quarta-feira, 26 de abril de 2023

A ALTERAÇÃO DO REGIME DE BENS NA UNIÃO ESTÁVEL REGISTRADA PERANTE O CARTÓRIO DE REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS EO PROVIMENTO 141/2023 DO CNJ. SEGUNDA PARTE.

 A alteração do regime de bens na união estável registrada perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais e o Provimento  141/2023 do CNJ. Segunda Parte.

Flávio Tartuce[1]

Carlos Eduardo Elias de Oliveira[2]

Em dois artigos aqui publicados, estamos tratando dos procedimentos para a formalização da alteração do regime de bens na união estável perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) em duas situações. A primeira diz respeito à união estável registrada; e a segunda é relativa à conversão da união estável em casamento. O tema está sendo estudado com base nos recentes arts. 9º-A, 9º-B e 9º-D do Provimento n. 37 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), acrescidos pelo Provimento n. 141 do mesmo CNJ.

Como pontuado em nosso texto anterior, esses dispositivos decorrem da positivação do registro facultativo da união estável, bem como do procedimento extrajudicial de conversão da união estável em casamento, tudo conforme os arts. 70-A e 94-A da Lei n. 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), introduzido pela Lei n. 14.382/2022, a Lei do SERP ou do Sistema Eletrônico de Registros Públicos.

Caso, após o início da união estável, os companheiros desejem alterar o regime de bens, qual procedimento eles devem adotar? Como está apontado em nosso artigo anterior, existem três situações envolvendo a alteração de regime de bens na união estável, quais sejam: a) a que ocorre no curso de uma união estável não registrada no RCPN; b) a que se dá na hipótese de haver o registro da união estável no RCPN; e c) a que ocorre no momento da conversão extrajudicial da união estável em casamento, independentemente de a união estável estar ou não registrada previamente no RCPN. As duas primeiras hipóteses foram tratadas no nosso texto anterior, enquanto a terceira será aqui analisada.

Como é notório, a conversão da união estável em casamento poderá ocorrer diretamente perante o Cartório de Registro das Pessoas Naturais (RCPN), nos termos dos antes citados arts. 70-A da Lei de Registros Públicos e 9º-C a 9º-G do Provimento n. 37 do Conselho Nacional de Justiça.

Surgem então as relevantes dúvidas: como ficará a formalização do regime de bens para o casamento nessa hipótese? É possível que os interessados alterem o regime de bens no momento da conversão? É preciso, porém e de início, atentar para algumas particularidades.

Quando se trata de casamento, a regra geral é a de que a adoção de qualquer regime de bens diverso do da comunhão parcial precisa ser formalizado por meio de escritura pública de pacto antenupcial, nos termos do art. 1.640, parágrafo único, do Código Civil.[3] O referido pacto antenupcial deverá, inclusive, ser registrado no Livro 3 do Cartório de Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges a fim de facilitar consulta por terceiros, o que é retirado do art. 1.657 da codificação privada e do art. 178, inc. V, da Lei de Registros Públicos.[4]

Essa regra geral precisa ser conciliada com as particularidades da anterior união estável, em relação à qual a legislação autoriza o seu registro no RCPN com a escolha de regime de bens mediante um título qualificado: uma escritura pública, um termo declaratório ou uma decisão judicial.

Diante desse cenário, o Provimento n. 37 do CNJ adotou uma solução conciliatória. Em havendo a conversão da união estável em casamento, a regra é a manutenção do mesmo regime de bens que vigorava ao tempo da união estável. Se o regime era o da comunhão parcial de bens, esse seguirá em vigor, sem a necessidade de qualquer formalidade adicional por se tratar do regime legal ou supletório.

Se, porém, o regime de bens era outro quando da união estável, haverá a necessidade da presença de um título qualificado – uma escritura pública, um termo declaratório ou uma decisão judicial, como pontuado –, ou, alternativamente, de uma escritura pública de pacto antenupcial para sustentar formalmente o regime de bens do casamento.

Imagine-se o caso concreto em que um casal vivia em união estável sob o regime da separação convencional de bens, escolhido mediante um título qualificado. Ao converter essa união estável em casamento, eles não precisarão lavrar uma nova escritura pública de pacto antenupcial, pois já portam um título qualificado, o qual foi forjado ao abrigo da fé pública, à semelhança da escritura pública de pacto antenupcial.

Bastará, assim, aos companheiros apresentarem esse título qualificado no momento do requerimento da conversão da união estável, sendo irrelevante se a união estável estava ou não registrada. O que importa é se a escolha do regime de bens da união estável estava formalizada pelo tão citado título qualificado. Essa é a inteligência do art. 9º-D, § § 1º e 5º, inc. I, do Provimento n. 37 do CNJ.

