sábado, 31 de outubro de 2020

OS FUNDAMENTOS DO DIREITO DAS SUCESSÕES E A TENDÊNCIA DE "CONTRATUALIZAÇÃO" DA MATÉRIA.

 OS FUNDAMENTOS DO DIREITO DAS SUCESSÕES E A TENDÊNCIA DE "CONTRATUALIZAÇÃO" DA MATÉRIA

 Flávio Tartuce[2]

Tem-se afirmado, no âmbito do Direito das Sucessões, uma tendência crescente de "contratualização", incrementada sobretudo pela busca de mecanismos de planejamento sucessório. Nessa linha, destaco o recente artigo de Gustavo Henrique Baptista Andrade e Marcos Ehrhardt Jr., publicado na coluna Migalhas Contratuais, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont (A autonomia da vontade no direito sucessório: quais os limites para a denominada "sucessão contratual". Disponível em https://migalhas.uol.com.br/coluna/migalhas-contratuais. Acesso em 26 de outubro de 2020).

Porém, como tenho advertido em exposições sobre o tema, é preciso conhecer os limites dessa valorização da autonomia privada, com respeito e observância de regras fundamentais da matéria sucessória, como a proteção da legítima – quota dos herdeiros necessários, fixada em 50% do patrimônio do falecido – e a vedação dos pactos sucessórios ou pacta corvina – retirada do art. 426 do Código Civil de 2002.

Mas não são só essas limitações que devem ser consideradas pelo intérprete a respeito da citada "contratualização", que encontra óbices nos próprios fundamentos do Direito das Sucessões no Brasil. Nesse contexto, o nosso sistema não admite, por exemplo, a renúncia prévia ou mesmo o repúdio à herança por qualquer contrato ou negócio jurídico que a almeje. A respeito da renúncia à herança, aliás, trata-se de um ato jurídico formal, que deve observar estritamente os requisitos previstos no Código Civil. Assim, conforme o seu art. 1.806, a renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial, após o falecimento do de cujus. Para que a renúncia ou o repúdio prévio à herança seja possível, é preciso alterar a legislação a respeito da matéria, inserindo uma previsão nesse sentido no art. 426 do Código Civil.

No contexto da proposta deste texto, interessante lembrar quais fundamentos sucessórios seriam esses, a partir de algumas das lições da doutrina nacional. Para tanto foram escolhidos dois doutrinadores, um clássico e uma contemporânea.

Ao tratar da justificação do Direito das Sucessões, Orlando Gomes aponta uma certa "condenação" da disciplina, por razões diversas, citando Lassalle, que a combateu por basear-se em ideias anacrônicas, quais sejam a de continuação da vontade do defunto e a de compropriedade aristocrática da família romana. Menciona o jurista, ainda, que outros sustentaram, com o apoio de Saint-Simon, que o Estado deveria ser o "herdeiro universal das fortunas privadas", obtendo sem violência a transferência de todos os bens ao domínio público (Sucessões. Atualizador Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 2). Entre os negacionistas, lembra que Menger "preconiza a proibição de se transmitirem, mortis causa, os bens de produção, admitindo, entretanto, o direito de disposição dos bens de consumo".

Ainda conforme Orlando Gomes, entre os que afirmam positivamente o Direito das Sucessões, o argumento mais forte é o de que a herança "não é mais do que a extensão da propriedade privada além dos limites da vida humana. O próprio Menger reconhece que está intimamente ligado o destino das duas instituições, a propriedade e sucessão. Se a apropriação individual de bens de qualquer espécie é legalmente protegida, e até estimulada, não se justifica a expropriação com a morte do proprietário. Em todos os tempos, a sucessão tem sido admitida e, até nos povos que aboliram a propriedade privada dos bens de produção, ocorre em relação aos bens de uso e consumo, como no Código Civil soviético (art. 416)" (Sucessões. Atualizador Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 2-3).

Com base em Cimbali, ensina ainda Orlando Gomes que a propriedade é constituída sob o impulso de fatores diferentes, que concorrem para a sua formação e a sua garantia: "são elementos subjetivos que se tripartem. O elemento individual prepondera em sua aquisição. O familiar, na sua conservação. O social, em sua garantia. Enquanto vive, os três fatores compartilham das utilidades da propriedade. Por sua morte, cada um dos três fatores reivindica a parte lhe que cabe". Finaliza dizendo que a sucessão mortis causa encontra a sua justificação e a sua fundamentação nos mesmos princípios que fundam o direito de propriedade individual (Sucessões. Atualizador Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 2-3). Essa é uma conclusão muito comum no Direito Civil Brasileiro, no sentido de que o direito de propriedade − atualmente previsto no art. 5º, inc. XXII, da Constituição e no art. 1.228 do Código Civil − estriba a sucessão, assim como ocorre em outros Países do sistema da Civil Law.

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em sua tese de titularidade, defendida perante o Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, aponta fundamentos diferentes para o Direito das Sucessões e para a transmissão sucessória no transcorrer dos tempos. Cita, de início e nas civilizações antigas, a necessidade de se ocupar o lugar do pater familias. Destaca, ainda, a necessidade de se preservar as forças da família (Morrer e suceder: passado e presente da transmissão sucessória concorrente. Tese apresentada para concurso público de Professor Titular junto ao Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Edital FD 44/2009. São Paulo, 2010. p. 394). Em continuidade histórica, aponta que os jusnaturalistas procuraram compreender a sucessão – assim como se dá com a propriedade − como mera construção positivista, podendo "ser abolida logo que isso interessasse às conveniências sociais".

