A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART.
1.790 DO CC.
DA NECESSIDADE URGENTE DE O STF
ENCERRAR O JULGAMENTO.
Flávio Tartuce[1]
O Supremo Tribunal Federal, em 31 de agosto de 2015,
iniciou o julgamento sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código
Civil, que trata dos direitos sucessórios do companheiro. A norma tem a
seguinte redação, tão criticada por parte considerável dos doutrinadores
brasileiros: “A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro,
quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas
condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma
quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com
descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada
um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a
um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à
totalidade da herança”.
Por maioria de votos, a Corte entendeu pela equiparação
sucessória entre o casamento e a união estável, para os fins de repercussão
geral (STF, Recurso Extraordinário n. 878.694/MG, Relator Ministro Luís Roberto
Barroso). Nos termos do voto do relator, “não é legítimo desequiparar, para
fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo
casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades
familiares é incompatível com a Constituição”.
No total, já são sete votos na linha da premissa fixada
pelo Ministro Barroso. Além dele, os Ministros Luiz Edson Fachin, Teori
Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia seguiram a tese para
fins de repercussão geral, com o seguinte texto: “No sistema constitucional
vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e
companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no
art. 1.829 do CC/2002”.
Se prevalecer tal decisão, além da retirada do sistema do
art. 1.790 do Código Civil, o companheiro passa a figurar ao lado do cônjuge na
ordem de sucessão legítima. Assim, concorrerá com os descendentes, o que
depende do regime de bens adotado. Concorrerá também com os ascendentes, o que
independe do regime. Na falta de descendentes e de ascendentes, receberá a
herança sozinho, como ocorre com o cônjuge, excluindo os colaterais até o
quarto grau (irmãos, tios, sobrinhos, primos, tios-avôs e sobrinhos-netos).
O Ministro Dias Toffoli pediu vista dos autos, não
encerrando o julgamento, o que não nos impede de afirmar que a posição está
praticamente firmada naquele Tribunal Superior, tendo impacto para todos os
casos que julgarem o tema, em todas as esferas. Desse modo, para a prática do
Direito das Sucessões – e também para o Direito de Família, pensamos –, passa a
ser firme e majoritária a premissa da equiparação da união estável ao
casamento, igualdade também adotada pelo Novo CPC, em vários de seus
dispositivos e para os devidos fins processuais.
Quanto à modulação dos efeitos do decisum, de acordo também com o Ministro Relator, “é importante
observar que o tema possui enorme repercussão na sociedade, em virtude da
multiplicidade de sucessões de companheiros ocorridas desde o advento do
CC/2002. Assim, levando-se em consideração o fato de que as partilhas judiciais
e extrajudiciais que versam sobre as referidas sucessões encontram-se em
diferentes estágios de desenvolvimento (muitas já finalizadas sob as regras
antigas), entendo ser recomendável modular os efeitos da aplicação do
entendimento ora afirmado. Assim, com o intuito de reduzir a insegurança
jurídica, entendo que a solução ora alcançada deve ser aplicada apenas aos
processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da
sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não
tenha sido lavrada escritura pública” (STF, Recurso Extraordinário n.
878.694/MG, Relator Ministro Luís Roberto Barroso). A previsão visa à certeza e
à segurança das relações jurídicas, atingindo apenas as novas divisões patrimoniais
sucessórias.
Pois bem, sempre estivemos filiados à corrente que via
inconstitucionalidade apenas no inciso III do art. 1.790 do Código Civil, por
colocar o convivente em posição de desprestígio frente aos ascendentes e
colaterais até o quarto grau, recebendo um terço do que esses recebessem.
Alguns Tribunais Estaduais já tinham reconhecido a inconstitucionalidade desse
último diploma, por meio do seu Órgão Especial, caso do Tribunal de Justiça do
Paraná e do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Todavia, o momento é de aceitar a decisão do STF, conforme
expunham dois dos nossos grandes sucessionistas, os Professores Zeno Veloso e
Giselda Hironaka, ícones do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)
e citados no voto condutor do Ministro Barroso. Assim, a inconstitucionalidade
atinge toda a norma, e não apenas o inciso III do comando. A principal vantagem
do julgamento é resolver a grande instabilidade jurídica sucessória verificada
no Brasil desde a vigência do Código Civil de 2002, colocando fim a debates
infindáveis sobre a inconstitucionalidade ou não do art. 1.790 do CC.
Reiteramos que, como outros membros do IBDFAM, caso de José Fernando Simão, não
víamos inconstitucionalidade em todo o comando, mas apenas no inciso III da
norma. De toda sorte, pensamos ter sido a solução saudável, trazendo mais
certeza para os casos futuros.