Na hipótese descrita, o título qualificado equivalerá ao pacto antenupcial e, portanto, será o título a ser levado a registro no Livro 3 do Cartório de Imóveis do domicílio dos cônjuges, conforme preceitua o art. 9º-D, § 6º, do Provimento n. 37 do CNJ.

Voltando ao exemplo exposto, suponha-se que o casal vivia sob o regime da separação convencional de bens, com base em um contrato escrito por instrumento particular. Nessa hipótese, ao requerer a conversão da união estável em casamento, será necessária a apresentação de uma escritura pública de pacto antenupcial, visto que inexiste justamente um título qualificado a sustentar a escolha de um regime de bens diverso do legal. Essa é a inteligência do art. 9º-D, §§ 1º e 5º, inc. I, do Provimento n. 37 do CNJ.

Nada impede, porém, que o casal, momentos antes do requerimento da conversão da união estável, formalize a escolha do regime de bens da união estável por meio desse título qualificadoNessa situação, ao requerer a conversão da união estável, não haverá necessidade de uma escritura pública de pacto antenupcial, à vista da suficiência desse título para arrimar a escolha de regime de bens diverso do legal para o casamento.

Outra questão curiosa é saber se, no momento da conversão da união estável em casamento, é possível ou não que o casal altere o regime de bens, de modo que o casamento será sujeito a um regime diverso do que vigorava ao tempo da união estável. A resposta é positiva, e, nesse ponto, o Provimento n. 37 do CNJ foi propositalmente menos burocrático em relação aos companheiros, além de se preocupar com a exigência de expressa manifestação de vontade deles. Nessa esteira, se o casal pretender que, após a conversão da união estável em casamento, passe a vigorar um novo regime de bens, é obrigatória a manifestação expressa de suas vontades.

Se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, bastará a apresentação de uma declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido, que poderá constar do próprio requerimento de conversão da união estável em casamento. Se, porém, o novo regime for diverso, caberá aos companheiros apresentarem uma escritura pública de pacto antenupcial. Não é cabível a apresentação de termo declaratório lavrado perante o RCPN, pois esse último instrumento é exclusivo para a união estável, e não para o casamento. Essas conclusões são retiradas do art. 9º-D, §§ 2º, 3º e 5º, incs. I e II, do Provimento n. 37 do CNJ.

Em qualquer hipótese, não haverá a necessidade de os consortes apresentarem certidões de interdição, de protestos e nem de feitos judiciais, pois essas exigências são exclusivas para as hipóteses de alteração do regime de bens no curso da união estável. O Provimento n. 37 do CNJ, mais uma vez propositalmente, deixou de exigir essas certidões no caso de mudança de regime de bens no momento da conversão da união estável em casamento por dois motivos. O primeiro deles é a necessidade de desburocratizar o ato. O segundo motivo está relacionado ao fato de que os interesses de terceiros estarão totalmente resguardados diante da alteração de regime de bens.

Aliás, sobre esse último aspecto, quando houver alteração do regime de bens, o inciso IV do art. 9º-C do Provimento n. 37 do CNJ é expresso em exigir que, no assento de conversão da união estável em casamento, seja expressamente colocada a seguida advertência: “este ato não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existiam antes da alteração do regime”. Entendemos que, apesar do silêncio do Provimento n. 37 do CNJ, essa advertência deverá constar de todas as certidões extraídas desse assento de conversão da união estável em casamento, pois seu objetivo é informar terceiros acerca de seus direitos.

Por fim, para encerrar este texto, são cabíveis dois alertas. O primeiro é o de que, no assento da conversão da união estável em casamento, somente será consignado o regime de bens que vigorava ao tempo da união estável se esse regime estava expressamente indicado em um título qualificado de união estável ou em um registro da união estável (art. 9º-C, inc. II, do Provimento n. 37 do CNJ). O motivo é que o registro público não pode disseminar informações com baixo grau de confiabilidade, como seria a proveniente de um instrumento particular lavrado pelas partes indicando um regime de bens para a união estável.

O segundo alerta é o de que a análise da incidência ou não do regime da separação legal ou obrigatória de bens, imposto pelo art. 1.641 do Código Civil, precisa atentar para as particularidades do ato envolvido.[5] Estamos diante da conversão da união estável em casamento, o que representa, na prática, a continuidade de uma convivência more uxorio mediante a migração de uma situação jurídica mais informal – a união estável – para uma mais formal – o casamento.