Seguindo nos seus estudos, assinala a corrente defendida pelo já citado Cimbali, e também por D’Aguano, para quem o "fundamento da sucessão encontrava sua ênfase em pesquisas biológicas que buscavam demonstrar existir uma espécie de continuidade da vida humana por meio da transmissão de ascendentes a descendentes, não apenas das características genéticas mas também psicológicas. Como conclusão, os estudiosos advertiram que a permissão legal acerca da transmissão do patrimônio do morto para seus descendentes operava-se por razões de ordem biopsíquica. Com o passar do tempo, essa corrente de matiz biológico foi enriquecida com novos fundamentos, como a afeição e unidade familiar, atualizando e humanizando o tema".

Giselda Hironaka, ao final, sustenta, o que também é defendido por muitos autores brasileiros, caso de Caio Mário da Silva Pereira, Itabaiana de Oliveira e Clóvis Bevilaqua, que a justificativa do Direito das Sucessões tem as suas bases na necessidade de se fazer um alinhamento − ou uma sincronização – entre o direito de propriedade e o Direito de Família: "esta corrente procura demonstrar que o fundamento da transmissão causa mortis estaria além de uma expectativa de continuidade patrimonial, quer dizer, na simples manutenção dos bens na família, como forma de acumulação de capital que, por sua vez, estimularia a poupança, o trabalho e a economia, porém, mais que isso, o grande fundamento da transmissão sucessória habitaria o fator de proteção, coesão e de perpetuidade da família" (Morrer e suceder: passado e presente da transmissão sucessória concorrente, cit., p. 395-396). Assim também vejo a correta fundamentação da sucessão na realidade jurídica brasileira.

Essa sincronização, baseada igualmente na solidariedade familiar, tem justificado a manutenção da legítima, quota dos herdeiros necessários, em percentual fixo de 50%. E a legítima, sem dúvida alguma relacionada a citados fundamentos do Direito das Sucessões, impede, no atual sistema legislativo brasileiro, a tão mencionada "contratualização" da matéria, que pode representar até o seu fim, com o afastamento da sua justificação.

De toda sorte, muitas dúvidas permeiam o debate, algumas delas vindas de longa data, desde a elaboração do Código Civil de 1916, como destacado pelo próprio Clóvis Bevilaqua. Seria o caso de se extinguir a legítima, retirando-se esse importante controle relativo à autonomia privada? Mantendo-se a legítima, ela deveria ser revista, diminuindo-se o seu montante? Tais mudanças, no plano legislativo, justificam-se na atualidade, em especial diante da crise pandêmica que nos assola? Não seria o caso de se instituir entre nós um sistema de legítima variável? São interrogações que tenho procurado responder nos últimos anos, tendo a pandemia de COVID19 alterado algumas de minhas conclusões anteriores, notadamente a respeito de eventual diminuição da quota da legítima. Voltarei a esses temas em outro artigo.


[1] Coluna do Migalhas do mês de outubro de 2020.

[2] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

sábado, 24 de outubro de 2020

RESUMO. INFORMATIVO 680 DO STJ.

 RESUMO. INFORMATIVO 680 DO STJ.

SEGUNDA SEÇÃO

Processo

EREsp 1.520.294-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 26/08/2020, DJe 02/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Copropriedade com terceiro anterior à abertura da sucessão. Título aquisitivo estranho à relação hereditária. Direito real de habitação. Reconhecimento. Impossibilidade.

Destaque

A copropriedade anterior à abertura da sucessão impede o reconhecimento do direito real de habitação.

Informações do Inteiro Teor

O direito real de habitação possui como finalidade precípua garantir o direito à moradia ao cônjuge/companheiro supérstite, preservando o imóvel que era destinado à residência da família, qualquer que fosse o regime de bens adotado.

Trata-se de instituto intrinsecamente ligado à sucessão, razão pela qual os direitos de propriedade originados da transmissão da herança sofrem mitigação temporária em prol da manutenção da posse exercida pelos membros do casal.

Hipóteses distintas e que não podem ser objeto de interpretação extensiva, visto que o direito real de habitação já é oriundo de exceção imposta pelo legislador, são aquelas referentes à existência de copropriedade anterior com terceiros do imóvel vindicado, visto que estranhos à relação sucessória que ampararia o direito em debate.

Como pontuado pela Ministra Nancy Andrighi, relatora do REsp 1.184.492/SE, a causa do direito real de habitação é tão somente "a solidariedade interna do grupo familiar que prevê recíprocas relações de ajuda".

Entendimento diverso possibilitaria, inclusive, a instituição de direito real de habitação sobre imóvel de propriedade de terceiros estranhos à sucessão, o que contraria a mens legis acima exposta.

Processo

CC 163.818-ES, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 23/09/2020, DJe 29/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO FALIMENTAR

Tema

Juízo falimentar e recuperação judicial. Competência absoluta. Principal estabelecimento do devedor. Momento da propositura da ação.