O conteúdo do julgamento até aqui prolatado tem outras
grandes vantagens. Primeiro, houve o afastamento definitivo da hierarquização
das famílias, o que era adotado em alguns Tribunais Estaduais, caso da decisão
do Órgão Especial do Tribunal Paulista que reconheceu a constitucionalidade do
art. 1.790 por tal argumento. Segundo, reconheceu-se expressamente a afetividade
como valor jurídico e como princípio do Direito de Família Contemporâneo, o que
igualmente foi adotado no julgamento da repercussão geral da parentalidade
socioafetiva (publicado no Informativo n. 840 do STF). Terceiro, e por fim, merece
destaque a interpretação civil-constitucional que orientou o julgamento, com a incidência
dos princípios da igualdade e da dignidade humana, de forma imediata, às
relações privadas (eficácia horizontal). Como temos sustentado em várias
ocasiões, essas premissas formam diretrizes fundamentais para a interpretação
do Direito de Família Contemporâneo.
Todavia, há uma necessidade urgente e inafastável, qual
seja a de o Supremo Tribunal Federal encerrar o julgamento. Imaginemos quantos
inventários, sejam judiciais ou extrajudiciais, estão parados, aguardando o
deslinde da questão. Como destacou Anderson Schreiber em artigo recente, “todos
os campos do Direito demandam segurança jurídica, mas sua exigência é ainda
maior no Direito das Sucessões. A transmissão do patrimônio, por meio do seu
fatiamento entre múltiplos herdeiros, é fonte frequente de conflitos com os
quais ninguém ganha: a longa demora em inventários prejudica os herdeiros, que
ficam privados dos bens a que têm direito; prejudica o Estado, que fica privado
dos tributos incidentes; e prejudica diretamente a sociedade, abarrotando o
Poder Judiciário com processos que duram, em alguns casos, mais de uma década.
É usual na advocacia sucessória a percepção de que uma família só pode se dizer
realmente unida se já tiver passado por um inventário, tamanha a sua capacidade
de fomentar disputas” (Sucessão do
companheiro no STF. Disponível em: .
Acesso em 25 de novembro de 2016).
Ao final de seu texto, o jurista pede que a questão seja
resolvida definitivamente, pleito que também almeja este texto. Conforme suas
palavras, “o certo, todavia, é que, iniciado o julgamento da matéria, tornou-se
temerário realizar partilhas judiciais ou extrajudiciais nesse período em que a
Suprema Corte brasileira encontra-se na iminência de definir sua posição sobre
o tema, em sentido oposto à literalidade do art. 1.790 do Código Civil. Ao
mesmo tempo, com o julgamento em aberto, ainda é teoricamente possível que os
Ministros revejam suas posições, desconstituindo a aparente maioria. Diante
disso, há numerosas sucessões paralisadas em cartórios brasileiros, que vão se
avolumando a cada dia, enquanto todos aguardam ansiosamente a palavra final do
STF. (...). Se ao Direito das Sucessões não compete, repita-se, proliferar
incertezas, o mesmo se aplica à atuação dos seus intérpretes, convindo ao STF
proferir, o quanto antes, sua decisão final sobre essa matéria tão candente”
(SCHREIBER, Anderson. Sucessão do
companheiro no STF. Disponível em: .
Acesso em 25 de novembro de 2016).
Além dessa necessidade de encerrar o julgamento do tema,
colocando fim a mais de treze anos de debates, é preciso que o STF defina outros
pontos importantes na sua tese final, para fins de repercussão geral. O
primeiro deles diz respeito à inclusão ou não do companheiro como herdeiro
necessário no art. 1.845 do Código Civil, outra tormentosa questão relativa ao
Direito das Sucessões e que tem numerosas consequências. Até o presente momento
não há qualquer menção a tal aspecto na tese fixada, podendo ser extraída tal
conclusão apenas do voto condutor.
O segundo problema é o direito real de habitação do
convivente, também debatido de forma constante nos últimos anos. Sendo certo
que prevalecerá a afirmação de que o companheiro tem tal direito, qual seria a
sua extensão? Terá esse direito porque subsiste no sistema o art. 7º, parágrafo
único, da Lei n. 9.278/1996? Ou lhe será reconhecido esse direito real de forma
equiparada ao cônjuge, por força do art. 1.831 do Código Civil? Como é notório,
os dois dispositivos têm conteúdos distintos, sendo necessário pacificar mais
essa discussão. São questões que a nossa Corte Máxima deve responder. E o mais
rápido possível.
[1]
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP.
Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. Professor da Rede LFG. Diretor do IBDFAM –
Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e
consultor jurídico.