O divórcio como quebra da
base objetiva do testamento
José Fernando Simão. Livre-docente, Doutor e Mestre
pela Faculdade de Direito da USP, onde é Professor Associado. Advogado e
Consultor Jurídico. Diretor Nacional do IBDFAM e do IBDFAMSP.
Na aprazível cidade de Maceió, ao lado do amigo de
longas e profícuas jornadas, Zeno Veloso, e sua mulher, Lilian, estávamos nos
preparando para conhecer o Museu de Arte Sacra Pierre Chalita, quando Zeno
lança questão inquietante:
“Simão, tu que és sabido em matéria de sucessões,
responde esta: sujeito faz um testamento, casado, com filhos, e deixa a
parte disponível para sua esposa. O testamento tinha apenas esse objetivo e
mais nada. Depois de alguns anos, o casamento naufraga e eles se divorciam. O
testador morre sem ter revogado o testamento. Pergunto: o ex-cônjuge recebe a
herança testada?”.
A questão é espinhosa e merece alguma reflexão.
Efetivamente, o argumento pela manutenção da eficácia do testamento é forte. O
testador não revogou o testamento, não lhe retirou a eficácia, o que poderia
ter feito após o divórcio. Assim, o testador quereria ver a deixa produzir
todos os efeitos após a sua morte. Não é essa, em regra, a orientação adequada.
Para explicar a questão, precisamos partir de duas premissas.
1. Quebra da base objetiva e os Coronation
Cases
A primeira premissa é que o testamento, assim como
contrato, é negócio jurídico, e nesse ponto não há qualquer controvérsia. Não
só Pontes de Miranda como Antonio Junqueira de Azevedo, cada um por meio
de uma visão do instituto, concluem que o testamento é realmente negócio
jurídico. Na linguagem ponteana, é a autorregulamentação da vontade da pessoa,
que pretende certos efeitos e, por isso, se vale do testamento.
O testamento revela a vontade declarada do testador
que não pretender ver, em sua sucessão, a vontade presumida pela lei (vocação
hereditária, por exemplo) ser aplicada. O negócio jurídico causa mortis tem
o condão de afastar a incidência das regras da sucessão legítima que são
sucedâneas, supletivas à vontade do de cujus.
É por isso que o testamento, assim como o contrato,
nasce da vontade, e seus efeitos decorrem da vontade. É fruto da autonomia
privada[1].
A segunda premissa diz respeito à velha e repisada
(muitas vezes malpisada) cláusula rebus sic stantibus[2]. A premissa dos contratos é que esses
devem ser cumpridos, porque obrigam (pacta sunt servanda). Contudo, se
alteradas as circunstâncias fáticas entre o momento da formação e da execução,
o contrato pode se extinguir, resolver, pois o contrato só obriga estando assim
as coisas, rebus sic stantibus.
A cláusula, fruto da contribuição dos canonistas ao
Direito Civil, nasce na Idade Média e é retomada nos fins do século XIX, quando
dos trabalhos de codificação do BGB. A partir dessa cláusula medieval, surgem
modernas teorias: pressuposição, base do negócio (objetiva e subjetiva), bem
como a teoria da imprevisão.
Essa última, de grande aplicação na França, tem seu
ápice com a Lei Faillot,que permitia a revisão e extinção de todos
os contratos após a 1ª Guerra Mundial. Tem por inspiração a decisão do Conselho
de Estado a respeito do preço do gás fornecido em Bordeaux. A mais alta
instância decisória administrativa permitiu que o preço fosse reajustado por
força da guerra, evento imprevisível e que altera substancialmente o preço do
gás.
A quebra da base objetiva do negócio teve sua
aplicação nos famosos Coronation Cases quando da coroação do
Rei Eduardo VII, na Inglaterra[3]. A coroação de um monarca é espetáculo de
grande apreço entre os britânicos. Eduardo VII sucedera sua mãe, a Rainha
Vitória[4], monarca mais longeva da História daquele
povo, após 64 anos de reinado. Para assistir ao desfile de coroação (26 de
junho de 1902), contratos de locação da varanda (balcony) foram
celebrados entre os proprietários de imóveis (locadores) e pessoas que queriam
uma visão privilegiada do cortejo (locatários).