Destaque

É absoluta a competência do local em que se encontra o principal estabelecimento para processar e julgar pedido de recuperação judicial, que deve ser aferido no momento de propositura da demanda, sendo irrelevantes para esse fim modificações posteriores de volume negocial.

Informações do Inteiro Teor

O Juízo competente para processar e julgar pedido de recuperação judicial é aquele situado no local do principal estabelecimento (art. 3º da Lei n. 11.101/2005), compreendido este como o local em que se encontra "o centro vital das principais atividades do devedor".

Embora utilizado o critério em razão do local, a regra legal estabelece critério de competência funcional, encerrando hipótese legal de competência absoluta, inderrogável e improrrogável, devendo ser aferido no momento da propositura da demanda - registro ou distribuição da petição inicial.

A utilização do critério funcional tem por finalidade o incremento da eficiência da prestação jurisdicional, orientando-se pela natureza da lide, assegurando coerência ao sistema processual e material.

Destaca-se que, no curso do processo de recuperação judicial, as modificações em relação ao principal estabelecimento, por dependerem exclusivamente de decisões de gestão de negócios, sujeitas ao crivo do devedor, não acarretam a alteração do juízo competente, uma vez que os negócios ocorridos no curso da demanda nem mesmo se sujeitam à recuperação judicial.

Assim, conclusão diversa, no sentido de modificar a competência sempre que haja correspondente alteração do local de maior volume negocial, abriria espaço para manipulações do Juízo natural e possível embaraço do andamento da própria recuperação. Com efeito, o devedor, enquanto gestor do negócio, detém o direito potestativo de centralização da atividade em locais distintos no curso da demanda, mas não o poder de movimentar a competência funcional já definida. Do contrário, o resultado seria o prolongamento da duração do processo e, provavelmente, a ampliação dos custos e do prejuízo dos credores, distorcendo a razão de ser do próprio instituto da recuperação judicial de empresas.

EGUNDA TURMA

Processo

RMS 58.769-RJ, Rel. Min. Assusete Magalhães, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 15/09/2020, DJe 23/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO ADMINISTRATIVO, DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO REGISTRAL

Tema

Registro imobiliário. Averbação de inquérito civil. Ministério Público. Requisição. Não cabimento.

Destaque

Não é cabível a requisição da averbação de inquérito civil no registro imobiliário pelo Ministério Público, com fixação de prazo para o seu cumprimento.

Informações do Inteiro Teor

Nos termos do art. 13, I, II e III, da Lei n. 6.015/1973, os atos do registro serão praticados por ordem judicial, a requerimento verbal ou escrito dos interessados e a requerimento do Ministério Público, quando a lei autorizar, excetuadas as anotações e averbações obrigatórias.

Assim, cabe ao Ministério Público requerer a averbação do inquérito civil no Registro Imobiliário e o Oficial Registrador, conforme seu entendimento, pode suscitar dúvida ao Juízo competente, em consonância com o procedimento disciplinado nos arts. 198 a 207 da Lei n. 6.015/1973.

Parquet, no caso, ao invés de requerer a averbação, requisitou a sua realização, fixando prazo para o seu cumprimento, o que não encontra amparo na legislação.

Em que pese a importância de se dar publicidade à população acerca de eventuais irregularidades em parcelamentos, a fim de proteger terceiros de boa-fé, adquirentes de suas frações, e contribuir para a ordenada ocupação do solo, há que se observar o devido processo legal, assegurado no art. 5º, LIV, da CF, tal como previsto na Lei n. 6.015/1973.

TERCEIRA TURMA

Processo

REsp 1.836.846-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 22/09/2020, DJe 28/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL

Tema

Compra e venda de bem imóvel. Rescisão contratual. Reintegração de posse. Benfeitorias úteis ou necessárias. Indenização. Reconhecimento de ofício. Impossibilidade.

Destaque

Não é possível o reconhecimento de ofício do direito ao recebimento de indenização por benfeitorias úteis ou necessárias em ação possessória.

Informações do Inteiro Teor

Inicialmente, é imperioso ressaltar que os arts. 1.219 e 1.220 do Código Civil versam sobre o direito à indenização das benfeitorias, bem como de eventual exercício do direito de retenção. A legislação dispõe que o possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como tem a faculdade de levantar as benfeitorias voluptuárias se não lhe forem pagas, desde que o faça sem deteriorar a coisa. A configuração da boa-fé ainda permite o exercício do direito de retenção pelo valor das benfeitorias úteis ou necessárias.

De outro lado, os arts. 141 e 492 do CPC/2015 se reportam ao princípio dispositivo (ou da congruência ou da adstrição), segundo o qual o juiz irá julgar o mérito da ação nos limites propostos, sendo proibido conhecer de questões não alegadas a cujo respeito a legislação exigir iniciativa da parte.

Ademais, o referido princípio se encontra umbilicalmente ligado ao dever de tratamento isonômico das partes pelo juiz (art. 139, I, do CPC/2015), de maneira que esse não pode agir de ofício para sanar ou corrigir eventual omissão de qualquer das partes na prática de ato processual de incumbência exclusiva.

Não é possível, na hipótese, afastar a ocorrência de julgamento extra petita (fora do pedido) da indenização por benfeitorias ainda que por meio de interpretação lógica e sistemática, pois, não houve apresentação de contestação (em razão de revelia), bem como não ocorreu a formulação de pedido posterior nesse sentido.

