quarta-feira, 29 de junho de 2022

OS ENUNCIADOS DE DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES APROVADOS NA IX JORNADA DE DIREITO CIVIL

 

OS ENUNCIADOS DE DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES APROVADOS NA IX JORNADA DE DIREITO CIVIL

 

Flávio Tartuce[1]

 

 

Nos últimos dias 19 e 20 de maio de 2022, ocorreu em Brasília a IX Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, vinculado ao Superior Tribunal de Justiça. Como tenho destacado em vários escritos, trata-se do evento mais importante do Direito Civil Brasileiro, com a aprovação de enunciados doutrinários que têm sido muito utilizados por julgadores de todo o País.

As Jornadas de Direito Civil representam hoje a principal ponte de diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, muitas vezes antecipando tendências que se concretizam anos depois, na prática do Direito Privado Nacional. A iniciativa de sua criação foi do saudoso Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr., que sempre deve ser homenageado, como professor, autor de obras de relevo e grande magistrado.

Essa foi a maior de todas as Jornadas do Conselho da Justiça Federal, tendo sido enviadas mais de novecentas propostas e aprovados quarenta e nove enunciados. Dela participaram ministros do Superior Tribunal de Justiça, desembargadores, juízes, promotores de Justiça, procuradores, advogados, professores de todo o País e estudantes, em sete comissões: Parte Geral e LINDB, Obrigações, Contratos, Responsabilidade Civil, Direito das Coisas e Propriedade Intelectual, Família e Sucessões, Direito Digital e Novos Direitos. Foram comemorados os vinte anos do Código Civil e da criação da própria Jornada. Foi também um momento muito especial, pois a IX Jornada foi o primeiro grande evento jurídico depois de dois anos de dura pandemia. Muitos dos seus participantes não se encontravam pessoalmente desde 2019 ou desde o início de 2020.

A coordenação geral foi do Ministro Jorge Mussi, Vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça e Diretor do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. A coordenação científica coube aos Ministros Luis Felipe Salomão, Paulo de Tarso Sanseverino e Marco Aurélio Bellizze, das Turmas de Direito Privado do Tribunal. A comissão de Direito de Família e das Sucessões foi presidida pelo Ministro Mauro Campbell Marques, com o auxílio na coordenação dos juristas Professores Otavio Luiz Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo e Maria Berenice Dias. A relatoria da comissão coube ao Professor e Magistrado Pablo Stolze Gagliano. Após as votações na própria comissão e na plenária final – muito intensas –, foram aprovados seis enunciados doutrinários, que passo a analisar brevemente, com foco nas suas próprias justificativas, e sem prejuízo de novas reflexões futuras.

O primeiro deles, o Enunciado n. 671, analisa o art. 1.583, § 2º, do Código Civil, prevendo que "a tenra idade da criança não impede a fixação de convivência equilibrada com ambos os pais". Como está em suas justificativas, "a lei não faz menção ou restrição à idade da criança como limitador ao direito de convivência. Todavia, em fixação de convivência de bebês ou crianças de tenra idade, o que se vê é o estabelecimento de regimes restritíssimos, com a fixação de poucas horas mensais para o convívio. A situação é especificamente grave quanto à convivência fixada em favor dos pais homens, tendo em vista a questão sociológica enraizada que, equivocadamente, atribui apenas à mulher a capacidade para o cuidado. O bebê, que está começando a descobrir o mundo, tem condições psicoemocionais de criar laços de afinidade com seus familiares e demais pessoas que o cercam. É, portanto, na tenra idade que o petiz construirá os vínculos mais fortes e duradouros de sua vida. O tempo tem outra dimensão para as crianças pequenas. Cada dia perdido por um dos genitores é um momento de exploração, aprendizado e vinculação. O infante precisa de sua mãe e de seu pai para que seu desenvolvimento seja saudável".

A questão colocada pelo enunciado tem sido debatida em nossos Tribunais, o que foi intensificado nos últimos dois anos, sobretudo em virtude dos desafios decorrentes da pandemia para a convivência de pais e filhos. Em um primeiro aresto ilustrativo, o Tribunal Paulista ampliou a convivência do pai com filho de tenra idade no seguinte contexto fático: "Mudança de contexto social e do quadro de saúde pública. Perícia psicológica e social determinada, mas ainda não realizada. Mais de 1 (um) ano sem contato físico entre pai e filho de tenra idade. Prejuízo ao vínculo afetivo e desenvolvimento psicológico da criança. Observância do melhor interesse do menor. Majoração das visitas presenciais para 1 vez por semana, aos sábados, por 6 horas" (TJSP, Agravo de Instrumento n. 2207243-45.2021.8.26.0000, Acórdão n. 15768665,  São José dos Campos, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Piva Rodrigues, julgado em 17/06/2022, DJESP 22/06/2022, p. 2265). Também se tem entendido que a alteração no regime de guarda ou convivência em se tratando de criança de tenra idade somente se justifica em casos excepcionais, como se retira dos seguintes acórdãos:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO DE GUARDA E DIREITO DE VISITAS. Tutela provisória parcialmente deferida para fixar a guarda compartilhada com lar de referência materno e regulamentar o direito provisório de convivência do genitor – insurgência do genitor – pedido de fixação de guarda unilateral ou de inversão do lar de referência. Ausência de prova de situação de risco ou abuso ao infante na companhia materna – art. 1.585, CC – situação de fato – criança de tenra idade (dois anos) sob os cuidados da genitora desde o nascimento – modificação de situação fática somente em situações excepcionais de risco – hipótese não configurada no caso – inexistência de fatos que desabonem a conduta da genitora. Necessidade de prévia instrução probatória – regime de convivência assegurado e ampliado por decisão ulterior – recurso conhecido e desprovido" (TJPR, Recurso n. 0070590-49.2021.8.16.0000, Curitiba, Décima Segunda Câmara Cível,  Relª Desª Rosana Amara Girardi Fachin, julgado em 13/06/2022, DJPR 14/06/2022).

