quarta-feira, 28 de julho de 2021

A NOVA RESOLUÇÃO N. 2.294/2021 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, SOBRE A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA

 A NOVA RESOLUÇÃO N. 2.294/2021 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, SOBRE A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Flávio Tartuce[1]

O Conselho Federal de Medicina (CFM) editou, no último dia 27 de maio de 2021, a sua Resolução n. 2.294, tratando mais uma vez das normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida (TRA). Como consta do seu preâmbulo, isso foi feito, novamente, “em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância aos princípios éticos e bioéticos que ajudam a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos, tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros e revogando a Resolução CFM n. 2.168”. Como é notório, trata-se de uma regulamentação sem a “carga” de norma jurídica, sendo dirigida a esses profissionais da área da saúde e às clínicas, centros ou serviços de reprodução que lidam com as citadas técnicas.

Do ponto de vista jurídico, existem várias dúvidas teóricas e práticas decorrentes do art. 1.597 do Código Civil, particularmente dos seus últimos três incisos, que tratam justamente das citadas técnicas de reprodução assistida. Consoante as suas previsões, presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: “III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.

Como se percebe, a codificação privada não tratou propriamente dos procedimentos e limites das técnicas de RA, prevendo apenas que a sua utilização pode gerar a presunção de paternidade em relação ao marido que a planejou e confirmando a antiga máxima pater is est. Tem-se entendido, ademais, que a presunção do vínculo de filiação pode estar presente no caso de uma união estável, como se retira do Enunciado n. 570, aprovado na VI Jornada de Direito Civil: “o reconhecimento de filho havido em união estável fruto de técnica de reprodução assistida heteróloga ‘a patre’ consentida expressamente pelo companheiro representa a formalização do vínculo jurídico de paternidade-filiação, cuja constituição se deu no momento do início da gravidez da companheira”.

Sobre as regras do Conselho Federal de Medicina, em 15 de dezembro de 2010, foi editada a Resolução n. 1.957, em substituição à antiga Resolução n. 1.358/1992, que foi aplicada por quase vinte anos e que apresentava muitas insuficiências. Após isso, sucessivas foram as normas deontológicas que sugiram. Em 2013, veio a Resolução n. 2.013, que procurou aperfeiçoar de forma considerável o tratamento da matéria, diante de muitos debates travados à época, como a possibilidade de casais homoafetivos e pessoas solteiras fazerem uso das técnicas. Novamente, em setembro de 2015, foi publicada a Resolução n. 2.121, revogando a anterior. Em novembro de 2017 emergiu a Resolução n. 2.168, agora substituída pela Resolução n. 2.294. Como se observa, diante dos avanços científicos, das mudanças pelas quais passou a sociedade e do incremento da utilização das técnicas de RA no Brasil, entendeu-se pela necessidade de contínuos aperfeiçoamentos em curtos espaços de tempo.

Também a merecer destaque, em março de 2016, a Corregedoria-Geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento n. 52, regulamentando as condutas dos Cartórios de Registro Civil no tocante à reprodução assistida. Em 14 de novembro de 2017 surgiu o Provimento n. 63, do próprio CNJ, em substituição ao anterior, já sob influência da decisão do STF sobre a parentalidade socioafetiva (STF, RE 898.060/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016). Além de tratar da reprodução assistida, a última norma administrativa cuidou também da parentalidade socioafetiva, de forma inédita. Em 14 de agosto de 2019, a mesma Corregedoria-Geral de Justiça do CNJ editou o Provimento n. 83, que altera o anterior Provimento n. 63/2017, em especial quanto ao tratamento do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva. Não houve modificações quanto à reprodução assistida na última norma. A quantidade de regras a respeito do tema chega a deixar atordoado mesmo o mais experiente aplicador do Direito.

Pois bem, sobre a última norma ética do Conselho Federal de Medicina, poucas foram as inovações substanciais introduzidas, confrontando-se com as anteriores, o que pretendo neste texto analisar brevemente, sem prejuízo de novas reflexões e estudos sobre o tema.

Como primeira inovação, houve alteração no número de embriões a serem transferidos, a depender da idade. Pela norma anterior, de 2017, as determinações eram as seguintes: a) mulheres até 35 anos: até 2 embriões; b) mulheres entre 36 e 39 anos: até 3 embriões; c) mulheres com 40 anos ou mais: até 4 embriões. Por decorrência de estudos científicos, houve modificação nas idades. Agora, as determinações são as seguintes, pela Resolução n. 2.294/2021: a) mulheres com até 37 (trinta e sete) anos: até 2 (dois) embriões; e b) mulheres com mais de 37 (trinta e sete) anos: até 3 (três) embriões.

Sobre os pacientes das técnicas de reprodução assistida (Capítulo II da resolução), passou-se a mencionar expressamente que os transgêneros ou pessoas trans podem fazer uso das técnicas, conclusão que, no meu entender, já era retirada da mesma norma da resolução anterior, pela menção a qualquer pessoa solteira (item 2).