Apesar do entendimento de que a indenização por benfeitorias passou a ser consequência lógica da resolução do contrato de compra e venda, a formulação de pedido não restou afastada. Esta Corte Superior, ao julgar o REsp 764.529/RS (3ª Turma, DJe 09/11/2010), apenas afastou o instituto da preclusão, de modo a possibilitar a formulação de pedido após a contestação. A jurisprudência do STJ, portanto, não excepciona a formulação de pedido referente à indenização das benfeitorias, somente o momento do requerimento e a forma como esse é realizado.

Por fim, o entendimento da ocorrência de julgamento extra petita não afasta o direito de pleitear indenização por eventuais realizações de benfeitorias, pois o prazo prescricional da referida pretensão indenizatória apenas tem início com o trânsito em julgado da ação de rescisão do contrato de compra e venda do imóvel (AgRg no AREsp 726.491/MS, 3ª Turma, DJe 09/11/2016).

Processo

REsp 1.570.452-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 22/09/2020, DJe 28/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Ação de cobrança de cotas condominiais. Securitização de créditos. Fundos de Investimento em Direitos Creditórios - FIDCs. Cessão de crédito. Natureza jurídica. Preservação. Sub-rogação na mesma posição do condomínio cedente. Manutenção das prerrogativas legais.

Destaque

Na atividade de securitização de créditos condominiais, os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) valem-se do instituto da cessão de créditos e, ao efetuarem o pagamento das cotas condominiais inadimplidas, sub-rogam-se na mesma posição do condomínio cedente, com todas as prerrogativas legais a ele conferidas.

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a discussão à definição da natureza do crédito na hipótese de cessão. O Tribunal de origem entendeu que, com a cessão de crédito, o Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) passou a ser um credor comum, devendo habilitar seu crédito no inventário para recebimento dos respectivos valores. O recorrente defende que a natureza do crédito não se altera com a cessão, devendo, assim, o cessionário prosseguir na execução já iniciada.

Em julgamento realizado no ano de 2016, a Terceira Turma desta Corte, analisando questão distinta, mas que também perpassa pela interpretação dos arts. 286 e 287 do Código Civil, decidiu que "(...) não se transmitem ao cessionário (...) os direitos acessórios indissociáveis da pessoa do cedente, decorrentes de sua condição personalíssima, salvo, naturalmente, se o cessionário detiver a mesma condição pessoal do cedente".

Contudo, o Supremo Tribunal Federal, após reconhecer a existência de repercussão geral da matéria atinente à "transmudação da natureza de precatório alimentar em normal em virtude de cessão do direito nele estampado" (Tema n. 361/STF), decidiu que a cessão de crédito não implica a alteração da sua natureza.

Semelhante situação ocorre no caso analisado, haja vista que a transmutação da natureza do crédito cedido viria em prejuízo dos próprios condomínios, que se valem da cessão de seus créditos como meio de obtenção de recursos financeiros necessários ao custeio das despesas de conservação da coisa, desonerando, assim, os demais condôminos que mantêm as suas obrigações em dia.

Ressalta-se, por último, que, quando o legislador pretende modificar a natureza do crédito cedido, ele assim o faz expressamente, a exemplo da disposição contida no § 4º do art. 83 da Lei n. 11.101/2005, segundo o qual "Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários."

Processo

REsp 1.797.027-PB, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 15/09/2020, DJe 18/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Hipoteca. Negócio jurídico firmado na vigência do CC/2002. Casamento sob o regime da separação total de bens na vigência do CC/1916. Autorização conjugal. Desnecessidade.

Destaque

É válida hipoteca firmada na vigência do CC/2002 exclusivamente por cônjuge casado sob o regime da separação total de bens na vigência do CC/1916.

Informações do Inteiro Teor

Conceitualmente, o art. 2.039 do CC/2002, ao estabelecer uma regra de transição quanto ao regime de bens, teve por finalidade específica disciplinar as relações familiares entre os cônjuges na perspectiva patrimonial, ditando o modo pelo qual se dará, por exemplo, a partilha de seus bens por ocasião da dissolução do vínculo conjugal, bem como a possibilidade de alteração motivada e judicial do regime de bens posteriormente consagrada pela jurisprudência desta Corte.

Dessa forma, a referida regra de direito transitório não deve influenciar, na perspectiva da definição da legislação aplicável, as hipóteses em que deveria ser dada a autorização conjugal, pois esse instituto, a despeito de se relacionar com o regime de bens, é, na realidade, uma condição de eficácia do negócio jurídico cuja validade se examina.

Assim, em se tratando de casamento celebrado na vigência do CC/1916 sob o regime da separação convencional de bens, somente aos negócios jurídicos celebrados na vigência da legislação revogada é que se poderá aplicar a regra do art. 235, I, do CC/1916, que previa a necessidade de autorização conjugal como condição de eficácia da hipoteca, independentemente do regime de bens.

Contudo, aos negócios jurídicos celebrados após a entrada em vigor do CC/2002, deverá ser aplicada a regra do art. 1.647, I, do CC/2002, que prevê a dispensa de autorização conjugal como condição de eficácia da hipoteca quando o regime de bens for o da separação absoluta, ainda que se trate de casamento celebrado na vigência da legislação civil revogada.