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. FAMÍLIA. AÇÃO DE GUARDA, REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS E HOMOLOGAÇÃO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS PATERNAS. CRIANÇA DE TENRA IDADE, EM FASE DE ALEITAMENTO MATERNO. VISITAS SEM PERNOITE. CABIMENTO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. A fim de preservar a necessária convivência entre pai e filha, deve ser regularizada a visitação paterna, devendo ser mantida, nos termos em que fixada pelo juízo singular. Hipótese em que a convivência paterna foi estabelecida às terças e quintas-feiras, das 18h30min às 20h30, na residência da genitora, bem como aos sábados, das 16h às 18h, também na residência da genitora, não havendo motivos que ensejem a reanálise da questão, razão pela qual mantém-se a decisão, em seu inteiro teor. Ausentes elementos que evidenciem a ocorrência de risco ou maus-tratos à menor, devida a visitação do pai à filha, nos termos do pedido inicial, salientando-se que eventuais alterações, desde que devidamente comprovadas, em demonstrado prejuízo ao melhor interesse da criança, poderão ensejar a reanálise da questão. Inteligência do art. 1.589 do Código Civil. Precedentes do TJRS. Agravo de instrumento desprovido" (TJRS, Agravo de Instrumento n. 5112820-95.2022.8.21.7000, Uruguaiana, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro, julgado em 08/06/2022, DJERS 08/06/2022).

Como se observa, os arestos destacam a necessidade de se observar o princípio do melhor interesse da criança nas hipóteses descritas, podendo o enunciado trazer essa menção, como foi sugerido na plenária da IX Jornada, mas não foi atendido. De todo modo, tal regramento deve sempre ser observado, orientando a interpretação da ementa doutrinária e de outros temas relacionados à guarda de filhos.

O segundo enunciado aprovado foi o de número 672, preceituando que "o direito de convivência familiar pode ser estendido aos avós e pessoas com as quais a criança ou adolescente mantenha vínculo afetivo, atendendo ao seu melhor interesse". Cancelou-se, assim, o Enunciado n. 333, da IV Jornada de Direito Civil, que, em vez de mencionar a convivência, utilizava o termo "visita". Na verdade essa é a expressão utilizada também pelo art. 1.589, parágrafo único, do Código Civil, incluído pela Lei n. 12.398/2011: "o direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente". O enunciado, assim, pode motivar a mudança legislativa, estando justificado pelo fato de que, "embora seja da tradição do Direito de Família nomear o direito do pai ou mãe, mesmo dos avós ou outros, que não detêm a guarda, como direito de visita, a expressão legal não corresponde ao direito de convivência familiar assegurado à criança, ao adolescente e ao jovem no art. 227, caput, da Constituição da República. O direito-dever de convivência familiar estende-se a todos aqueles que mantêm vínculo afetivo com a criança e adolescente".

Ainda a respeito de questões atinentes ao poder familiar ou autoridade parental, o novo Enunciado n. 673 prevê que "na ação de destituição do poder familiar de criança ou adolescente que se encontre institucionalizado, promovida pelo Ministério Público, é recomendável que o juiz, a título de tutela antecipada, conceda a guarda provisória a quem esteja habilitado para adotá-lo, segundo o perfil eleito pelo candidato à adoção". A norma diz respeito aos arts. 1.635 e 1.638 do Código Civil, que tratam da extinção do poder familiar, procurando efetivar a adoção por meio da concessão de tutela de urgência, o que vem em boa hora. 

Sobre o tema do regime de bens, aprovou-se o Enunciado n. 674: "comprovada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o ressarcimento a ser pago à vítima deverá sair exclusivamente da meação do cônjuge ou companheiro agressor". As justificativas destacam as indenizações por dano moral fixadas contra o agressor, o que decorre do art. 9º, §§ 4º e 5º, da Lei Maria da Penha. Em complemento, o § 6º da mesma norma específica enuncia que essa indenização fixada  "não poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes", estando no último preceito o fundamento principal da ementa doutrinária.

Penso que essa última tese é muito importante, sem dúvidas, mas faltaram outros enunciados quanto ao sempre divergente tema do regime de bens. Infelizmente, duas propostas a respeito da comunicação de verbas, como FGTS e previdência privada, foram rejeitadas na plenária da IX Jornada, no meu entender sem razão, pois traziam o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência.

Conforme o Enunciado n. 675, "as despesas com doula e consultora de amamentação podem ser objeto de alimentos gravídicos, observado o trinômio da necessidade, possibilidade e proporcionalidade para sua fixação". A doula é uma profissional que acompanha a gestante durante todo o período de gravidez, o parto e o pós-parto, oferecendo suporte emocional nesses momentos. Na mesma linha, há a atuação da consultora de amamentação. As justificativas da proposta estão baseadas em recomendações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde, para a efetivação do que se denomina parto humanizado, havendo nesse ponto razões para que as despesas com sua contratação recaiam sobre os alimentos gravídicos, tratados pela Lei n. 11.804/2009. Apesar da denominação da última norma, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que esses alimentos visam ao essencial não só para a gestante como também ao nascituro: "os alimentos gravídicos, previstos na Lei n. 11.804/2008, visam a auxiliar a mulher gestante nas despesas decorrentes da gravidez, da concepção ao parto, sendo, pois, a gestante a beneficiária direta dos alimentos gravídicos, ficando, por via de consequência, resguardados os direitos do próprio nascituro" (STJ, REsp n. 1.629.423/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 06/06/2017, DJe de 22/06/2017).