Por essa razão, não se aplicará o regime da separação legal se: a) os cônjuges tinham menos de setenta anos de idade ao tempo do início da união estável, e não ao tempo da sua conversão em casamento; ou b) as eventuais causas suspensivas do casamento, previstas no art. 1.523 do Código Civil e existentes ao tempo do início da união estável, tiverem sido superadas quando da sua conversão em casamento.[6] É o que estabelecem os §§ 3º e 4º do art. 9º-D do Provimento n. 37 do CNJ, em consonância com a posição doutrinária e jurisprudencial antes dominante.

Sobre o item a, o Enunciado n. 261, aprovado na III Jornada de Direito Civil, estabelece que “a obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade”. No mesmo sentido, da jurisprudência superior, por todos: “afasta-se a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico. Interpretação da legislação ordinária que melhor a compatibiliza com o sentido do art. 226, § 3º, da CF, segundo o qual a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento” (STJ, REsp 1.318.281/PE, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 1/12/2016, DJe de 7/12/2016).

No que diz respeito ao item ora descatado, na mesma III Jornada de Direito Civil, aprovou-se o Enunciado n. 262, in verbis: “a obrigatoriedade da separação de bens nas hipóteses previstas nos incs. I e III do art. 1.641 do Código Civil não impede a alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs”. Mais uma vez a jurisprudência superior dialoga de forma precisa com a doutrina, ementando que, “se o Tribunal Estadual analisou os requisitos autorizadores da alteração do regime de bens e concluiu pela sua viabilidade, tendo os cônjuges invocado como razões da mudança a cessação da incapacidade civil interligada à causa suspensiva da celebração do casamento a exigir a adoção do regime de separação obrigatória, além da necessária ressalva quanto a direitos de terceiros, a alteração para o regime de comunhão parcial é permitida” (STJ, REsp 821.807/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/10/2006, DJ de 13/11/2006, p. 261).

Nota-se, assim, que, de forma correta e precisa, o Provimento n. 37 do CNJ – nas alterações efetivadas pelo Provimento n. 141/2023 aqui estudadas -, apenas seguiu a posição consolidada da doutrina e jurisprudência nacionais, dando certeza e segurança para a alteração do regime de bens na conversão da união estável em casamento, aplicando corretamente a lei.


[1] Pós-Doutor e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

[2] Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (FESMDFT) e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado e parecerista. Ex-Advogado da União. Ex-Assessor de Ministro do STJ. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporânea (RDCC).

[3] CC/2002. “Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas.”

[4] CC/2002. “Art. 1.657. As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges” Lei de Registros Públicos. “Art. 178. Registrar-se-ão no Livro nº 3 – Registro Auxiliar: [...] V – as convenções antenupciais.”

[5] CC/2002. "Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial".

[6] CC/2002. “Art. 1.523. Não devem casar: I – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III – o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo.”

INFORMATIVO 771 DO STJ. RESUMO.

 RESUMO. INFORMATIVO 771 DO STJ. 25 DE ABRIL DE 2023.

Processo

EREsp 1.874.222-DF, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, por maioria, julgado em 19/4/2023.

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Execução. Verba salarial. Importância que não excede a 50 (cinquenta) salários mínimos mensais. Impenhorabilidade. Relativização. Garantia do necessário à subsistência digna do devedor e de sua família. Possibilidade.

DESTAQUE

Na hipótese de execução de dívida de natureza não alimentar, é possível a penhora de salário, ainda que este não exceda 50 salários mínimos, quando garantido o mínimo necessário para a subsistência digna do devedor e de sua família.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A divergência reside em definir se, na hipótese de pagamento de dívida de natureza não alimentar, a impenhorabilidade está condicionada apenas à garantia do mínimo necessário para a subsistência digna do devedor e de sua família ou se, além disso, há que ser observado o limite mínimo de 50 salários mínimos recebidos pelo devedor.

De precedente da Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça (EREsp 1.518.169/DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Rel. para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 3/10/2018, DJe 27/2/2019), é possível extrair que a exegese do dispositivo processual (art. 649, IV, do CPC/1973) deve ser orientada também pela teoria do mínimo existencial, admitindo a penhora da parcela salarial excedente ao que se pode caracterizar como notadamente alimentar. Prosseguindo e lançando o olhar sobre o critério previsto no § 2º do art. 833 do CPC/2015 - na parte alusiva às importâncias excedentes a 50 salários mínimos mensais - salientou-se o descompasso do critério legal com a realidade brasileira, a implicar na sua ineficácia.