Processo

REsp 1.879.503-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 15/09/2020, DJe 18/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Plano de saúde coletivo empresarial. Rompimento do vínculo empregatício. Manutenção do ex-empregado e sua esposa como beneficiários do plano de saúde por 10 anos. Exclusão indevida pelo ex-empregador. Responsabilidade pela confiança. Abuso do direito. Supressio.

Destaque

Ex-empregado mantido no plano de saúde por mais de dez anos após a demissão, por liberalidade do ex-empregador e com assunção de custeio integral do serviço, não poderá ser excluído da cobertura do seguro.

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia a definir a obrigação de o ex-empregador em manter, com base na proteção da confiança (supressio), o plano de saúde oferecido ao ex-empregado, transcorridos mais de 10 anos do rompimento do vínculo empregatício.

Com efeito, não se nega que o art. 30, § 1º, da Lei n. 9.656/1998 permite que o ex-empregado demitido e seu grupo familiar se mantenham no plano de saúde coletivo empresarial, após o rompimento do vínculo empregatício, pelo período de um terço do tempo de permanência como beneficiários, com um mínimo assegurado de seis meses e um máximo de vinte e quatro meses.

Há, no entanto, uma circunstância relevante na hipótese, o empregado e sua esposa permaneceram, depois da demissão do primeiro, vinculados ao mesmo plano, nas mesmas condições, por mais dez anos, tendo, apenas, assumido o custeio integral do serviço, circunstância que, segundo o Tribunal de origem, é apta "a despertar no autor a confiança legítima na manutenção vitalícia do benefício". O desate da controvérsia exige, portanto, a análise desse cenário à luz da chamada responsabilidade pela confiança.

Confiança, a propósito, é, na lição doutrinária, "a face subjetiva do princípio da boa-fé"; "é a legítima expectativa que resulta de uma relação jurídica fundada na boa-fé"; e, por isso, segundo a doutrina, "frustração é o sentimento que ocupa o lugar de uma expectativa não satisfeita".

A responsabilidade pela confiança constitui, portanto, uma das vertentes da boa-fé objetiva, enquanto princípio limitador do exercício dos direitos subjetivos, e coíbe o exercício abusivo do direito, o qual, no particular, se revela como uma espécie de não-exercício abusivo do direito, de que é exemplo a supressio. A supressio, por usa vez, indica a possibilidade de se considerar suprimida determinada obrigação contratual na hipótese em que o não exercício do direito correspondente, pelo credor, gerar no devedor a legítima expectativa de que esse não exercício se prorrogará no tempo.

Implica, assim, a redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer determinado direito ou faculdade, criando para a outra a percepção válida e plausível – a ser apurada casuisticamente – de ter havido a renúncia àquela prerrogativa.

Convém ressaltar, nessa toada, que o abuso do direito – aqui caracterizado pela supressio – é qualificado pelo legislador como espécie de ato ilícito (art. 187 do CC/2002), no qual, em verdade, não há desrespeito à regra de comportamento extraída da lei, mas à sua valoração; o agente atua conforme a legalidade estrita, mas ofende o elemento teleológico que a sustenta, descurando do dever ético que confere a adequação de sua conduta ao ordenamento jurídico.

Sob essa ótica, verifica-se que o ex-empregado e sua esposa se mantiveram vinculados ao contrato de plano de saúde por 10 anos, superando – e muito – o prazo legal que autorizava a sua exclusão, o que, evidentemente, despertou naqueles a justa expectativa de que não perderiam o benefício oferecido pelo ex-empregador.

E, de fato, o exercício reiterado dessa liberalidade, consolidado pelo decurso prolongado do tempo, é circunstância apta a criar a confiança na renúncia do direito de excluir o ex-empregado e seu grupo familiar do contrato de plano de saúde, de tal modo que, esse exercício agora, quando já passados 10 anos, e quando os beneficiários já contavam com idade avançada, gera uma situação de desequilíbrio inadmissível entre as partes, que se traduz no indesejado sentimento de frustação. Diante desse panorama, o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a exclusão do ex-empregado e sua esposa do plano de saúde coletivo empresarial.

Processo

REsp 1.759.652-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 22/09/2020, DJe 25/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL

Tema

Ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem. Inclusão de herdeiros colaterais no polo passivo. Desnecessidade. Assistência simples. Possibilidade.

Destaque

É desnecessária a inclusão dos parentes colaterais do de cujus no polo passivo da ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem.

Informações do Inteiro Teor

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar os Recursos Extraordinários 646.721/RS e 878.694/MG, ambos com repercussão geral reconhecida, fixou a tese de que "é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002".

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, após o reconhecimento da inconstitucionalidade da distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, os parentes colaterais, tais como irmãos, tios e sobrinhos, são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária, herdando apenas na ausência de descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro, em virtude da ordem legal de vocação hereditária.

Verifica-se que, apesar de não haver dúvida de que os parentes colaterais da falecida possuem interesse no resultado da ação de reconhecimento e dissolução de união estável, esse interesse não é direto e imediato, mas apenas reflexo, não os qualificando como litisconsortes passivos necessários, pois, nessa demanda movida contra o espólio, não há nenhum pedido contra eles dirigido. Em outras palavras, os parentes colaterais não possuem relação jurídica de direito material com a convivente supérstite, sendo que somente serão eventual e reflexamente atingidos pela decisão.