Como última ementa aprovada, a única sobre Direito das Sucessões, o Enunciado n. 676 interpreta o conteúdo do art. 1.836,  § 2º, do Código Civil. Nos termos do seu caput, "na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente". E, consoante o seu § 2º, "havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna". A atual redação do comando é insuficiente para resolver as situações sucessórias relativas a casamentos ou uniões estáveis homoafetivas e à multiparentalidade, reconhecidas em julgamentos do Supremo Tribunal Federal e consolidadas na realidade do Direito de Família Brasileiro (Informativos n. 625 e 840 da Corte, respectivamente).

 Isso porque pode haver mais de uma linha paterna e mais de uma linha materna em hipóteses de sucessão. Para resolver o problema, o novo Enunciado n. 676 estabelece que "a expressão ‘diversidade em linha’, constante no § 2º do art. 1.836 do Código Civil, não deve mais ser restrita à linha paterna e à linha materna, devendo ser compreendidas como ‘linhas ascendentes’". Essa é, na minha opinião, uma das propostas mais importantes do ponto de vista prático, de todas as que foram aprovadas na IX Jornada de Direito Civil e em todas as comissões temáticas.  

Como bem observou Anderson Schreiber, essa foi a Jornada em que prevaleceram teses relativas aos direitos das mulheres, sobretudo em temas de Direito de Família. Conforme escreveu: "entre os muitos aspectos desta Jornada, um deles parece digno de especial atenção: a aprovação de numerosos enunciados voltados à tutela dos direitos fundamentais das mulheres" (SCHREIBER, Anderson. A Jornada dos Direitos da Mulher. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/anderson-schreiber-jornada-dos-direitos-da-mulher.html. Acesso em: 25 jun. 2022). Participando desde a III Jornada de Direito Civil, em 2004 – e de um total de quatorze eventos como esse, incluindo as Jornadas de Direito Processual Civil, de Direito Comercial e de Solução Extrajudicial das Controvérsias –, tenho constatado que as Jornadas trazem sempre para debate temas de relevo em cada momento de sua realização, o que confirma as palavras de Schreiber. Algumas das teses ganham força e são efetivamente aplicadas pela jurisprudência nacional. Outras não, pois o tempo e a práxis acabam fazendo essa separação e seleção, pela experiência e concretude do Direito Civil.

Com isso atende-se aos objetivos da Jornada, desde quando foi concebida pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. e muito bem sinalizados pelo Ministro Luis Felipe Salomão em texto que acompanha a publicação dos enunciados: "a principal função jurisdicional do STJ é ser o último intérprete da legislação infraconstitucional, adequando as normas extraídas dos textos legais ao contexto social, econômico, ambiental, tecnológico e político da realidade contemporânea brasileira. Cabe ao Tribunal da Cidadania garantir a efetividade e a aplicabilidade das leis, conferindo sentido ao direito de forma atual e permitindo um ambiente salutar de resolução de litígios, do qual a segurança jurídica deve ser pilar inabalável. As Jornadas possibilitam – por meio de profunda e democrática atividade dialógica – expor a compreensão moderna do arcabouço normativo, temperado pelo que há de mais inovador na comunidade científica” (Caderno da IX Jornada de Direito Civil. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/assets/uploads/enunciados/4de29-caderno-ix-jonrada-de-direito-civil..pdf. Acesso em: 25 jun. 2022).

Espero que as Jornadas continuem a cumprir essa sua função, de motivar o debate científico e prático do Direito Civil, colaborando para a resolução dos problemas das pessoas, vocação natural dos civilistas. 



[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Diretor-Geral da ESAOABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

terça-feira, 28 de junho de 2022

RESUMO. INFORMATIVO 742 DO STJ.

 RESUMO. Informativo 742 DO STJ. 27 de junho de 2022.

RECURSOS REPETITIVOS

Processo

REsp 1.846.123-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 22/06/2022. (Tema 1082)

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR

· Tema

Contrato de plano de saúde (ou seguro saúde) coletivo. Cancelamento unilateral por iniciativa da operadora. Tratamento médico pendente. Doença grave. Continuidade dos cuidados. Obrigatoriedade. Tema 1082

DESTAQUE

A operadora, mesmo após o exercício regular do direito à rescisão unilateral de plano coletivo, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, até a efetiva alta, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação devida.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A questão jurídica a ser dirimida cinge-se a definir a possibilidade ou não de cancelamento unilateral - por iniciativa da operadora - de contrato de plano de saúde (ou seguro saúde) coletivo enquanto pendente tratamento médico de usuário acometido de doença grave.

Os incisos II e III do parágrafo único do artigo 13 da Lei n. 9.656/1998 são taxativos em proibir a suspensão de cobertura ou a rescisão unilateral imotivada - por iniciativa da operadora - do plano privado de assistência à saúde individual ou familiar.

De acordo com a dicção legal, apenas quando constatada fraude ou inadimplência, tal avença poderá ser rescindida ou suspensa, mas, para tanto, revelar-se-á necessário que o usuário - titular ou dependente - não se encontre internado (ou submetido a tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou da manutenção de sua incolumidade física, na linha de precedentes desta Corte).

Por sua vez, o seguro ou plano de saúde coletivo - com quantidade igual ou superior a 30 beneficiários - pode ser objeto de suspensão de cobertura ou de rescisão imotivadas (ou seja, independentemente da constatação de fraude ou do inadimplemento da contraprestação avençada), desde que observados os requisitos enumerados no artigo 17 da Resolução Normativa DC/ANS n. 195/2009: (i) existência de cláusula contratual prevendo tal faculdade para ambas as partes; (ii) decurso do prazo de doze meses da vigência do pacto; e (iii) notificação da outra parte com antecedência mínima de sessenta dias.

