de recuperação judicial, que é a aprovação do plano de recuperação judicial, e encerrada a fase inicial de sua execução, quando as propostas passam a ser executadas, a empresa deve retornar à normalidade, de modo a lidar com seus credores sem intermediação.
Nesse cenário, não parece possível a redução do prazo de fiscalização judicial, ainda que a previsão esteja inserida em cláusula de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores, pois contraria o art. 61 da LRF e a própria sistemática estabelecida pelo legislador.
Ainda dentro dessa lógica, o termo inicial para a fiscalização deve levar em conta o início da fase de execução do plano de recuperação judicial, com a adoção de providências para o cumprimento das obrigações assumidas.
No caso da apresentação de aditivos ao plano de recuperação judicial, o pressuposto é de que o plano estava sendo cumprido e, por situações que somente se mostraram depois, teve que ser modificado, o que foi admitido pelos credores. Assim, não há propriamente uma ruptura da fase de execução.
Verifica-se que o fato de terem sido propostos aditamentos ao plano, inclusive novos prazos de carência, não impediu o acompanhamento judicial da fase inicial de execução do plano e o cumprimento das obrigações estabelecidas. Ao contrário, foram realizadas alienações, pagamentos, constituição de UPI, assembleias e homologação de aditivos, concluindo a juíza que as obrigações vencidas no biênio foram adimplidas.
Dessa forma, não há justificativa para a modificação do termo inicial da contagem do prazo bienal do artigo 61 da LRF. Decorridos 2 (dois) anos da concessão da recuperação judicial, ela deve ser encerrada, seja pelo cumprimento das obrigações estabelecidas para esse período, seja pela eventual decretação da falência.

PROCESSO
REsp 1.820.477-DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 19/05/2020, DJe 27/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Empréstimo consignado. Impenhorabilidade. Exceção. Manutenção própria e da família. Comprovação. Necessidade.
DESTAQUE
São penhoráveis os valores oriundos de empréstimo consignado, salvo se o mutuário comprovar que os recursos são necessários à de sua manutenção e de sua família.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
No empréstimo consignado, o mutuário (devedor) recebe determinada quantia do mutuante (instituição financeira ou cooperativa de crédito) e, em contrapartida, ocorre a diminuição do salário, devido aos descontos efetuados diretamente na folha de pagamento.
Assim, essa modalidade de empréstimo compromete a renda do trabalhador, do pensionista ou do aposentado, podendo reduzir seu poder aquisitivo e prejudicar sua subsistência. Em razão disso, a jurisprudência uniforme desta Corte Superior sedimentou a legalidade na limitação dos descontos efetuados em folha de pagamento do mutuário.
Porém, ainda que as parcelas do empréstimo contratado sejam descontadas diretamente da folha de pagamento do mutuário, a origem desse valor não é salarial, pois não se trata de valores decorrentes de prestação de serviço, motivo pelo qual não possui, em regra, natureza alimentar. Não há norma legal que atribua expressamente a tal verba a proteção da impenhorabilidade.
Ademais, conclusão em sentido contrário provocaria a ampliação do rol taxativo previsto no art. 833 do CPC/2015, tendo em vista que o empréstimo pessoal, ainda que na modalidade consignada, não encontra previsão no referido dispositivo. Por constituir exceção ao princípio da responsabilidade patrimonial (art. 831 do CPC/2015), não se admite, nesse aspecto, interpretação extensiva.
Por tais motivos, os valores decorrentes de empréstimo consignado, em regra, não são protegidos pela impenhorabilidade, por não estarem abrangidos pelas expressões vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, conforme a primeira parte do inciso IV art. 833 do CPC/2015.
Assim, a proteção da impenhorabilidade ocorre somente se o mutuário (devedor) comprovar que os recursos oriundos do empréstimo consignado são necessários à sua manutenção e à de sua família. Essa interpretação decorre do disposto no citado art. 833, IV, do CPC/2015: "destinadas ao sustento do devedor e de sua família".

PROCESSO
REsp 1.857.055-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 12/05/2020, DJe 18/05/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR
TEMA
Falência. Habilitação de crédito. Execução fiscal ajuizada anteriormente à decretação da quebra do devedor. Utilidade e necessidade da pretensão de habilitação. Interesse processual da União configurado.
DESTAQUE
O ajuizamento de execução fiscal em momento anterior à decretação da quebra do devedor não enseja o reconhecimento da ausência de interesse processual do ente federado para pleitear a habilitação do crédito correspondente no processo de falência.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O STJ vem entendendo que os conteúdos normativos dos arts. 187 do CTN e 29 da Lei n. 6.830/1980 não representam óbices à habilitação de créditos tributários no concurso de credores da falência; tratam eles, na verdade, de uma prerrogativa do ente público em poder optar entre receber o pagamento de seu crédito pelo rito da execução fiscal, ou mediante habilitação nos autos da falência.
De se ressaltar que, "[m]algrado a prerrogativa de cobrança do crédito tributário via execução fiscal, inexiste óbice para que o Fisco (no exercício de juízo de conveniência e oportunidade) venha a requerer a habilitação de seus créditos nos autos do procedimento falimentar, submetendo-se à ordem de pagamento prevista na Lei n. 11.101/2005, o que implicará renúncia a utilizar-se do rito previsto na Lei n. 6.830/1980, ante o descabimento de garantia dúplice" (REsp 1.466.200/SP, Quarta Turma, DJe 12/2/2019).
Escolhendo, portanto, o ente estatal um dos ritos à sua disposição, ocorre a renúncia da utilização do outro – ou a paralisação de sua tramitação, especialmente, como se verifica na hipótese, no caso de a ação executiva ter sido ajuizada anteriormente à quebra –, na medida em que não se pode admitir bis in idem.
Nesse contexto, não há como extinguir o incidente que objetiva tal escolha, sob argumento de que o ente federativo carece de interesse processual.
Como é sabido, para o reconhecimento da existência de interesse de agir, é necessária a confluência de dois elementos: a utilidade e a necessidade do pronunciamento judicial.
Na hipótese, constata-se que o instrumento processual eleito pela recorrente é apto a ensejar o resultado por ela pretendido, o que traduz a utilidade da jurisdição; por outro, além de o incidente de habilitação de crédito constituir o único meio à disposição do Fisco para alcançar sua pretensão, verifica-se que a massa falida opôs resistência ao pedido deduzido em juízo, o que configura a necessidade da atuação do Judiciário.
Quanto ao ponto, esta Corte já decidiu que "[a] prejudicialidade do processo falimentar para a satisfação do crédito tributário não implica a ausência de interesse processual no pedido de habilitação do crédito tributário ou na penhora no rosto dos autos".