Também foram feitas alterações no tratamento da doação de gametas ou embriões, que formam o Capítulo IV da atual Resolução n. 2.294/2021. No seu item 2, foi mantida a regra de tutela da identidade dos seus doadores e receptores. Porém, por razões óbvias, introduziu-se uma exceção a respeito da doação de gametas para parentes até o quarto grau de um dos receptores, desde que não incorra em consanguinidade. No item 3, houve modificação da idade limite para a doação de gametas, de 37 anos para mulheres e de 45 anos para homens. As idades anteriores eram de 35 anos para mulheres e de 50 anos para homens, tendo havido a redução no último caso, novamente em virtude de estudos científicos. De toda sorte, passaram a ser admitidas exceções, uma vez que, em decorrência do novo item 3.1, “exceções ao limite da idade feminina poderão ser aceitas nos casos de doação de oócitos e embriões previamente congelados, desde que a receptora/receptores seja(m) devidamente esclarecida(os) dos riscos que envolvem a prole”, em virtude das idades dos doadores de gametas.

Ainda nesse Capítulo IV da Resolução n. 2.294/2021 do CFM, os preceitos que mais têm gerado debates são os seus novos itens 10 e 11. Conforme o primeiro deles, a responsabilidade pela seleção dos doadores é exclusiva dos usuários quando da utilização de banco de gametas ou embriões. Em complemento, pelo segundo preceito, na eventualidade de embriões formados de doadores distintos, a transferência embrionária deverá ser realizada com embriões de uma única origem para a segurança da prole e rastreabilidade. Os comandos devem ser analisados dentro dos propósitos de seus conteúdos, que é o de regulamentar a atuação ética dos médicos, como normas deontológicas que são.

Sendo assim, não têm o condão de afastar ou mesmo atenuar a eventual responsabilização civil dos profissionais por suas condutas, especialmente se comprovadas as suas culpas, por violação de deveres legais ou contratuais. Como antes pontuado, as resoluções do CFM não têm a “carga” de norma jurídica, não podendo ser admitidas como excludentes, total ou parcialmente, da responsabilidade civil dos médicos ou das clínicas, tema restrito à lei federal, de iniciativa do Congresso Nacional, por força do art. 22, inc. I, da Constituição Federal de 1988.

No Capítulo V, a respeito da criopreservação de gametas e embriões, manteve-se a previsão de que as clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides, oócitos, embriões e tecidos gonadais (item 1). Na sequência, está expresso que o número total de embriões gerados em laboratório não poderá exceder a oito, sendo certo que não havia tal limitação na norma anterior, de 2017. Diante dessa nova restrição, será comunicado aos pacientes para que eles decidam quantos embriões serão transferidos a fresco. Os embriões excedentes viáveis continuam sendo criopreservados, exatamente como estava na regulamentação anterior. Entretanto, agora está enunciado que, como não há previsão prévia de embriões viáveis ou quanto à sua qualidade, a decisão deverá ser tomada posteriormente a essa etapa.

Seguindo no estudo da Resolução n. 2.294/2021 do CFM, no Capítulo VI, sobre o diagnóstico genético pré-implantacional de embriões, o item 1 preceitua que as técnicas de RA podem ser aplicadas à seleção de embriões submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças, podendo nesses casos ser doados para pesquisa ou descartados, conforme a decisão dos pacientes, devidamente documentada com consentimento informado livre e esclarecido específico. Aqui também não houve qualquer alteração. Entretanto, como inovação que visa a tratar de informações sensíveis do próprio embrião, passou-se a prever que, no laudo da avaliação genética, só é permitido informar se o embrião é masculino ou feminino em casos de doenças ligadas ao sexo ou de aneuploidias (alterações numéricas) de cromossomos sexuais.

Por fim, sobre a gestação ou cessão temporária e gratuita de útero – equivocadamente chamada de “barriga de aluguel”, pois não se admite qualquer remuneração –, continua a resolução a estabelecer que “as clínicas, centros ou serviços de reprodução podem usar técnicas de RA para criar a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação, ou em caso de união homoafetiva ou de pessoa solteira” (Capítulo VI). Duas foram as inovações incluídas a respeito do tema, pela Resolução n. 2.294/2021.

No seu item 1, passou-se a exigir que a cedente temporária do útero tenha ao menos um filho vivo, o que tende a proteger o novo filho gerado, pela exigência de uma experiência gestacional anterior. Foram mantidas as previsões de que a cedente temporária de útero ou gestatrix pertença à família de um dos parceiros, em parentesco consanguíneo até o quarto grau; e que os demais casos, além desse grau de parentesco, estão sujeitos a avaliação e autorização do Conselho Regional de Medicina. Como derradeira regra a ser comentada, no item 2 deste Capítulo VI foi incluída uma ressalva de que a clínica de reprodução assistida não poderá intermediar a escolha da cedente temporária do útero, o que tem um conteúdo ético indiscutível e louvável.

Como se pode observar, de fato, a Resolução n. 2.294/2021 do Conselho Federal de Medicina em pouco inovou no tratamento da reprodução assistida, ao contrário das normas éticas antecedentes, que sempre trouxeram modificações de maior impacto. Como tenho sustentado, para se ter maior certeza, segurança e estabilidade a respeito dessa intrincada temática, há a necessidade de se aprovar uma norma jurídica sobre ela, um “Estatuto da Reprodução Assistida”, como é o caso de projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, e que já necessitam de aperfeiçoamentos.


[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.