Conquanto seja incontroverso que a aplicação do parágrafo único do artigo 13 da Lei n. 9.656/1998 restringe-se aos seguros e planos de saúde individuais ou familiares, sobressai o entendimento de que a impossibilidade de rescisão contratual durante a internação do usuário - ou a sua submissão a tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou da manutenção de sua incolumidade física -, também alcança os pactos coletivos.

Com efeito, em havendo usuário internado ou em pleno tratamento de saúde, a operadora, mesmo após exercido o direito à rescisão unilateral do plano coletivo, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais até a efetiva alta médica, por força da interpretação sistemática e teleológica dos artigos 8º, § 3º, alínea "b", e 35-C, incisos I e II, da Lei n. 9.656/1998, bem como do artigo 16 da Resolução Normativa DC/ANS n. 465/2021.

A aludida interpretação também encontra amparo na boa-fé objetiva, na segurança jurídica, na função social do contrato e no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o que permite concluir que, ainda quando haja motivação idônea, a suspensão da cobertura ou a rescisão unilateral do plano de saúde não pode resultar em risco à preservação da saúde e da vida do usuário que se encontre em situação de extrema vulnerabilidade.

Nessa perspectiva, no caso de usuário internado ou submetido a tratamento garantidor de sua sobrevivência ou da manutenção de sua incolumidade física, o óbice à suspensão de cobertura ou à rescisão unilateral do plano de saúde prevalecerá independentemente do regime de sua contratação - coletivo ou individual -, devendo a operadora aguardar a efetiva alta médica para se desincumbir da obrigação de custear os cuidados assistenciais pertinentes.

Quando houver o cancelamento do plano privado coletivo de assistência à saúde, deverá ser permitido aos usuários a migração para planos individuais ou familiares, observada a compatibilidade da cobertura assistencial e a portabilidade de carências, desde que a operadora comercialize tal modalidade de contrato e o consumidor opte por se submeter às regras e aos encargos peculiares da avença (AgInt no REsp n. 1.941.254/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 11/11/2021, DJe de 18/10/2021; e REsp n. 1.471.569/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 1º/03/2016, DJe de 07/03/2016).

Por sua vez, o inciso IV do artigo 8º da Resolução Normativa DC/ANS n. 438/2018 preceitua que, em caso de rescisão do contrato coletivo por parte da operadora ou da pessoa jurídica estipulante, a portabilidade de carências "deverá ser requerida no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da data da ciência pelo beneficiário da extinção do seu vínculo com a operadora", não se aplicando os requisitos de "existência de vínculo ativo com o plano de origem", de "observância do prazo de permanência" (período ininterrupto em que o beneficiário deve permanecer vinculado ao plano de origem para se tornar elegível ao exercício da portabilidade de carências) nem de "compatibilidade por faixa de preço", previstos no artigo 3º do ato normativo.

Em tal hipótese, caberá à operadora - que rescindiu unilateralmente o plano coletivo e que não comercializa plano individual - comunicar, diretamente, aos usuários sobre o direito ao exercício da portabilidade, "indicando o valor da mensalidade do plano de origem, discriminado por beneficiário", assim como o início e o fim da contagem do prazo de 60 dias (artigo 8º, § 1º, da Resolução Normativa DC/ANS n. 438/2018).

A outra situação apta a exonerar a operadora de continuar a custear os cuidados assistenciais prestados ao usuário submetido a internação ou a tratamento de saúde - iniciados antes do cancelamento do pacto coletivo -, consiste na existência de contratação de novo plano pelo empregador com outra operadora.

Deveras, consoante cediço nesta Corte, em havendo a denúncia unilateral do contrato de plano de saúde coletivo empresarial, "é recomendável ao empregador promover a pactuação de nova avença com outra operadora, evitando-se prejuízos aos seus empregados (ativos e inativos), que não precisarão se socorrer da portabilidade ou da migração a planos individuais, de custos mais elevados" (EDcl no AgInt no REsp n. 1.941.254/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 29/11/2021, DJe de 1º/12/2021; e REsp n. 1.846.502/DF, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 20/04/2021, DJe de 26/04/2021).

TERCEIRA TURMA

Processo

Processo sob segredo de justiça, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 21/06/2022, DJe 23/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Investigação de paternidade. Anulatória de registro civil. Independência. Possibilidade jurídica do pedido.

DESTAQUE

Independentemente do desfecho da ação anulatória de registro civil, não há que se falar em impossibilidade jurídica de pedido investigatório de paternidade.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

O STJ já proclamou que a ação de investigação de paternidade ajuizada pelo pretenso filho contra o suposto pai é manifestação concreta dos direitos à filiação, à identidade genética e à busca da ancestralidade, que compõem uma parcela muito significativa dos direitos da personalidade, que, sabidamente, são inalienáveis, vitalícios, intransmissíveis, extrapatrimoniais, irrenunciáveis, imprescritíveis e oponíveis erga omnes (REsp 1.893.978/MT, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 29/11/2021).

É absolutamente lícito a autora perseguir seu indisponível e personalíssimo direito a busca da sua ancestralidade, consubstanciado no reconhecimento do seu estado de filiação, que pode ser realizado sem restrições independentemente da pré-existência ou superveniência de eventual vínculo registral, podendo perfeitamente coexistirem as respectivas demandas, que são plenamente compatíveis.

Essa possibilidade de coexistência de ações relacionadas ao direito pleno de busca do vínculo de filiação já foi objeto de deliberação por esta Corte Superior, que proclamou que a existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética, ou seja, de reconhecimento da paternidade.

Processo

Processo sob segredo de justiça, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 21/06/2022, DJe 23/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Tema

Acolhimento institucional de menor de tenra idade. Aparente adoção à brasileira e indícios de burla ao cadastro nacional de adoção. Ilegalidade. Primazia do acolhimento familiar. Ausência de risco à integridade física ou psíquica do infante. Princípio do melhor interesse e de proteção integral da criança e do adolescente. Perigo de contágio pelo coronavírus (covid-19).