Ao suprimir a palavra "absolutamente" no caput do art. 833, o novo Código de Processo Civil passa a tratar a impenhorabilidade como relativa, permitindo que seja atenuada à luz de um julgamento principiológico, em que o julgador, ponderando os princípios da menor onerosidade para o devedor e da efetividade da execução para o credor, conceda a tutela jurisdicional mais adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida, linear e inflexível do conceito de impenhorabilidade.

Esse juízo de ponderação entre os princípios simultaneamente incidentes na espécie há de ser solucionado à luz da dignidade da pessoa humana, que resguarda tanto o devedor quanto o credor, e mediante o emprego dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

A fixação desse limite de 50 salários mínimos merece críticas, na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira, tornando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade, que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor e de sua família. Segundo a doutrina, "Restringir a penhorabilidade de toda a 'verba salarial' ou apenas permití-la no que exceder cinquenta salários mínimos, mesmo quando a penhora de uma parcela desse montante não comprometa a manutenção do executado, pode caracterizar-se como aplicação inconstitucional da regra, pois prestigia apenas o direito fundamental do executado, em detrimento do direito fundamental do exequente".

Portanto, mostra-se possível a relativização do § 2º do art. 833 do CPC/2015, de modo a se autorizar a penhora de verba salarial inferior a 50 salários mínimos, em percentual condizente com a realidade de cada caso concreto, desde que assegurado montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família.

Importante salientar, porém, que essa relativização reveste-se de caráter excepcional e dela somente se deve lançar mão quando restarem inviabilizados outros meios executórios que garantam a efetividade da execução e, repita-se, desde que avaliado concretamente o impacto da constrição sobre os rendimentos do executado.

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

LEGISLAÇÃO

Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), art. 649, IV,

Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), art. 833, § 2º.

SEGUNDA SEÇÃO

Processo

AR 6.463-SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 12/4/2023.

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Ação rescisória. Decisão rescindenda publicada em nome de advogado que nunca representou o autor nos autos da ação originária. Nulidade. Determinação de nova publicação da decisão rescindenda com reabertura do prazo do recurso.

DESTAQUE

A ausência de intimação da decisão que implicou o provimento parcial do recurso interposto pela parte contrária é sempre prejudicial ao recorrido, sendo cabível o manejo de ação rescisória.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Cinge-se a controvérsia a analisar a rescisão da decisão impugnada por ausência de intimação válida do advogado na ação originária.

Em caso versando sobre "a possibilidade do manejo da ação rescisória, no caso de reconhecimento de nulidade absoluta, pela falta de intimação do procurador do recorrente acerca dos atos processuais praticados", esta Corte concluiu que "a exclusividade da querela nullitatis para a declaração de nulidade de decisão proferida sem regular citação das partes, representa solução extremamente marcada pelo formalismo processual. [...] A desconstituição do acórdão rescindendo pode ocorrer tanto nos autos de ação rescisória ajuizada com fundamento no art. 485, V, do CPC/1973 quanto nos autos de ação anulatória, declaratória ou de qualquer outro remédio processual" (STJ, REsp 1.456.632/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 7/2/2017, DJe 14/2/2017).

Assim sendo, é admissível a presente ação rescisória para declarar a nulidade da intimação do autor após o julgamento unipessoal do recurso especial interposto pelo réu.

Na hipótese, após o julgamento unipessoal do AREsp 1.370.930/SP em 29/11/2018, a Secretaria desta Corte, em virtude de equívoco na autuação, efetuou a publicação, em 7/12/2018, em nome de advogado que não tinha e nunca teve representação nos autos e não em nome do único advogado constituído pelo autor na ação originária.

O § 2º do art. 272 do CPC 2015 dispõe que: "Sob pena de nulidade, é indispensável que da publicação constem os nomes das partes e de seus advogados, com o respectivo número de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, ou, se assim requerido, da sociedade de advogados". Assim, a publicação da decisão unipessoal desta Corte em nome de advogado que nunca representou o autor nos autos da ação originária implicou violação manifesta ao disposto no § 2º do art. 272 do CPC 2015.

Como decidido por esta Corte, em mais de uma oportunidade, a ausência de intimação da parte em virtude de equívoco na autuação autoriza a rescisão do julgado. "A ausência de intimação do recorrido, por erro na autuação do recurso especial, para a apresentação de contrarrazões e demais atos da parte constitui violação literal ao disposto no § 1º do art. 236 do Código de Processo Civil de 1973, possibilitando-se a rescisão do julgado com fundamento no art. 485, V, do mesmo estatuto".

Em suma, a ausência de intimação da decisão que implicou o provimento parcial do recurso interposto pela parte contrária é sempre prejudicial ao recorrido. Nessa direção, esta Corte já observou que "o defeito ou a ausência de intimação - requisito de validade do processo (arts. 236, § 1º, e 247 do CPC/1973) - impedem a constituição da relação processual e constituem temas passíveis de exame em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de forma, alegação de prejuízo ou provocação da parte. Trata-se de vícios transrescisórios".