Ademais, é temeroso adotar o posicionamento de que quaisquer pessoas que compõem a vocação hereditária possuem legitimidade passiva necessária em ações de reconhecimento e dissolução de união estável pelo simples fato de que poderão, em tese, ser impactadas em futuro e distinto processo, devendo a referida vocação ser examinada em seara própria.

Dessa forma, o interesse dos parentes colaterais da falecida serve apenas para qualificá-los à habilitação voluntária no processo como assistentes simples do espólio.

Anota-se que a presente nota informativa vem retificar o que fora publicado no Informativo n. 678 e para tal transcreve-se trecho do voto do Exmo. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: "Eminentes Colegas. Prefacialmente, destaco que a apresentação do presente voto, nesta sessão de julgamento, decorre da existência de evidente erro material contido no acórdão anteriormente publicado, tendo em vista que o referido julgado não retratou o entendimento firmado na sessão de julgamento ocorrida em 23.06.2020".

Processo

REsp 1.829.821-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 25/08/2020, DJe 31/08/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL

Tema

Ação de obrigação de fazer. Provedores de aplicações de internet. Fornecimento de dados pessoais. Qualificação e endereço. Impossibilidade. Marco Civil da Internet. Delimitação. Proteção à privacidade.

Destaque

Os provedores de aplicações de internet não são obrigados a guardar e fornecer dados pessoais dos usuários, sendo suficiente a apresentação dos registros de número IP.

Informações do Inteiro Teor

Inicialmente cumpre salientar que de acordo com os precedentes deste STJ, não se pode considerar de risco a atividade desenvolvida pelos provedores de conteúdo e sequer é possível exigir a fiscalização prévia das informações disponibilizadas em aplicações de internet.

Por outro lado, esta mesma Corte exige que o provedor tenha o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada.

Portanto, espera-se que o provedor adote providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para permitir a identificação dos usuários de determinada aplicação de internet.

Ainda que não exija os dados pessoais dos seus usuários, o provedor de conteúdo, que registra o número de protocolo na internet (IP) dos computadores utilizados para o cadastramento de cada conta, mantém um meio razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço de internet.

A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça é consolidada no sentido de – para adimplir sua obrigação de identificar usuários que eventualmente publiquem conteúdos considerados ofensivos por terceiros – é suficiente o fornecimento do número IP correspondente à publicação ofensiva indicada pela parte.

Os endereços IPs, ressalte-se, são essenciais na arquitetura da internet, que permite a bilhões de pessoas e dispositivos se conectarem à rede, permitindo que trocas de volumes gigantescos de dados sejam operadas com sucesso. Assim, quando se trata de investigações civis ou criminais que necessitam identificar a autoria de ilícitos ocorridos na Internet, trata-se de informação essencial, a fim de permitir localizar o terminal e, por consequência, a pessoal que o utilizava para a realização de ilícitos. Por isso, determinou-se um dever de guarda e armazenamento de um conjunto de informações utilizadas pelos usuários na internet, entre eles, o número IP.

No Marco Civil da Internet, há duas categorias de dados que devem ser obrigatoriamente armazenados: os registros de conexão e os registros de acesso à aplicação. A previsão legal para guarda desses dados objetiva facilitar a identificação de usuários da internet pelas autoridades competentes e mediante ordem judicial, porque a responsabilização dos usuários é um dos princípios do uso da internet no Brasil, conforme o art. 3º, VI, da mencionada lei. Essa distinção entre as duas categorias de agentes, provedores de conexão e de aplicação, visa garantir a privacidade e a proteção da vida privada dos cidadãos usuários da Internet. Diminui-se, assim, a quantidade de dados pessoais que cada um dos atores da internet possui, como forma de prevenção ao

abuso da posse dessas informações.

Além disso, no art. 13, § 2º, do Decreto n. 8.771/2016 também fica estabelecido que os provedores de aplicações de internet "devem reter a menor quantidade possível de dados pessoais", o que reforça a inexigibilidade jurídica do armazenamento e fornecimento de dados que não sejam os registros de acesso, expressamente apontados pelo Marco Civil da Internet como os únicos que os provedores de aplicações devem guardar e, eventualmente, fornecer em juízo.

É certo que a limitação dos dados a serem obrigatoriamente guardados pelos provedores de aplicações de internet tem uma razão de ser, que é a tutela jurídica da intimidade e da privacidade, consagrada no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, foi expressamente encampada pelo Marco Civil da Internet, que assegura como direitos dos usuários da rede a proteção à privacidade.

Processo

REsp 1.866.230-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 22/09/2020, DJe 28/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL

Tema

Prestação de contas relativa à venda extrajudicial do bem alienado fiduciariamente. Discussão incidental na própria ação de busca e apreensão. Impossibilidade. Necessidade de ajuizamento de ação autônoma.

Destaque

Há necessidade de ajuizamento de ação autônoma para pleitear a prestação de contas relativa à venda extrajudicial em ação de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente.

Informações do Inteiro Teor

Nas hipóteses de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, caso o credor opte pelo ajuizamento da ação de busca e apreensão, tem-se que, uma vez apreendido o bem, promover-se-á a sua venda extrajudicial, nos moldes do que dispõe o art. 2º do Decreto Lei n. 911/1969.