DESTAQUE

O risco real de contaminação pelo coronavírus (covid-19) em casa de abrigo justifica a manutenção de criança de tenra idade com a família substituta, apesar da suposta irregularidade/ilegalidade dos meios empregados para a obtenção da guarda da infante.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Inicialmente, deve-se observar que, no caso, a determinação de acolhimento institucional se justificou unicamente pela presença de indícios de burla ao cadastro de adoção, não tendo sido cogitado qualquer risco físico ou psicológico à criança.

Embora, na hipótese, estivesse zelando pela observância do procedimento legal de adoção, há que se convir que o deferimento de liminar nos autos da ação para medida de proteção de acolhimento institucional, determinando a imediata busca e apreensão do menor, sem ao menos realizar um estudo psicossocial ou verificar a possibilidade de concessão da guarda provisória aos postulantes, certamente não atendeu o melhor interesse da criança.

Assim, não obstante a suposta irregularidade/ilegalidade dos meios empregados para a obtenção da guarda da infante, é do seu melhor interesse a sua permanência no lar da família que a acolheu desde os primeiros dias de vida.

Verifica-se, portanto, que a suposta guarda irregular do infante não lhe trouxe prejuízo, mas, ao contrário, atendeu aos seus superiores interesses.

Aliás, em questões afetas a crianças e adolescentes, é da tradição das decisões desta Corte sobrelevar, sempre, o melhor interesse do menor, em atenção à proteção integral e à diretiva estabelecida no art. 6º da Lei n. 8.069/90, segundo a qual: "Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento."

A interpretação que melhor atende ao microssistema consubstanciado no ECA e a teleologia de suas normas é aquela que não veda que, em hipóteses que refujam das previstas nos seus três incisos do § 13º do art. 50, no melhor interesse do infante, possa se dar andamento ao pedido de adoção, investigando se os pretendentes reúnem condições de ser pais e, ainda, se os interesses do menor confluem com os dos pretendentes.

O escopo deste cadastro, certamente, é acelerar o processo de adoção, torná-lo mais seguro e cristalino, procedendo-se a uma prévia análise dos pretendentes à paternidade e maternidade, cadastro este que, ainda, é fiscalizado pelo Ministério Público.

Não pode, no entanto, tornar-se o cadastro em um fim em si mesmo, especialmente quando a realidade informar que a adoção por aqueles que ali não estão inscritos - em que pese aptos a cuidar, respeitar, proteger e auxiliar no desenvolvimento seguro do adotando, com o afeto que toda criança e adolescente é merecedor - esteja em sintonia com os interesses da criança.

Aqui, verifica-se que o único motivo para a adoção de medida de proteção mais drástica foi a burla ao cadastro de adoção e a suspeita de entrega irregular pela genitora, em contrariedade ao disposto no art. 34, §1º, do ECA, e a própria orientação jurisprudencial desta Corte. Neste momento de situação pandêmica, portanto, apesar da aparência da chamada "adoção à brasileira", é preferível e recomendada a manutenção da criança em um lar já estabelecido, com uma família que a deseja como membro.

Processo

REsp 1.940.391-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 21/06/2022, DJe de 23/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO DO CONSUMIDOR

Tema

Plano de saúde coletivo empresarial. Direito de manutenção. Contratação de empregado já aposentado. Ausência de contribuição para o plano de saúde a título de mensalidade. Manutenção do usuário por tempo indeterminado por força de documento escrito (termo de opção). Exclusão unilateral do usuário após dois anos de permanência sob o argumento de contrariedade à lei. Abusividade da exclusão

DESTAQUE

É abusiva a exclusão unilateral do usuário, quando seu direito de manutenção tem amparo contratual, pactuado/firmado no "Termo de Opção", e o rompimento unilateral do vínculo somente seria admitido nas hipóteses previstas na RN ANS n. 195/2008.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A controvérsia é pertinente à abusividade da exclusão unilateral de usuário que, na condição de ex-empregado, foi mantido no plano de saúde por força de documento escrito que lhe assegurou o direito de permanecer no plano por tempo indeterminado, embora não tivesse contribuído para o plano de saúde na vigência do contrato de trabalho, que durou menos de dez anos.

Inicialmente, esclareça-se que o ponto de partida é a exegese do referido "Termo de Opção" o qual contempla a previsão de vigência do plano da saúde por prazo indeterminado.

Nos termos dos arts. 30 e 31 da Lei n. 9.656/1998, o ex-empregado demitido tem direito de ser mantido no plano de saúde pelo prazo máximo de 24 meses, ao passo que o aposentado tem o mesmo direito pelo tempo que contribuiu para o plano, ou por prazo indeterminado, caso tenha contribuído por mais de dez anos.

Após atendidos esse requisitos legais, a lei confere ao usuário do plano de saúde o direito subjetivo de ser mantido no plano de saúde, independentemente da manifestação de vontade da operadora. A lei não veda, entretanto, que a operadora venha a admitir o direito de manutenção em outras hipóteses. Nesse sentido, a própria norma ressalva os direitos previstos em negociação coletiva de trabalho.

No caso, a permanência do usuário no plano de saúde estava assegurada por uma norma contratual, firmado no "Termo de Opção", previsto no regulamento do plano de saúde, e formalizado entre o usuário e a empresa estipulante. Além disso, no âmbito infralegal, a Resolução CONSU n. 20/1999 (vigente à época dos fatos) previa a possibilidade de o regulamento do plano assegurar ao usuário demitido o direito de permanecer vinculado por prazo indeterminado, não obstante o prazo máximo de 24 meses previsto em lei.

