quarta-feira, 29 de setembro de 2021

A USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA INDIVIDUAL POR ABANDONO DO LAR OU USUCAPIÃO FAMILIAR. ALGUMAS POLÊMICAS.

 A USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA INDIVIDUAL POR ABANDONO DO LAR OU USUCAPIÃO FAMILIAR.

ALGUMAS POLÊMICAS.

Flávio Tartuce[1]

A Lei 12.424, de 16 de junho de 2011, incluiu no sistema a usucapião especial urbana individual por abandono do lar, também conhecida como usucapião familiar. Conforme o art. 1.240-A do Código Civil, “aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. Em complemento, o seu § 1º estabelece que “o direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez”.

Como se pode perceber, o instituto traz algumas semelhanças em relação à usucapião constitucional ou especial urbana individual que já estava prevista no sistema, que pode ser denominada como regular, prevista no art. 1.240 do Código Civil e no art. 183 da Constituição Federal. De início, cito a dimensão de 250 m², que é exatamente a mesma, procurando o legislador manter a uniformidade legislativa. Isso, apesar de que em alguns locais a área pode ser tida como excessiva, conduzindo a usucapião de imóveis de valores milionários. Ademais, o novo instituto somente pode ser reconhecido uma vez, desde que o possuidor não tenha um outro imóvel urbano ou rural.

A principal novidade da norma transcrita foi a redução do prazo para exíguos dois anos, o que faz com que a nova categoria seja aquela com o menor prazo previsto entre todas as modalidades de usucapião, inclusive em relação aos bens móveis – hipótese em que o prazo menor era de três anos (art. 1.260 do CC). A tendência contemporânea é justamente a de redução dos prazos legais, eis que a realidade possibilita a tomada de decisões com maior rapidez.

O abandono do lar é tido como fator determinante para a incidência da norma, somado ao estabelecimento da moradia com posse direta. O comando pode atingir cônjuges ou companheiros, inclusive homoafetivos, diante do amplo reconhecimento jurídico da união e do casamento homoafetivo. Fica claro que o instituto tem incidência restrita entre os componentes da entidade familiar, sendo esse o seu âmbito de aplicação. Nesse sentido, enunciado doutrinário aprovado na V Jornada de Direito Civil, com a seguinte redação: “a modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas” (Enunciado n. 500).

Como outra questão prática de relevo, em havendo disputa, judicial ou extrajudicial, relativa ao imóvel, não ficará caracterizada a posse ad usucapionem, não sendo o caso de subsunção do preceito. Eventualmente, o cônjuge ou companheiro que abandonou o lar pode notificar o ex-consorte, para demonstrar o impasse relativo ao bem, afastando o cômputo do prazo, especialmente pelas ausências da posse pacífica e do animus domini. Trazendo essa ideia, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: “Acolhimento do pedido de reconhecimento de domínio pela usucapião que se mostra inviável. Instituto da usucapião familiar/conjugal, previsto no artigo 1.240-A que pressupõe que o imóvel que se pretende usucapir seja, por força do regime de bens, do casal, em comunhão, decorrente do regime de bens do casamento ou da união estável, ou em condomínio. Imóvel que, no caso em tela, pertence unicamente ao primeiro réu, o qual o recebeu em doação quando ainda era menor. Demais modalidades que imprescindem do animus domini, não demonstrado na hipótese em exame. Permanência da autora no imóvel, juntamente com os filhos do ex-casal, que indica somente a tolerância com a situação fática acarretada pelo rompimento do vínculo conjugal. Incidência do art. 1.208 do Código Civil. Notificação extrajudicial realizada que cumpriu a finalidade de denunciar o contrato e demonstrou o interesse da usufrutuária e do nu-proprietário em reaver o imóvel, perfectibilizando-se o esbulho. Incidência do artigo 582 do Código Civil” (TJRJ, Apelação n. 0390522-36.2016.8.19.0001, Rio de Janeiro, Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Heleno Ribeiro Pereira Nunes, DORJ 10/06/2021, p. 298). Ou, ainda, do Tribunal Paulista: “Embora o réu tenha constituído nova família, não restou configurado abandono. Réu que vem pagando pensão alimentícia e exercendo o direito de visitas à filha comum do casal. Mera ocupação autorizada do imóvel comum que restou continuada diante de permissão do coproprietário. Ausente requisito do animus domini para o seu reconhecimento” (TJSP, Apelação cível n. 1002348-40.2016.8.26.0704, Acórdão n. 14935725, São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Elcio Trujillo, julgado em 19/08/2021, DJESP 24/08/2021, p. 1668).