Efetivada a venda, apura-se o saldo entre o produto da venda e o montante da dívida e encargos, procedendo-se a prestação de contas ao devedor; havendo sobra, o credor deverá entregá-la ao devedor ou, ao contrário, remanescendo saldo devedor, o devedor continua responsável pelo pagamento.

As questões concernentes à venda extrajudicial do bem, imputação do valor alcançado no pagamento do débito e apuração acerca de eventual saldo remanescente em favor do devedor não podem ser discutidas, incidentalmente, no bojo da ação de busca e apreensão que, como se sabe, visa tão somente à consolidação da propriedade do bem no patrimônio do credor fiduciário.

Por fim, vale frisar que o art. 3º, § 8º do Decreto-Lei n. 911/1969 expressamente define que a busca e apreensão constitui processo autônomo e independente de qualquer procedimento posterior, e que a obrigatoriedade da prestação de contas foi inovação trazida pela Lei n. 13.043/2014 a qual, não obstante não fosse expressa anteriormente à sua edição, já era reconhecida como de interesse do devedor fiduciante quando da venda extrajudicial do bem.

Processo

REsp 1.867.209-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 08/09/2020, DJe 30/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL

Tema

Compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia. Resolução contratual. Ausência de culpa do vendedor. Desinteresse do adquirente. Restituição de valores pagos. Arts. 26 e 27 da Lei n. 9.514/1997.

Destaque

Configura quebra antecipada do contrato (antecipatory breach) o pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia por desinteresse do adquirente, mesmo que ainda não tenha havido mora no pagamento das prestações.

Informações do Inteiro Teor

O procedimento disciplinado nos arts. 26 e 27 da Lei n. 9.514/1997 trata, do inadimplemento do adquirente (devedor fiduciante). O inadimplemento é, assim, pressuposto para a consolidação da propriedade na pessoa do credor fiduciário e para submissão do bem à venda mediante leilão.

O inadimplemento aqui não pode ser interpretado restritivamente ao mero inadimplemento das prestações, ou, em outras palavras, à não realização do pagamento no tempo, modo e lugar convencionados (mora). Deve ele ser entendido, também, como o comportamento que se mostra contrário à manutenção do contrato ou ao direito do credor fiduciário, aí incluindo-se a pretensão declarada do adquirente de resolver o negócio que se vê respaldado pela alienação fiduciária em garantia, postulando ao Judiciário a suspensão da exigibilidade das prestações a que vinculado.

A figura bem se compatibiliza com o instituto da quebra antecipada (ou antecipatory breach na common law), segundo o qual há inadimplemento, mesmo antes do vencimento, quando o devedor pratica atos abertamente contrários ao cumprimento do contrato, como a pretensão de resolução da avença.

No contrato de compra e venda celebrado, em que presente alienação fiduciária em garantia, há de ser acatada a possibilidadede de resolução do contrato pelo desinteresse do adquirente em permanecer com o bem, mas a devolução dos valores pagos pelo autor não se dará na forma do art. 53 do CDC, em que, ressarcidas as despesas do vendedor mediante a retenção de parte do pagamento, devolve-se o restante ao adquirente.

A devolução dos valores pagos deverá observar o procedimento estabelecido nos arts. 26 e 27 da Lei n. 9.514/1997, pelo qual, resolvido o contrato de compra e venda, consolida-se a propriedade na pessoa do credor fiduciário, para, então, submeter-se o bem a leilão, na forma dos §§1º e 2º do art. 27, satisfazendo-se o débito do devedor demandante ainda inadimplido e solvendo-se as demais dívidas relativas ao imóvel, para devolver-se o que sobejar ao adquirente, se sobejar.

Assim, a formulação pelo adquirente de pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia sem a imputação de culpa ao vendedor, mas por conveniência do adquirente, representa quebra antecipada do contrato e, assim, satisfaz o requisito para a incidência dos arts. 26 e 27 da Lei n. 9.514/1997.

Resolvido o contrato, a devolução dos valores adimplidos pelo adquirente deverá observar o quanto disposto no §4º do art. 27 da Lei n. 9.514/1997, segundo o qual, uma vez exitoso o 1º ou o 2º leilão, "o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação (...)".

Processo

REsp 1.690.216-RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. Acd. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por maioria, julgado em 22/09/2020, DJe 28/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Reconvenção sucessiva (Reconvenção à reconvenção). CPC/2015. Admissibilidade. Contestação ou reconvenção. Vinculação.

Destaque

É admissível a reconvenção sucessiva, também denominada de reconvenção à reconvenção, desde que a questão que justifique a propositura tenha surgido na contestação ou na primeira reconvenção.

Informações do Inteiro Teor

Ainda na vigência do CPC/1973, a doutrina se posicionou, majoritariamente, pela admissibilidade da reconvenção à reconvenção, por se tratar de medida não vedada pelo sistema processual, mas desde que a questão que justifica a propositura da reconvenção sucessiva tenha como origem a contestação ou a primeira reconvenção.

Esse entendimento não se modifica na vigência do CPC/2015, pois a nova legislação processual solucionou alguns dos impedimentos apontados ao cabimento da reconvenção sucessiva, como, por exemplo, a previsão de que o autor-reconvindo será intimado para apresentar resposta e não mais contestação (art. 343, §1º) e a vedação expressa de reconvenção à reconvenção apenas na hipótese da ação monitória (art. 702, §6º).