Por outro lado, é certo que o conteúdo do "Termo de Opção" pode ter extrapolado os limites contratuais do regulamento do plano de saúde, pois concedeu direito de manutenção por prazo indeterminado a um usuário que não permaneceu no plano por mais de dez anos, e nem sequer contribuiu para o plano nesse período.

Esse fato, contudo, não autorizaria a operadora a excluir unilateralmente o usuário do plano de saúde, pois a exclusão unilateral de usuário só está prevista para as hipóteses taxativamente previstas na regulação, especificamente na Resolução Normativa n. 195/2009.

QUARTA TURMA

Processo

REsp 1.525.638-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 14/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Fiança. Necessidade de outorga conjugal. Fiador empresário ou comerciante. Irrelevância. Segurança econômica familiar. Nulidade do contrato de fiança. Aplicação da Súmula 322/STJ.

DESTAQUE

É necessária a exigência geral de outorga do cônjuge para prestar fiança, sendo indiferente o fato de o fiador prestá-la na condição de comerciante ou empresário, considerando a necessidade de proteção da segurança econômica familiar.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Sabe-se que a necessidade de outorga conjugal para o contrato de fiança, exceto no regime de separação convencional de bens, é estabelecida como exigência geral pelo art. 1.647, III, do CC/2002. A questão a ser apreciada é se, pela dicção do art. 1.642, I, do mesmo diploma legal, o cônjuge, quando no exercício de atividade profissional ou empresarial, está dispensado da autorização do outro cônjuge.

O art. 1.642, I, prevê que tanto o marido quanto a mulher podem praticar todos os atos de disposição e de administração necessários ao desempenho de sua profissão, exceto alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis.

O mesmo art. 1.642, em seu inciso IV, prevê que tanto o marido quanto a mulher podem demandar a rescisão - ou, mais propriamente, a anulação - dos contratos de fiança e doação, assim como a invalidação do aval, realizados pelo outro cônjuge com infração do disposto nos incisos III e IV do art. 1.647. Isso significa, no que interessa ao caso em questão, que, se a fiança for prestada sem a outorga conjugal, o outro cônjuge pode requerer sua anulação, sem que se estabeleça nenhuma espécie de restrição de ordem subjetiva quanto à qualidade de empresário ou comerciante do fiador.

Ao exigir a outorga conjugal para prestar fiança, a legislação civil tem por objetivo a manutenção do patrimônio comum do casal, porquanto nesse tipo de garantia o fiador responde pessoalmente pela dívida. Desta forma, caso a ele fosse permitido prestar fiança livremente, o patrimônio do casal, em sua totalidade, responderia pela obrigação assumida, sem anuência ou nem mesmo ciência do outro cônjuge. Assim, ao se exigir a vênia conjugal há o assentimento em que o patrimônio que também lhe pertence passe a constituir garantia da obrigação assumida.

Por conseguinte, tomada isoladamente, a previsão do art. 1.642, I, do CC/2002 implicaria reconhecer que o fiador poderia comprometer o patrimônio comum do casal se prestasse a fiança no exercício da atividade profissional ou empresarial, mas não poderia fazê-lo em outras situações. Malgrado constitua embaraço ao dinamismo próprio das relações comerciais e empresariais, a exigência da outorga leva em consideração a finalidade de proteção e manutenção do patrimônio comum, exceto se houver anuência do outro cônjuge.

Embora não possa alienar nem gravar de ônus real os bens imóveis - exceto no regime de separação consensual -, o fiador ainda poderia comprometer todo o patrimônio comum, incluindo os bens imóveis, para adimplir a obrigação. Em última análise, permitir que se preste fiança sem a outorga conjugal pode conduzir, por via transversa, à alienação forçada dos bens imóveis do casal, independentemente da anuência e até mesmo do conhecimento do outro cônjuge, que é exatamente o que o estatuto civil pretende evitar com o disposto nos arts. 1.642, I e IV, e 1.647, II.

A disciplina jurídica da sanção pela ausência de outorga no atual Código Civil opera no plano da validade do negócio jurídico, tornando anulável o contrato de fiança firmado sem anuência do outro cônjuge. Somente em casos excepcionais é que a solução referida cede espaço para a acomodação de outros princípios e valores também resguardados pela legislação, como, por exemplo, no caso em que o cônjuge contratante tenha silenciado sobre sua condição de casado, circunstância em que, em observância à boa-fé do credor da obrigação, considera-se apenas ineficaz em relação ao outro cônjuge a fiança prestada (AgRg no REsp 1.507.413/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, DJe 01/09/2015).

Conclui-se pela incidência da Súmula 332 do STJ, editada na vigência do Código Civil de 2002, a qual estabelece que "a fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia". Dessa forma, independentemente da qualidade de que se reveste o fiador, a legislação de regência exige a outorga conjugal, sob pena de nulidade do negócio jurídico.

Processo

REsp 1.955.422-PR, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, por maioria, julgado em 14/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Seguro de dano. Incêndio. Perda total de imóvel. Valor da indenização. Efetivo prejuízo. Momento do sinistro. Princípio indenitário. Arts. 778 e 781 do CC/2002.

DESTAQUE

Em caso de perda total do bem segurado, a indenização securitária deve corresponder ao valor do efetivo prejuízo experimentado no momento do sinistro, observado, contudo, o valor máximo previsto na apólice do seguro de dano, nos termos dos arts. 778 e 781 do CC/2002.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Cinge-se a controvérsia se, no caso de perda total do bem segurado, a indenização securitária deve corresponder ao valor máximo previsto na apólice ou apenas reparar os prejuízos suportados pela segurada.

É certo que, na vigência do Código Bevilaqua, a jurisprudência desta Corte Superior era uníssona no sentido de que, "em caso de perda total de imóvel segurado, decorrente de incêndio, será devido o valor integral da apólice" (REsp 1.245.645/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/05/2016, DJe 23/06/2016).