Impõe-se concluir pela procedência do primeiro pedido rescisório (CPC 2015, art. 968, inciso I) para reconhecer que a publicação da decisão rescindenda em nome de advogado que nunca representou o autor nos autos da ação originária violou literalmente o disposto no art. 272, § 2º, do CPC 2015.

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

LEGISLAÇÃO

Código de Processo Civil de 2015 (CPC), arts. 272, § 2º966, inc. V, e 968, inc. I

Processo

REsp 1.896.515-RS, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, por unanimidade, julgado em 11/4/2023, DJe 17/4/2023.

Ramo do Direito

DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO PREVIDENCIÁRIO, DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Controle judicial ex officio do negócio jurídico de transmissão creditícia. Viabilidade. Art. 168, parágrafo único, do Código Civil.

DESTAQUE

A possibilidade de cessão de precatórios decorrentes de ações previdenciárias não impede o juiz de controlar ex officio a validade de sua transmissão, negando a produção de efeitos a negócios jurídicos eivados de nulidade, independentemente de ajuizamento de ação própria.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Apesar da viabilidade de cessão de precatórios decorrentes de ações previdenciárias, ressalva-se o controle judicial ex officio de acordos entabulados entre segurados e cessionários, notadamente para afastar eventuais transações abusivas firmadas em casos de premente necessidade econômica de pessoas vulneráveis.

As transferências de precatórios são perpetradas mediante instrumentos públicos ou particulares, qualificando-se como negócios jurídicos por meio dos quais o credor cede o seu direito obrigacional a terceiro, denominado de cessionário, que assume a posição daquele na relação havida com a Fazenda Pública, a qual não pode se opor à transação, nos termos do citado art. 100, § 13, da Constituição Federal.

Dessa maneira, tratando-se de acordos firmados entre particulares para a transmissão de direitos, aplicam-se a eles as causas de nulidade dos negócios jurídicos privados (arts. 166 e 167 do Código Civil).

Essas hipóteses revelam nulidade absoluta, razão pela qual, tratando-se de matéria de ordem pública, pode o juiz, de ofício, reconhecer a invalidade e negar a produção de efeitos aos respectivos negócios jurídicos sempre que tiver conhecimento da avença, independentemente de ajuizamento de ação própria, nos termos do art. 168, parágrafo único, do Código Civil.

Outrossim, a possibilidade de controle judicial dos negócios jurídicos relativos à cessão de precatórios não contraria o princípio da demanda previsto nos arts. 42 e 141 do CPC/2015, porquanto, a par da expressa autorização prevista no art. 168, parágrafo único, do Código Civil, tais transferências creditícias são praticadas na fase de cumprimento de sentença, na qual incumbe ao magistrado identificar o destinatário da ordem de pagamento, certificando-se da regularidade da transmissão dos respectivos créditos, de modo a garantir a escorreita satisfação do título judicial.

Além disso, sendo vedado à Fazenda Pública opor-se à cessão de precatório, impedir o magistrado de aferir a regularidade da transação abre margem a abusos praticados por agentes econômicos que, ante necessidade financeira de parcela dos segurados do Regime Geral de Previdência Social - RGPS, podem impor condições excessivamente gravosas a pessoas socioeconomicamente vulneráveis para a obtenção imediata de recursos financeiros.

Dessa forma, embora possível a cessão de precatórios decorrentes de ações previdenciárias, pode o juiz controlar, de ofício, a validade das respectivas transferências creditícias, negando a produção de efeitos a negócios jurídicos eivados de nulidade.

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

LEGISLAÇÃO

Constituição Federal (CF)art. 100, § 13

Código Civil (CC)arts. 166167168, parágrafo único

Código de Processo Civil (CPC)arts. 42 e 141

TERCEIRA TURMA

Processo

REsp 2.035.370-DF, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 18/4/2023.

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Ação de indenização. Cheque nominal. Endosso. Fraude. Compensação e depósito. Instituição financeira. Pretensão indenizatória. Limitação aos prejuízos sofridos. Condenação ao pagamento do valor das cártulas indevidamente compensadas. Provimento jurisdicional distinto. Julgamento extra petita. Configuração.