Assim, também na vigência do CPC/2015, é igualmente correto concluir que a reconvenção à reconvenção não é vedada pelo sistema processual, condicionando-se o seu exercício, todavia, ao fato de que a questão que justifica a propositura da reconvenção sucessiva tenha surgido na contestação ou na primeira reconvenção, o que viabiliza que as partes solucionem integralmente o litígio que as envolve no mesmo processo e melhor atende aos princípios da eficiência e da economia processual, sem comprometimento da razoável duração do processo.

Processo

REsp 1.823.926-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 08/09/2020, DJe 16/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Prestação de contas em forma mercantil e em forma adequada. Direito transitório. Sentença de primeira fase proferida, transitada e executada na vigência do CPC/1973. Direito de exigir a prestação na forma da lei revogada.

Destaque

Se proferida, transitada e executada a sentença que julgou a primeira fase da ação de prestação de contas na vigência do CPC/1973, adquire o vencedor o direito de exigir que sejam elas prestadas e apuradas na forma da lei revogada.

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia a definir se houve a observância das regras do CPC/1973 vigente ao tempo da prolação da sentença e do início da segunda fase da ação de prestação de contas.

Inicialmente, da análise da regra do art. 14 do CPC/2015, conclui-se que o legislador processual adotou a teoria do isolamento dos atos processuais, da qual se extraem elementos balizadores sobre o momento de incidência do novo CPC aos processos em curso, a saber: irretroatividade da lei, aplicação imediata aos processos pendentes, respeito aos atos processuais praticados e às situações jurídicas consolidadas.

Embora a distinção nem sempre seja simples, na medida em que o processo é uma relação jurídica complexa e dinâmica consistente em sucessivos atos encadeados em busca da tutela jurisdicional, não se pode olvidar que a ação de prestação de contas, enquanto procedimento especial bifásico, possui natureza objetivamente complexa – ou seja, contempla duas espécies distintas de obrigação.

Assim, dado que houve sentença e trânsito em julgado da primeira fase da ação, bem como início da segunda fase da ação, tudo sob a égide do CPC/1973, essa deverá ser a lei regente quanto ao modo de apuração dos débitos, créditos e saldo porventura existentes, na medida em que o recorrente adquiriu o direito de exigi-las na constância da lei revogada.

Registra-se que, mesmo na vigência do CPC/1973, o STJ tem precedentes no sentido de abrandar eventual rigorismo e formalismo exacerbado na prestação de contas, devendo ser observado, em verdade, se são elas claras e inteligíveis, de modo a atingir as finalidades do processo.

Assim, deve-se estabelecer como tese jurídica que, independentemente da nomenclatura adotada, prestação de contas de forma mercantil ou de forma adequada, a efetiva prestação das contas deverá ocorrer de maneira clara e inteligível, de modo a atingir às finalidades dessa ação.

Processo

REsp 1.868.855-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 22/09/2020, DJe 28/09/2020

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Pluralidade de réus. Juros de mora. Termo inicial. Primeira citação válida.

Destaque

Quando há pluralidade de réus, a data da primeira citação válida é o termo inicial para contagem dos juros de mora.

Informações do Inteiro Teor

A citação válida, como regra geral, constitui em mora o devedor, ressalvadas as hipóteses previstas nos arts. 397 e 398 do CC/2002, nos termos do art. 240, caput, do CPC/2015.

A regra geral, no entanto, pode gerar controvérsias quando dos autos constar uma pluralidade de réus, comumente citados em momentos diversos. A dúvida surge, pois se indaga o momento em que eles estarão constituídos em mora – se a data da primeira citação válida realizada nos autos; se a data da última citação realizada; ou se os juros de mora terão termos iniciais diversos, a depender da data da citação de cada litisconsorte.

Quando se trata de obrigação solidária, vislumbra-se com mais facilidade que os juros de mora correrão a partir da data da primeira citação válida realizada nos autos.

A questão ganha contornos mais nebulosos, contudo, quando a hipótese não versa sobre obrigação solidária.

O Tribunal de origem concluiu que o prazo inaugural para a contagem dos juros de mora deve ser a data da citação válida do último corréu, em virtude da aplicação por analogia do art. 231, § 1º, do CPC/2015.

O referido dispositivo legal determina que, quando haja pluralidade de réus, se aguarde a última citação nos autos para que o prazo de contestação de todos os réus passe a ser contado simultaneamente.

Contudo, diferentemente da conclusão adotada pelo Tribunal de origem, os efeitos da citação não podem ser confundidos com o início do prazo para a defesa dos litisconsortes. A primeira situação, em verdade, trata da ciência inequívoca do réu sobre a demanda e a sua constituição em mora; a segunda situação, por sua vez, versa sobre o marco temporal de início da fluência do prazo para o oferecimento da defesa (contestação), que é prolongado até a citação do último litisconsorte, na hipótese de haver pluralidade de réus.

Como mesmo consignado no julgamento do AgInt no REsp 1.362.534/DF, "não se aplica, para a constituição em mora, regra processual disciplinadora do termo inicial do prazo para contestar (CPC/73, art. 241, III), em detrimento da regra geral de direito material pertinente (Código Civil, art. 280)".