Contudo, o art. 781 do CC/2002, sem correspondência com o Código Civil de 1916, positivou o princípio indenitário nos contratos de seguro de dano, com o objetivo de impedir o pagamento de indenização em valor superior ao interesse segurado no momento do sinistro.

A razão de ser da norma, segundo ensinamento contido em trabalho doutrinário, foi evitar que o segurado obtivesse lucro com o sinistro, sendo exigido, para tanto, dois tetos limitadores do valor a ser pago a título de indenização: o valor do interesse segurado e o limite máximo da garantia prevista na apólice.

Ressalta a doutrina que o art. 781 do CC/2002 encontra-se em consonância com o princípio indenitário consagrado no art. 778, com a diferença de que este "dispositivo se aplica à fase genética da celebração do seguro, enquanto o art. 781 incide na fase de liquidação. A indenização contratada limita-se ao teto indenizatório contratado, independente do prejuízo concreto. É vedado no contrato de seguro o enriquecimento injustificado do segurado, pois tem como objetivo apenas recompor o seu patrimônio".

Nessa direção, a Terceira Turma desta Corte firmou o entendimento de que, "nas hipóteses de perda total do bem segurado, o valor da indenização só corresponderá ao montante integral da apólice se o valor segurado, no momento do sinistro, não for menor" (REsp n. 1.943.335/RS, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe de 17/12/2021).

Processo

REsp 1.630.706-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 07/06/2022, DJe 13/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Cédulas de crédito bancário. Correção monetária lastreada no índice do Certificado do Depósito Interbancário. CDI. Inaplicabilidade da Súmula 176/STJ. Legalidade da pactuação.

DESTAQUE

Não há vedação à adoção da variação dos Certificados de Depósitos Interbancários - CDI como encargo financeiro em contratos bancários, devendo o abuso ser observado caso a caso, em cotejo com as taxas médias de mercado regularmente divulgadas pelo Banco Central do Brasil para as operações de mesma espécie, o que não ocorre na espécie.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Inicialmente cumpre salientar que, no caso em exame, não se cuida da taxa de juros que era divulgada pela extinta ANBID (Associação Nacional de Bancos), associação que congregava instituições bancárias, o que ensejaria a aplicação da Súmula 176 ("É nula a cláusula contratual que sujeita o devedor à taxa de juros divulgada pela ANBID /CETIP''), mas de cláusula contratual em que pactuado como encargo a variação dos Certificados de Depósitos Interbancários (CDI), indexador inicialmente divulgado pela extinta CETIP e atualmente pela sua sucessora a B3 S/A, variável conforme as oscilações do mercado, não sujeito a manipulações por parte dos bancos.

O voto do Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, no REsp. 1.781.959, Terceira Turma, DJe 20/02/2020, exaure a matéria, demonstrando que a variação dos CDI reflete o custo do dinheiro para as instituições financeiras no mercado interbancário; seu uso como indexador flutuante de contratos bancários é permitido pelo Banco Central, não se tratando de índice que possa ser manipulado pelas instituições financeiras, bem como que se trata de índice cujo cálculo e divulgação é atribuição conferida à Central de Custódia e de Liquidação Financeira de Títulos (CETIP), atualmente incorporada por B3 S.A. - Brasil, Bolsa, Balcão, sob permanente fiscalização do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central, autoridades responsáveis pelo controle de crédito em todas as suas modalidades.

Não se tratando de índice sujeito ao arbítrio da instituição financeira credora ou de sua associação de classe, não se aplica o fundamento que ensejou o entendimento consagrado na Súmula 176, no sentido da nulidade de cláusula contratual que estabeleça como indexador divulgado pela ANBID (Associação Nacional dos Bancos de Investimento).

Dessa forma, não há obstáculo legal à estipulação dos encargos financeiros de cédula de crédito bancário em percentual sobre a taxa média aplicável aos Certificados de Depósitos Interbancários (CDIs), sendo inaplicável a Súmula 176/STJ, devendo eventual abusividade ser verificada em cada caso concreto.

Processo

AgInt no REsp 1.958.516-SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 14/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Execução de título extrajudicial. Bloqueio on line em conta corrente e poupança. Quantia de até 40 (quarenta) salários mínimos. Impenhorabilidade. Art. 833, X do CPC.

DESTAQUE

É possível ao devedor poupar valores sob a regra da impenhorabilidade no patamar de até quarenta salários mínimos, não apenas aqueles depositados em cadernetas de poupança, mas também em conta corrente ou em fundos de investimento, ou guardados em papel-moeda.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A Segunda Seção desta Corte Superior pacificou o entendimento de que "é possível ao devedor poupar valores sob a regra da impenhorabilidade no patamar de até quarenta salários mínimos, não apenas aqueles depositados em cadernetas de poupança, mas também em conta corrente ou em fundos de investimento, ou guardados em papel-moeda" (EREsp 1.330.567/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, DJe de 19/12/2014).

"Nos termos do entendimento jurisprudencial firmado por esta Corte, a abrangência da regra do art. 833, X, do CPC/2015 se estende a todos os numerários poupados pela parte executada, até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, não importando se depositados em poupança, conta-corrente, fundos de investimento ou guardados em papel-moeda, autorizando as instâncias ordinárias, caso identifiquem abuso do direito, a afastar a garantia da impenhorabilidade" (AgInt nos EDcl no AREsp 1.323.550/RJ, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 27/09/2021, DJe 30/09/2021).

Ademais, no que se refere à possibilidade de mitigação da mencionada regra, esta Corte tem entendimento de que a impenhorabilidade pode ser relativizada quando a hipótese concreta dos autos permitir que se bloqueie parte da verba remuneratória do devedor inadimplente, ocasião em que deve ser preservado montante suficiente a assegurar a subsistência digna do executado e sua família.