Contudo, por motivos de saúde do Monarca[5], a coroação foi adiada para agosto
daquele ano. O problema jurídico que surgiu foi saber se o pagamento do preço
deveria ser pago pelos locatários. Para os locadores, não houve perda do objeto
do contrato, nem sua impossibilidade, já que o uso das varandas prosseguia
possível. Para os locatários, apesar de possível o uso era inútil, já que a coroação
não ocorreria e desfile não haveria.
A solução jurídica adotada foi a adoção da teoria
da quebra objetiva do negócio, como desdobramento histórico da velha cláusula rebus.
Ninguém havia locado varandas para utilizar a varanda como espaço de lazer. A
locação tinha um único objetivo: a visão privilegiada do cortejo real. Isso
porque, normalmente, para se ver um cortejo real, o volume de pessoas e a
aglomeração é tão grande que praticamente nada se vê.
Mudou a base objetiva porque mudaram as circunstâncias.
A locação tinha por base a passagem do cortejo real. Sem a passagem do cortejo,
frustrou-se o fim contratual, e o contrato é considerado extinto, resolvido,
sem o dever de se pagar o aluguel.
2. Quebra da base objetiva e o divórcio
No caso em questão, temos um testamento em que o
testador nomeia como herdeira “sua esposa”, “sua mulher”, Maria. Contudo, após
o testamento ocorreu o divórcio, e o testamento não foi alterado, manteve-se
inalterado. A pergunta que se faz é se há ineficácia do testamento em razão do
divórcio. Haveria caducidade em decorrência do divórcio superveniente?
Cabe a interpretação da vontade do morto para a
solução da questão. Deixar bens “para minha esposa, minha mulher” significa que
a vontade do testador não era de beneficiar Maria, mas sua mulher, com quem
dividia a comunhão de vida, com quem tinha convivência more uxorio,
baseada no vínculo de afeto. A vontade perde seu substrato fático, há uma
mudança das condições objetivas do testamento. Entre a formação e a eficácia do
testamento mudaram as bases objetivas, as circunstâncias. Logo, o testamento
perdeu seus efeitos. É clara situação de caducidade.
Situação distinta se verifica se o testamento já é
feito após o divórcio ou separação de fato do casal. Nessas hipóteses, a
vontade do testador é clara: ele quer beneficiar Maria, e não sua mulher.
Assim, o testamento permanece eficaz.
Todavia, podemos avançar no raciocínio com algumas
ponderações: se o casal se divorcia, mas prossegue convivendo em união estável,
o que ocorre com o testamento? A situação é mais comum do que parece. O casal
pode se divorciar inclusive por força de eventuais credores, mas prosseguir com
a convivência familiar, sob a forma de união estável. Pode, ainda, o casal se
divorciar e, por razões do coração, se reconciliar não por meio de novo
casamento, mas de união estável.
Nessas hipóteses em que, no momento da morte a
comunhão de vidas prosseguia, mesmo após o divórcio, a qualidade de herdeiro se
mantém.
Assim, como fica a resposta a Zeno Veloso? Cada
caso é um caso? Não, casuística não é ciência, é casuística.
Há uma presunção relativa de caducidade
(ineficácia) do testamento quando o divórcio ocorre, porque a base do negócio
jurídico se alterou. Mudaram as condições fáticas entre a existência do
testamento e sua posterior eficácia mortis causa. Entretanto, se a
comunhão de vida prossegue, se após o divórcio mantém-se, a convivência more
uxório, cabe ao sobrevivente provar tal fato afastando a presunção relativa de
caducidade do testamento.
Por fim, se o próprio testador informar que após o
divórcio o cônjuge deixa de ser herdeiro ou que mesmo após o divórcio o
ex-cônjuge mantém a qualidade de herdeiro, dúvida não há que prevalecerá a
vontade declarada do morto.
De qualquer forma, terminamos a manhã no Museu de
Arte Sacra de Maceió. Museu fantástico, que vale a visita.
[2] In contractus qui habent tractum
sucessivum et dependentia de futuro, rebus sic stantibus inteliguntur.
[4] A Rainha Vitória só foi ultrapassada
recentemente por Elizabeth II, cujo reinado se iniciou em 1952 e ainda
prossegue.
[5] O Rei Eduardo, obeso e fumante contumaz,
passou por uma operação em razão de problemas estomacais.
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