DESTAQUE

É extra petita a decisão que, em ação de reparação de prejuízos supostamente causados pela compensação e posterior depósito de cheque nominal endossado por quem não tinha poderes para tanto, condena a instituição financeira ao pagamento do valor das cártulas indevidamente compensadas.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A pretensão da parte autora era a restituição dos prejuízos resultantes da desídia imputada à instituição financeira demandada ao deixar de conferir a regularidade de endossos lançados em cheques por ela compensados, equivalente aos valores despendidos para pôr fim às demandas judiciais contra ela ajuizadas pelos emitentes das cártulas, acrescido do numerário que viesse a ser despendido nos demais feitos que ainda estavam em curso.

Contudo, o Tribunal de origem julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados na petição inicial, para condenar a parte ré ao pagamento de valores referentes às cártulas indevidamente compensadas, com correção monetária e juros de mora desde a data das respectivas compensações bancárias.

Ao assim decidir, o órgão julgador concedeu providência jurisdicional diversa da requerida, em flagrante desrespeito ao princípio da congruência, impondo a devolução dos autos à origem para novo julgamento da apelação.

Em que pese já ter sido concomitantemente examinado na origem o pedido de reparação dos prejuízos alegadamente sofridos em virtude da desídia imputada à instituição financeira, que a autora não possuía, naquele momento, interesse recursal para se irresignar contra o acórdão que, ao fim e ao cabo, concedeu-lhe provimento jurisdicional distinto, daí a necessidade de se determinar o retorno dos autos à origem de modo a facultar o pleno exercício do direito fundamental à jurisdição efetiva em todos os graus recursais.

É que, em regra, a decretação de nulidade é a sanção prevista para a hipótese de decisão extra ou ultra petita, somente podendo ser relativizada, mediante o decote da parte que excede à pretensão manifestada, se não houver prejuízo para as partes. Havendo prejuízo para uma das partes, como ocorre na espécie, proclama-se a nulidade de todo o julgado.

Além disso, nas razões da apelação foi aventada a hipótese de cerceamento de defesa em virtude do indeferimento do pedido de produção de provas, de modo que, calcada a improcedência do pedido de reparação de prejuízos na ausência de prova quanto aos fatos constitutivos do direito da autora, impõe-se mesmo determinar o rejulgamento da apelação em toda a sua extensão.

Processo

REsp 1.743.330-AM, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Rel. para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 11/04/2023, DJe 14/04/2023

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Distinção (distinguishing). 1076/STJ. Necessidade de existência de uma circunstância fática distinta daquelas consideradas relevantes na formação do precedente. Injustiça, desproporcionalidade, irrazoabilidade, falta de equidade ou dissenso em relação a precedentes de outras cortes. Impossibilidade. Circunstâncias que dizem respeito à necessidade de superação do precedente (overrruling).

DESTAQUE

A circunstância de a ação ter sido extinta sem resolução de mérito, conquanto se trate de uma situação de fato, não é suficientemente relevante para aplicar distinguishing em relação ao precedente firmado no julgamento do Tema 1076, especialmente porque essa circunstância fática também estava presente em dois dos recursos representativos daquela controvérsia e, ainda assim, a Corte Especial compreendeu se tratar de hipótese em que a regra do art. 85, §§ 2º e 3º, do CPC/2015, igualmente deveria ser aplicada de maneira literal.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

O propósito recursal consiste em definir se, em embargos de terceiro extintos sem resolução do mérito por ausência de interesse processual, aplica-se o Tema repetitivo 1076, impondo-se o arbitramento de honorários advocatícios sucumbenciais ao patrono do vencedor no percentual de 10 a 20% sobre o valor atualizado da causa.

Deve-se verificar, para a conclusão do entendimento a seguir exposto, dois relevantes momentos históricos desta Corte. São eles:

O primeiro desses momentos é o julgamento do REsp 1.746.072/PR, perante a Segunda Seção, cujo acórdão foi publicado no DJe 29/3/2019. Naquela ocasião, esta Corte deu o primeiro sinal concreto de que poderia mudar a sua histórica orientação a respeito da possibilidade de fixação equitativa de honorários advocatícios quando a fixação rígida resultasse em verba demasiadamente vultosa.

O segundo momento é o recente julgamento do Tema 1076, perante a Corte Especial, cujos acórdãos foram publicados em 31/5/2022, em que aquela sinalização inicial se materializou em forma de um precedente vinculante. Nesse julgamento, houve debate acerca da desproporcionalidade, irrazoabilidade, necessidade de conformação constitucional e injustiça, fundando-se naquilo que havia de mais profundo e moderno na doutrina da sociologia jurídica, da filosofia jurídica, da teoria da constituição e da teoria geral do direito, o que pode ser observado no voto vencido.

Registre-se, ainda, que o fato de a ação ser extinta sem resolução de mérito foi expressamente considerado no precedente, compreendendo a Corte Especial que a tese firmada no julgamento do Tema 1076 seria aplicável também nessa hipótese.