Tem-se entendido, com razão, que o requisito do abandono do lar merece uma interpretação objetiva e cautelosa. Nessa linha, o Enunciado n. 499 aprovado na V Jornada de Direito Civil, em 2011, que analisava muito bem a temática: “a aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito ‘abandono do lar’ deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e dever de sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião” (Enunciado n. 499). Como incidência concreta desse enunciado doutrinário anterior, não se pode admitir a aplicação da nova usucapião nos casos de atos de violência praticados por um cônjuge ou companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada ao abandono.

Outra aplicação da última ementa doutrinária diz respeito ao afastamento de qualquer debate a respeito da culpa, com o fim de influenciar a usucapião a favor de um ou outro consorte. Na verdade, existindo qualquer controvérsia a respeito do imóvel, não há que se falar em posse ad usucapionem com a finalidade de gerar a aquisição do domínio. De toda sorte, na VII Jornada de Direito Civil, realizada em 2015, o Enunciado n. 499 foi cancelado, substituído por outro com linguagem mais clara, que parece englobar as hipóteses aqui mencionadas. Nos termos da nova ementa doutrinária, “o requisito do ‘abandono do lar’ deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o Enunciado 499” (Enunciado n. 595). Penso que o novo enunciado não inova substancialmente, trazendo como conteúdo exatamente o que estava tratado no anterior, ora cancelado, apenas com o uso de termos mais claros e objetivos.

Merece destaque outro enunciado doutrinário aprovado na V Jornada, que conclui que não é requisito indispensável para a nova usucapião o divórcio ou a dissolução da união estável, bastando a mera separação de fato: “as expressões ‘ex-cônjuge’ e ‘ex-companheiro’, contidas no artigo 1.240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio” (Enunciado n. 501). Julgando dessa forma, somente para ilustrar: “o evento a quo para o início da contagem do prazo prescricional é a separação de fato do casal, com o abandono do lar por um dos cônjuges” (TJSP, Apelação n. 0023846-23.2012.8.26.0100, Acórdão n. 7215564, São Paulo, Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Carlos Ferreira Alves, julgado em 03/12/2013, DJESP 21/01/2014).

Na mesma V Jornada de Direito Civil concluiu-se que “o conceito de posse direta do art. 1.240-A do Código Civil não coincide com a acepção empregada no art. 1.197 do mesmo Código” (Enunciado n. 502 da V Jornada de Direito Civil). Isso porque o imóvel pode ser ocupado por uma pessoa da família do ex-cônjuge ou ex-companheiro que pleiteia a usucapião, caso de seu filho, conforme consta do próprio dispositivo. Em casos tais, pelo teor do enunciado e na minha opinião doutrinária, a usucapião é viável juridicamente.

Como última questão divergente a ser exposta neste breve texto, há intenso debate a respeito da competência para apreciar tal modalidade de usucapião, se da Vara de Registros Públicos, da Vara Cível ou da Vara da Família. Em discussões recentes, em grupos digitais, percebi que a primeira corrente prevalece entre os civilistas, enquanto a segunda entre os familiaristas. Entendo que, por se tratar de questão eminentemente civil, em que a primeira análise para a configuração do instituto diz respeito à configuração ou não da posse ad usucapionem, a competência deve ser das duas primeiras.

Exatamente nesse sentido decidiu recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo, confirmando a posição do seu Órgão Especial, que “a questão afeta à competência para apreciação da usucapião familiar já foi solucionada pelo Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça, cabendo às varas cíveis ou de registros públicos (onde não houver varas cíveis) apreciar a matéria” (TJSP, Apelação cível n. 1020898-41.2019.8.26.0005, Acórdão n. 14851731, São Paulo, Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Silvério da Silva, julgado em 26/07/2021, DJESP 30/07/2021, p. 2831). Na mesma linha, julgou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal que “a relação jurídica em discussão, de ordem eminentemente patrimonial, no que se compreende a pretensão inicial de usucapião familiar, com fundamento no art. 1.240-A do Código Civil, atrai inexoravelmente a competência do Juízo Cível. Súmula n. 24 do TJDFT e precedente julgado na 2ª Câmara Cível” (TJDF, Apelação cível n. 00380.18-62.2016.8.07.0001, Acórdão n. 134.4789, Sétima Turma Cível, Rel. Des. Fábio Eduardo Marques, julgado em 09/06/2021). Por fim, do Tribunal Fluminense, em prejuízo de muitos outros julgados, sendo essa a posição majoritária das Cortes Estaduais brasileiras: “o objeto da demanda é a aquisição originária da propriedade do imóvel em que reside a autora, de modo que a matéria a ser apreciada e julgada nos autos é de natureza eminente patrimonial, não havendo qualquer questão relativa à relação familiar. Matéria que não se encontra no rol da competência das varas de família, expressamente delimitada no art. 43 da LODJ” (TJRJ, Apelação n. 0012457-50.2019.8.19.0210, Décima Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Ricardo Rodrigues Cardozo, DORJ 29/07/2020, p. 371).