Processo

Processo sob segredo judicial, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 07/06/2022, DJe 10/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

· Tema

Defensoria Pública. Defesa judicial das prerrogativas institucionais. Mandado de segurança impetrado por Defensor Público. Cabimento. Atribuição não exclusiva do Defensor-Geral. Princípios da unidade e da indivisibilidade.

DESTAQUE

O Defensor Público, atuando em nome da Defensoria Pública, possui legitimidade para impetrar mandado de segurança em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução, atribuição não conferida exclusivamente ao Defensor Público-Geral.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Inicialmente cumpre salientar que, a Defensoria Pública estadual, representada pelo Defensor Público, possui legitimidade para impetrar mandado de segurança em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução, conforme se depreende da leitura do artigo 4°, IX, da Lei Complementar n. 80/1994, que "organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências".

O acórdão recorrido, com base no disposto no art. 100, da Lei Complementar n. 80/1994, entende caberia com exclusividade ao Defensor Público-Geral do Estado a legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança em defesa das funções institucionais do órgão.

Tal compreensão, todavia, não se extrai do sistema da Lei Complementar n. 100/1994, cujo art. 3° dispõe que são princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

Nesse sentido, a doutrina afirma que "em virtude da unidade da Instituição, os atos praticados pelo Defensor Público no exercício de suas funções não devem ser creditados ao agente, mas atribuídos à própria Defensoria Pública a qual integra", o que é reforçado também pelo princípio da indivisibilidade, corolário daquele, que estabelece que, "quando um membro da Defensoria Pública atua, quem na realidade está atuando é a própria Defensoria Pública; por isso, a doutrina tem reconhecido a fungibilidade dos membros da Instituição".

O art. 100 da Lei Complementar n. 80/1994, ao atribuir ao Defensor Público-Geral a representação judicial da Defensoria Pública do Estado, não exclui a legitimidade dos respectivos órgãos de execução - os defensores públicos atuantes perante os diversos juízos - de impetrar mandado de segurança na defesa da atuação institucional do órgão.

Caso se cuidasse de discussão a propósito de ato da esfera de competência do próprio Defensor Público-Geral, como a lotação de defensores pelas comarcas, a legitimidade para representar judicialmente a instituição seria privativa da referida autoridade. Como exemplos, citam as razões de recurso as ações civis públicas ajuizadas no Estado em desfavor da instituição para que as comarcas do interior tenham defensor.

Processo

REsp 1.991.994-SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 07/06/2022, DJe 20/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Ação de cobrança. Autor estrangeiro e não residente no Brasil. Caução. Art. 83 do CPC. Tratado Internacional. Protocolo de Las Leñas. Extensão do tratamento interno para nacionais e residentes nos Estados signatários.

DESTAQUE

O Protocolo de Las Leñas, do qual o Brasil é signatário, não traz dispensa genérica da prestação de caução, limitando-se a impor o tratamento igualitário entre todos os cidadãos e residentes nos territórios de quaisquer dos Estados-Partes.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

O Brasil é parte signatária do Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa - Protocolo de Las Leñas, internalizado por meio do Decreto n. 2.067/1996, e ampliado por meio do Decreto n. 6.891/2009. Por meio do referido tratado, atribuiu-se a igualdade de tratamento processual a todo e qualquer cidadão ou residente permanente dos Estados-partes (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Chile e Bolívia).

A controvérsia central cuida em definir se a caução exigida pelo art. 83, caput, do Código de Processo Civil é dispensada a todo e qualquer cidadão dos Estados-partes ou, se para tanto, faz-se necessária também a residência fixada em território correspondente a estes Estados.

O Código de Processo Civil, em seu art. 83, impõe que o autor não residente no Brasil prestará caução suficiente às custas e honorários de advogado da parte contrária, se não tiver imóveis no Brasil que assegurem o pagamento de eventual sucumbência.

A exigência de caução é imposta tanto ao promovente brasileiro como ao estrangeiro, desde que atendidas duas condições objetivas e cumulativas: (I) não resida no Brasil ou deixe de residir na pendência da demanda; e (II) não seja proprietário de bens imóveis no Brasil, suficientes para assegurar o pagamento das custas e dos honorários advocatícios, na hipótese de sua sucumbência.

O segundo requisito impõe, tanto aos brasileiros como aos estrangeiros, a necessidade de serem titulares de bens imóveis no território submetido à jurisdição brasileira, o que não ocorre com os prédios localizados em território alienígena.

O Protocolo de Las Leñas, do qual o Brasil é signatário, não traz dispensa genérica da prestação de caução, limitando-se a impor o tratamento igualitário entre todos os cidadãos e residentes nos territórios de quaisquer dos Estados-partes.

Portanto, o escopo do Protocolo de Las Leñas, quanto à exigência de caução, fica adstrito à equiparação de tratamento interno, assegurando isonomia de tratamento entre os nacionais e residentes nos Países signatários, quando venham a litigar perante os Poderes Judiciários uns dos outros. Enfatiza, ainda, que cauções e depósitos não podem ser exigidos sob o fundamento da qualidade de nacional ou residente em outro território de Estado-Parte.

Com efeito, não se aplica a regra excepcional do § 1º do art. 83 do CPC, a qual afasta a exigência da caução prevista no caput do mesmo artigo apenas quando houver dispensa expressamente prevista em acordo ou tratado de que seja o Brasil signatário. Não é o caso do Protocolo de Las Leñas.

Nesse mister, cumpre assentar que a exigência de caução, nos termos do Código de Processo Civil, não é imposta em razão da nacionalidade da parte, mas em vista da verificação de que o autor não tem residência no território nacional, tampouco bens imóveis aqui localizados.