A distinção - que permite que os órgãos fracionários se afastem de um precedente vinculante firmado no julgamento de recursos especiais submetidos ao rito dos repetitivos somente poderá existir diante de uma hipótese fática diferente daquela considerada relevante para a formação do precedente.

Não se deve, portanto, reconhecer a existência de uma distinção entre o precedente firmado no Tema 1076 e a hipótese em exame, de modo a impor-se solução jurídica diversa, razão pela qual é preciso dar balizas exatas ao que se deve compreender como distinguishing. Quanto a esse ponto: "ao contrário do que ocorre na revogação de precedentes, a diferenciação de casos pode ser realizada por qualquer magistrado, não existindo problemas atinentes à competência, havendo a possibilidade de distinção de um precedente do STF por um juiz de primeiro grau. É uma espécie de técnica que visa o afastamento de um precedente não por ele ser injusto, mas simplesmente por não se adequar à situação fática".

Não há que se falar em distinção pela injustiça, pela desproporcionalidade, pela irrazoabilidade, pela falta de equidade ou pela existência de outros julgados do Supremo Tribunal Federal que não se coadunariam com o precedente, pois tais circunstâncias importariam na eventual necessidade de superação do precedente, mas não no uso da técnica de distinção, que é lícito fazer, quando de sua aplicabilidade prática, mas desde que presente uma circunstância fática distinta. Tais circunstâncias, quando muito, importariam na eventual necessidade de superação do precedente, mas jamais no uso da técnica de distinção que se pode fazer quando de sua aplicabilidade prática, desde que presente uma circunstância fática distinta.

Assim, o art. 85, §§ 2º e 3º, do CPC/2015, deverá ser aplicado, de forma literal, pelos órgãos fracionários desta Corte se e enquanto não sobrevier modificação desse entendimento pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 1.412.073/SP, do RE 1.412.074/SP e do RE 1.412.069/PR, todos em tramitação perante o Supremo Tribunal Federal, ou se e enquanto não sobrevier, nesta Corte, a eventual superação do precedente formado no julgamento do Tema 1076.

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

LEGISLAÇÃO

Código de Processo Civil, art. 85, §§ 2º e 3º

QUARTA TURMA

Processo

AgInt nos EDcl no AREsp 2.182.745-BA, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 18/4/2023.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Execução. Aquisição de imóvel no curso da demanda executiva. Fraude à execução. Não configuração. Bem de família. Impenhorabilidade. Afastamento. Não cabimento.

DESTAQUE

O fato de o bem imóvel ter sido adquirido no curso da demanda executiva não afasta a impenhorabilidade do bem de família.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

As regras que estabelecem hipóteses de impenhorabilidade não são absolutas. O art. 3º da Lei n. 8.009/1990 prevê uma série de exceções à impenhorabilidade.

A aquisição do imóvel posteriormente à dívida não configura, por si só, fraude à execução, tampouco afasta proteção conferida ao bem de família (REsp 573.018/PR, relator Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 9/12/2003, DJ 14/6/2004, p. 235, e REsp 1.792.265/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 14/12/2021, DJe 14/3/2022).

A regra de impenhorabilidade do bem de família trazida pela Lei n. 8.009/1990 deve ser examinada à luz do princípio da boa-fé objetiva, que, além de incidir em todas as relações jurídicas, constitui diretriz interpretativa para as normas do sistema jurídico pátrio.

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

LEGISLAÇÃO

Lei n. 8.009/1990, arts. 3º e 

Processo

REsp 1.402.929-DF, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 11/4/2023.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR

Tema

Medicamentos. Dipirona. Riscos inerentes à utilização. Descrição na bula. Dever de informação. Cumprimento. Reações adversas. Responsabilização do fornecedor. Não cabimento. Código de Defesa do Consumidor. Teoria do risco da atividade do negócio ou empreendimento. Inaplicabilidade. Inexistência de defeito do produto.

DESTAQUE

Não é possível responsabilizar o fabricante de medicamento por reação adversa descrita na bula, risco inerente ou intrínseco à sua própria utilização.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A reação adversa, por si só, não constitui em motivo suficiente para configurar a responsabilidade do fabricante do medicamento. Isso porque a teoria do risco da atividade do negócio ou empreendimento adotada no Sistema do Código de Defesa do Consumidor não tem caráter absoluto, integral ou irrestrito, na medida em que admite exceções ou exclusões, dado que o dever de indenizar exige requisitos específicos, entre os quais o defeito do produto, sem o qual não se configura a responsabilidade civil objetiva do fornecedor.