Esse último entendimento ganha força diante da comum situação de os autores das ações de usucapião alegarem a presença não só de uma de suas modalidades. Assim, é usual que a parte alegue não só a usucapião familiar, mas também a usucapião ordinária e a extraordinária, pela presença de requisitos cumulativos, de uma ou outra categoria. A configuração ou não de seus elementos é melhor apreciada pelo Juízo Cível do que pelo Juízo da Família, na minha opinião.

Não se pode negar, contudo, que a questão não é pacífica, existindo acórdãos em sentido contrário, como nas hipóteses em que a usucapião é alegada como matéria de defesa em ações de divórcio ou de dissolução de união estável. Ou, ainda, as hipóteses concretas em que há divergência a respeito da presença ou não de uma união estável, motivadora da usucapião. Trazendo essa solução, pela competência da Vara da Família, colaciono o seguinte julgado, do Tribunal de Santa Catarina:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DIVÓRCIO C/C PARTILHA DE BENS. CASAMENTO SOB O REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. SENTENÇA DE DETERMINOU A DIVISÃO DO IMÓVEL ADQUIRIDO PELOS LITIGANTES. RECURSO DA RÉ. DECISÃO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. JUIZ QUE DECIDIU CONFORME INTERPRETAÇÃO DOS FATOS NARRADOS PELAS PARTES. APELANTE QUE ALEGA QUE O EX-MARIDO ABANDONOU O LAR CONJUGAL, E PORTANTO O IMÓVEL DEVE SER EXCLUÍDO DA PARTILHA, POIS CONFIGUROU-SE A USUCAPIÃO FAMILIAR. APELADO QUE SEMPRE MANTEVE CONTATO COM A FILHA DO CASAL. ABANDONO DO LAR NÃO COMPROVADO. REQUISITOS DA USUCAPIÃO FAMILIAR (ART. 1.240-A, DO CÓDIGO CIVIL) NÃO PREENCHIDOS. COMPETÊNCIA DA VARA DA FAMÍLIA DA AÇÃO QUE VERSA SOBRE USUCAPIÃO FAMILIAR. AÇÃO CONEXA POR IDENTIDADE DE OBJETOS À AÇÃO DE DIVÓRCIO DADO QUE ENVOLVE RELAÇÃO FAMILIAR. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Para que se configure a usucapião familiar, é necessário que o ex-cônjuge ou ex-companheiro tenha abandonado o lar conjugal de forma dolosa, deixando o núcleo familiar à própria sorte, ignorando o que a família um dia representou. Assim, a simples saída de casa, não configura o abandono do lar, que deve ser interpretado de maneira cautelosa, com provas robustas amealhadas ao longo da instrução processual” (TJSC, Apelação cível n. 0303473-85.2016.8.24.0075, Tubarão, Terceira Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Saul Steil, DJSC 12/03/2018, p. 142).

Como palavras finais para este breve texto, não se pode negar que existem argumentos consideráveis para os dois caminhos a respeito da competência. De todo modo, reafirmo o meu entendimento no sentido de se tratar de tema relacionado a matéria predominantemente civil, sendo certo que a grande maioria das demandas de usucapião, como aqui se demonstrou, traz o debate sobre a caracterização ou não da posse ad usucapionem.


[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

RESUMO. INFORMATIVO 710 DO STJ.

 RESUMO. INFORMATIVO 710 DO STJ. 


Publicação: 27 de setembro de 2021.


RECURSOS REPETITIVOS

Processo

REsp 1.656.161-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 16/09/2021. (Tema 977)

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Previdência complementar aberta. Reajuste dos benefícios. Circular/SUSEP n. 11/1996. Índice geral de preços de ampla publicidade. IPCA-E. Índice na falta de repactuação. Taxa Referencial (TR). Não cabimento. Tema 977.

DESTAQUE

A partir da vigência da Circular/SUSEP n. 11/1996, é possível ser pactuado que os reajustes dos benefícios dos planos administrados pelas entidades abertas de previdência complementar passem a ser feitos com utilização de um Índice Geral de Preços de Ampla Publicidade (INPC/IBGE, IPCA/IBGE, IGPM/FGV, IGP-DI/FGV, IPC/FGV ou IPC/FIPE). Na falta de repactuação, deve incidir o IPCA-E.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A questão controvertida consiste em saber se, com o advento do art. 22 da Lei n. 6.435/1977, é possível a manutenção da utilização da Taxa Referencial (TR), por período indefinido, como índice de correção monetária de benefício de previdência complementar operado por entidade aberta.

O advento da Lei n. 6.435/1977 trouxe ao ordenamento jurídico disposições cogentes e o claro intuito de disciplinar o mercado de previdência complementar, protegendo a poupança popular, e estabelecendo o regime financeiro de capitalização a disciplinar a formação de reservas de benefícios a conceder.

Destarte, o art. 22parágrafo único, da Lei n. 6.435/1977 deixa expresso que os valores monetários das contribuições e dos benefícios dos planos de previdência complementar aberta sofrem correção monetária, e não simples reajuste por algum indexador inidôneo. Tal norma tem eficácia imediata, abrangendo até mesmo os planos de benefícios já instituídos, em vista da inexistência de ressalva e do disposto nos arts. 14 e 81 do mesmo Diploma, disciplinando que não só os benefícios, mas também as contribuições, sejam atualizados monetariamente segundo a ORTN, ou de modo diverso, contanto que instituído pelo Órgão Normativo do Sistema Nacional de Seguros Privados.

Nessa toada, em se tratando de contrato comutativo de execução continuada, em linha de princípio, não se pode descartar - em vista de circunstância excepcional, imprevisível por ocasião da celebração da avença -, que possa, em estrita consonância com a legislação especial previdenciária de regência, provimentos infralegais do órgão público regulador e anuência prévia do órgão fiscalizador, ser promovida modificação regulamentar (contratual), resguardando-se, em todo caso, o valor dos benefícios concedidos.

Na verdade, a doutrina anota que nos contratos as partes nem sempre regulamentam inteiramente seus interesses, deixando lacunas que devem ser preenchidas. Além da integração supletiva, cabível apenas diante de lacunas contratuais, há a denominada integração cogente. Esta se opera quando, sobre a espécie contratual, houver normas que devam obrigatoriamente fazer parte do negócio jurídico por força de lei. São normas que se sobrepõem à vontade dos interessados e integram a contratação por imperativo legal.

Em outro prisma, no multicitado e histórico julgamento da ADI 493, Relator Ministro Moreira Alves, realizado em 1992, o Plenário do STF já apontava ser a TR índice inadequado para correção monetária, estabelecendo balizas para o alcance até mesmo de lei de ordem pública (cogente) nos efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela (retroatividade mínima).

Ademais, o Plenário virtual do STF, em sessão encerrada em 9 de novembro de 2019, julgando a ADI n. 5.348, Relatora Ministra Cármen Lúcia, declarou a inconstitucionalidade do art. 1º-F da Lei n. 9.494/1997, alterado pela Lei n. 11.960/2009, que estabeleceu a aplicação da Taxa Referencial da poupança como critério de atualização monetária nas condenações da Fazenda Pública, determinando a utilização do IPCA-E.

Com efeito, é imprestável ao fim a que se propõe benefício previdenciário de aposentadoria que sofra forte e ininterrupta corrosão inflacionária, a ponto de os benefícios, no tempo, serem corroídos pela inflação.

Ora, a correção monetária não é um acréscimo que se dá ao benefício de caráter alimentar previdenciário, e a Súmula 563/STJ esclarece que o CDC é aplicável às entidades abertas de previdência complementar. Assim, o art. 18§ 6ºIII, do CDC dispõe que são impróprios ao consumo os produtos que, por qualquer motivo, se revele inadequados ao fim a que se destinam. Já o art. 20, § 2º, estabelece que são impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.