Os medicamentos caracterizam-se como produtos de risco intrínseco, inerente, nos quais os perigos decorrem da sua própria utilização e da finalidade para a qual se destinam, sendo do conhecimento comum que a inoculação de qualquer remédio, seja por via oral ou injetável, tem potencial para ensejar reações adversas, as quais, ainda que sejam suportadas pelo consumidor, não configuram defeito do produto, afastando, em consequência, a obrigação de indenizar, desde que a potencialidade e a frequência desses efeitos nocivos estejam descritas na bula, em cumprimento ao dever de informação do fabricante.

A responsabilidade do fornecedor de medicamentos, segundo o sistema adotado pelo Código de Defesa de Consumidor, restringe-se aos casos em que for constatado defeito no produto, seja de concepção, fabricação ou de informação, e não os riscos normais e esperados, assim considerados os decorrentes da própria nocividade dos efeitos adversos de seus princípios ativos, situação que se verifica na generalidade dos casos de administração de remédios.

Essa conclusão não se altera em decorrência do medicamento estar incluído entre aqueles que podem ser adquiridos sem necessidade de prescrição médica, por apresentarem baixo grau de risco em sua ingestão, nocividade reduzida, destinarem-se ao tratamento de enfermidades simples e passageiras e não terem potencial de causar dependência física ou psíquica, conforme previsto em regulamentação específica. A dipirona preenche esses requisitos, diante da constatação de que a possibilidade de reação alérgica é ocorrência imprevisível e de incidência remotíssima.

Sendo incontestável a eficiência da dipirona para os fins a que se destina (analgésico e antitérmico), associada ao fato de que a reação alérgica que acometeu a parte autora da ação, a despeito de gravíssima, está descrita na bula, não decorre propriamente de defeito do fármaco, mas de imprevisível característica do sistema imunológico do paciente, não há que se falar em defeito do produto, pressuposto básico para a obrigação de indenizar do fornecedor.

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

LEGISLAÇÃO

Código de Defesa do Consumidor (CDC), art. 8º

Código Civil (CC), arts. 186 e 927

Processo

AgInt no AgInt no REsp 1.922.029-DF, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 18/4/2023.

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL

Tema

Dissolução parcial de sociedade. Fase executiva. Sociedade empresária. Ausência de citação. Legitimidade passiva. Participação de todos que integram quadro social na fase de conhecimento. Ausência de prejuízos. Pas de nullité sans grief.

DESTAQUE

Em ação de dissolução parcial de sociedade por cotas, a sociedade empresária possui legitimidade para figurar no polo passivo da fase executiva, ainda que não tenha sido citada e não tenha integrado a fase de conhecimento, quando todos que participavam do quadro social integraram a lide e não se constata prejuízos às partes.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A parte, sociedade empresária (pessoa jurídica), argumenta que não seria parte legítima para figurar no polo passivo da demanda executiva, pois, não tendo sido citada e não tendo integrado a ação de conhecimento - Dissolução Parcial de Sociedade por Cotas -, da qual participaram apenas os sócios (pessoas físicas), não poderia ser responsabilizada pelo pagamento dos haveres na fase de cumprimento de sentença.

Precedentes desta Casa indicavam que "Na ação de dissolução parcial de sociedade limitada, é desnecessária a citação da pessoa jurídica se todos os que participam do quadro social integram a lide" (REsp 1.121.530/RN, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 13/9/2011, DJe 26/4/2012).

Por outro lado, julgados mais recentes, ainda sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, apontam que "A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que, em regra, na ação para apuração de haveres de sócio, a legitimidade processual passiva é da sociedade e dos sócios remanescentes, em litisconsórcio passivo necessário" (REsp 1.015.547/AM, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 1º/12/2016, DJe 14/12/2016).

Contudo, nesse mesmo julgado ponderou-se que seria possível mitigar esse entendimento diante de especificidades do caso concreto, em que não se constate prejuízos às partes demandadas, às quais tenha sido assegurada a ampla defesa e o contraditório.

Nesse contexto, no caso ora em análise, verifica-se que eram partes na ação de dissolução parcial da sociedade todos os sócios da empresa. Trata-se de sociedade empresária pequena, com apenas uma sócia remanescente, após o falecimento do outro sócio, a qual foi citada e integrou a ação de dissolução parcial da sociedade, em que o interesse da sócia se confunde com o da própria sociedade.

No decorrer da ação, houve ampla defesa e contraditório, inclusive com apresentação de contestação, reconvenção, réplica e outras petições, agravo de instrumento e apelação. Deve ser aplicado, portanto, o princípio pas de nullité sans grief ("não há nulidade sem prejuízo").