Registre-se, por fim, que o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), medido mensalmente pelo IBGE, foi criado para aferir a variação de preços no comércio ao público final, com renda mensal entre 1 e 40 salários mínimos. É utilizado pelo Banco Central como índice oficial de inflação do País, inclusive para verificar o cumprimento da meta oficial de inflação.

Saiba mais:

· Recursos Repetitivos / DIREITO PREVIDENCIÁRIO - PREVIDÊNCIA PRIVADA

Processo

REsp 1.892.589-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. Acd. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, por maioria, julgado em 16/09/2021. (Tema 1040)

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Alienação fiduciária. Ação de busca e apreensão. Decreto-Lei n. 911/1969. Apreciação da contestação antes da execução da medida liminar. Impossibilidade. Tema 1040.

DESTAQUE

Na ação de busca e apreensão de que trata o Decreto-Lei n. 911/1969, a análise da contestação somente deve ocorrer após a execução da medida liminar.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Pontua-se, de início, que não se discute a possibilidade de apresentação da contestação antes da execução da medida liminar, não havendo espaço para se falar em extemporaneidade, prematuridade ou necessidade de desentranhamento da peça.

A controvérsia se restringe ao momento em que a contestação deve ser apreciada pelo órgão julgador.

Observa-se que no artigo  do Decreto-Lei n. 911/1969 o legislador elegeu a execução da liminar como termo inicial de contagem do prazo para: 1) a consolidação da propriedade do bem no patrimônio do credor fiduciário; 2) o pagamento da integralidade da dívida pendente e a consequente restituição do bem ao devedor livre de ônus e 3) a apresentação de resposta pelo réu.

Ou seja, a eleição da execução da medida liminar como termo inicial da contagem do prazo para contestação revela uma opção legislativa clara de assegurar ao credor fiduciário com garantia real uma resposta satisfativa rápida em caso de mora ou inadimplemento por parte do devedor fiduciante, incompatível com o procedimento comum.

É essa agilidade inerente ao procedimento especial do Decreto-Lei n. 911/1969 que fomenta o instituto da alienação fiduciária tornando a sua adoção vantajosa tanto para o consumidor, que conta com melhores condições de concessão de crédito (taxas e encargos), quanto para o agente financeiro, por meio da facilitação dos mecanismos de recuperação do bem em caso de inadimplemento.

É cediço que a mora e o inadimplemento, aliados à morosidade no deferimento de tutela satisfativa voltada à entrega do bem alienado ao credor fiduciário, são fatores determinantes para o encarecimento do crédito, de modo que o aparente rigorismo na norma é o que garante a utilidade do instituto, impedindo que ele caia em desuso.

Não foi outro o norte seguido pela Segunda Seção, quando do julgamento do REsp 1.622.555/MG, ao afastar a aplicação da teoria do adimplemento substancial no regime da lei especial (Decreto n. 911/1969), sob pena de desvirtuamento do instituto da propriedade fiduciária, concebido pelo legislador justamente para conferir segurança jurídica às concessões de crédito, essencial ao desenvolvimento da economia nacional.

Não há dúvidas, portanto, de que a legislação especial foi estruturada com um procedimento especial que prevê, em um primeiro momento, a recuperação do bem e, em uma segunda etapa, a possibilidade de purgação da mora e a análise da defesa.

Vale anotar que o próprio sistema dispõe de mecanismos para remediar eventual abuso ou negligência do credor fiduciário ao prever o pagamento de multa em favor do devedor fiduciante, equivalente a 50% (cinquenta por cento) do valor originalmente financiado, devidamente atualizado, caso o bem já tenha sido alienado, na hipótese de improcedência da ação de busca e apreensão, além da responsabilidade do credor fiduciário por perdas e danos (artigo 3º, §§ 6º e 7º).

Além disso, está absolutamente sedimentada a jurisprudência desta Corte no sentido de que, estando demonstrada a mora/inadimplemento, o deferimento na medida liminar de busca e apreensão é impositivo.

Nesse contexto, condicionar o cumprimento da medida liminar de busca e apreensão à apreciação da contestação, ainda que limitada a eventuais matérias cognoscíveis de ofício e que não demandem dilação probatória (considerada ainda a subjetividade na delimitação dessas matérias), causaria enorme insegurança jurídica e ameaça à efetividade do procedimento.

Saiba mais:

· Informativo de Jurisprudência n. 662

Processo

Inq 1.190-DF, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Corte Especial, por unanimidade, julgado em 15/09/2021.

Tema

Medida assecuratória. Indisponibilidade de bens. Art. § 4º, da Lei n. 9.613/1998. Patrimônio adquirido licitamente. Irrelevância. Confusão patrimonial de bens de família e da pessoa jurídica. Constrição.

DESTAQUE

A medida assecuratória de indisponibilidade de bens, prevista no art. § 4º, da Lei n. 9.613/1998, pode atingir bens de origem lícita ou ilícita, adquiridos antes ou depois da infração penal, bem como de pessoa jurídica ou familiar não denunciado, quando houver confusão patrimonial.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

As medidas cautelares patrimoniais, previstas nos arts. 125 a 144 do Código de Processo Penal, bem como no art. § 4º, da Lei n. 9.613/1998, destinam-se a garantir, em caso de condenação, tanto a perda do proveito ou produto do crime, como o ressarcimento dos danos causados (danos ex delicto) e o pagamento de pena de multa, custas processuais e demais obrigações pecuniárias impostas.

A medida assecuratória de indisponibilidade de bens prevista no art. § 4º, da Lei n. 9.613/1998 permite a constrição de quaisquer bens, direitos ou valores para reparação do dano decorrente do crime ou para pagamento de prestação pecuniária, pena de multa e custas processuais, sendo desnecessário, pois, verificar se têm origem lícita ou ilícita ou se foram adquiridos antes ou depois da infração penal.

Com efeito, a ilicitude dos bens não é condição para que se lhes decrete a indisponibilidade, haja vista, sobretudo, o teor do art. 91, inciso II, alínea b§§ 1º e , do Código Penal, que admitem medidas assecuratórias abrangentes de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime para posterior decretação de perda.

Acresça-se que as medidas cautelares patrimoniais constituem instrumento frequentemente necessário para conter as operações de organizações criminosas, sobretudo em crimes como o de lavagem de dinheiro, por meio de sua asfixia econômica e interrupção de suas atividades.

Frise-se que a constrição pode atingir o patrimônio de pessoa jurídica e familiares não denunciados, inclusive o cônjuge casado sob o regime de comunhão universal de bens, o que se mostra necessário, adequado e proporcional quando houver confusão patrimonial, de incorporação de bens ao patrimônio da empresa familiar e transferência de outros bens aos familiares.

Consoante dispõe o art. 1667 do Código Civil, no casamento realizado sob regime de comunhão universal de bens, comunicam-se os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas. Não se cogita, no caso, nenhuma das exceções previstas no art. 1.668 do Código Civil, como seria o caso de bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar (inciso I).

TERCEIRA TURMA

Processo

REsp 1.938.706-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 14/09/2021, DJe 16/09/2021.

Ramo do Direito

DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR

Tema

Recuperação judicial. Créditos garantidos por alienação fiduciária. Bem imóvel de terceiros. Circunstância que não afasta a incidência da regra do art. 49, § 3º, da LFRE.

DESTAQUE

O afastamento dos créditos de titulares de posição de proprietário fiduciário dos efeitos da recuperação judicial da devedora independe da identificação pessoal do fiduciante ou do fiduciário com o bem imóvel ofertado em garantia ou com a própria recuperanda.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A matéria em discussão já foi apreciada pela Terceira Turma do STJ por ocasião do julgamento do REsp 1.549.529/SP (DJe 28/10/2016, Relator Min. Marco Aurélio Bellizze, decisão unânime), oportunidade em que se decidiu que o fato de o bem imóvel alienado fiduciariamente não integrar o acervo patrimonial da devedora não tem o condão de afastar a regra disposta no § 3º do art. 49 da Lei n. 11.101/2005.

Esse dispositivo legal estabelece que o crédito detido em face da recuperanda pelo titular da posição de proprietário fiduciário de bem móvel ou imóvel não se submete aos efeitos do processo de soerguimento, prevalecendo o direito de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais pactuadas.

O legislador não delimitou o alcance da regra em questão exclusivamente aos bens alienados fiduciariamente originários do acervo patrimonial da própria sociedade empresária recuperanda, tendo apenas estipulado a não sujeição aos efeitos da recuperação do crédito titularizado pelo "credor titular da posição de proprietário fiduciário". Portanto, de acordo com a conclusão alcançada no judicioso voto proferido pelo Min. Marco Aurélio Bellizze no precedente anteriormente citado, o dispositivo legal em análise afasta por completo dos efeitos da recuperação judicial não apenas o bem alienado fiduciariamente, mas o próprio contrato por ele garantido.

Tal compreensão se coaduna com "toda a sistemática legal arquitetada para albergar o instituto da propriedade fiduciária", de modo que, estando distanciado referido instituto jurídico dos interesses dos sujeitos envolvidos - haja vista estar o bem alienado vinculado especificamente ao crédito garantido - afigura-se irrelevante a identificação pessoal do fiduciante ou do fiduciário com o objeto da garantia ou com a própria sociedade recuperanda.

QUARTA TURMA

Processo

RMS 67.105-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 21/09/2021.

Ramo do Direito

DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Execução. Decisão judicial para apresentação do contrato de serviços advocatícios. Providência com a finalidade de localizar o endereço do executado. Afronta às prerrogativas inerentes à advocacia. Violação do sigilo profissional.

DESTAQUE

Decisão judicial que determina a apresentação do contrato de serviços advocatícios, com a finalidade de verificação do endereço do cliente/executado, fere o direito à inviolabilidade e sigilo profissional da advocacia.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A advocacia é função essencial à administração da Justiça, reconhecida como tal no caput do art. 133 da CF/1988. A legítima exegese desse dispositivo constitucional é a que reconhece proteção ao exercício da advocacia e não ao advogado e, assim, a essencialidade própria do advogado se revela apenas "no contexto de aplicação do ordenamento jurídico, em atividade vinculada ao órgão jurisdicional atuando na reconstrução, e mais, na ressemantização democrática e participada das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto".

Ademais, a garantia do sigilo profissional tem assento no art. , inciso XIV, da CF/1988, que estabelece ser "assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional".

O art. , inciso II, do Estatuto da Advocacia, determina a inviolabilidade do escritório ou local de trabalho, bem como dos arquivos, dados, correspondências e comunicações, salvo hipótese de busca ou apreensão. E sobre o ponto, acrescenta a doutrina que "ainda que determinadas por ordem judicial, as interceptações telefônicas, previstas no art. , inciso XI, da CF/1988, não podem violar direito à confidencialidade da comunicação entre advogado e cliente".

Deve ser realçado, nesse ponto, pela relevância, que a redação do referido inciso II é fruto de alteração legislativa promovida pela Lei n. 11.767/2008. A partir da renovação operada por essa lei, o § 6º, do próprio art. 7º, regulamentou a ressalva prevista naquele inciso, detalhando melhor a matéria, prevendo expressamente as hipóteses em que a inviolabilidade poderia ser afastada.

De fato, anteriormente à publicação da Lei n. 11.767/2008, a doutrina entendia que o afastamento da inviolabilidade e realização de busca e apreensão em locais de trabalho do advogado somente era possível, desde que acompanhada por representante da OAB.

Entretanto, após a entrada em vigor da nova lei, para que seja removida a prerrogativa é necessário o preenchimento de certos requisitos: a) indícios de autoria e materialidade de crime praticado pelo próprio advogado; b) decretação da quebra da inviolabilidade por autoridade judiciária competente; c) decisão fundamentada de busca e apreensão que especifique o objeto da medida.

Aliás, pela mesma distinção, recorde-se que o sigilo profissional recebe amparo no Código Penal brasileiro (art. 154) e no Código de Processo Penal (art. 207), no sentido de que, em qualquer investigação que viole o sigilo entre o advogado e o cliente, viola-se não somente a intimidade dos profissionais envolvidos, mas o próprio direito de defesa e, em última análise, a democracia.

Noutro ponto, é conveniente assinalar que, como qualquer outro direito ou garantia fundamental, também a inviolabilidade e o sigilo profissional no âmbito do exercício da advocacia, mesmo ostentando tamanha envergadura, não são absolutos em prevalência, tendo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça exercido importante papel na definição das hipóteses em que é possível flexibilizar seu alcance, a partir de legítima e desejada ponderação de valores.

No caso, a determinação para apresentação do contrato de serviços advocatícios com a finalidade de localização do executado/cliente para expedição de mandado de penhora não configura justa causa para a suspensão das garantias constitucionalmente previstas. Assim, o contrato de prestação de serviços advocatícios, instrumento essencialmente produzido e referente à relação advogado/cliente, está sob a guarda do sigilo profissional, assim como se comunica a inviolabilidade da atividade advocatícia.

Saiba mais:

· Informativo de Jurisprudência n. 390

· Informativo de Jurisprudência n. 440

· Informativo de Jurisprudência n. 557