quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

DA COMUNICAÇÃO DO FGTS NO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. COLUNA DO MIGALHAS DE 2021.

DA COMUNICAÇÃO DO FGTS NO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS


Flávio Tartuce[1]


No último dia 6 de fevereiro de 2021, o Professor Zeno Veloso publicou um interessante artigo, na sua coluna do jornal O Liberal, de Belém do Pará, demonstrando o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência no sentido de haver a comunicação dos valores recebidos em FGTS por um dos cônjuges ou companheiros, estando vigente entre as partes o regime da comunhão parcial de bens. Na ocasião, como doutrina majoritária foram citados os Professores Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Berenice Dias, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald; além do autor deste texto e do próprio articulista. Como fundamento jurisprudencial, destacou-se o seguinte aresto, da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça:

"O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 709.212/DF, debateu a natureza jurídica do FGTS, oportunidade em que afirmou se tratar de ‘direito dos trabalhadores brasileiros (não só dos empregados, portanto), consubstanciado na criação de um pecúlio permanente, que pode ser sacado pelos seus titulares em diversas circunstâncias legalmente definidas (cf. art. 20 da Lei 8.036/1995)’ (ARE 709212, Relator (a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 13/11/2014, DJe-032 DIVULG 18-02-2015 PUBLIC 19-02-2015). (...). No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a Egrégia Terceira Turma enfrentou a questão, estabelecendo que o FGTS é 'direito social dos trabalhadores urbanos e rurais', constituindo, pois, fruto civil do trabalho (REsp 848.660/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, DJe 13/05/2011). (...). O entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça é o de que os proventos do trabalho recebidos, por um ou outro cônjuge, na vigência do casamento, compõem o patrimônio comum do casal, a ser partilhado na separação, tendo em vista a formação de sociedade de fato, configurada pelo esforço comum dos cônjuges, independentemente de ser financeira a contribuição de um dos consortes e do outro não. (...). Assim, deve ser reconhecido o direito à meação dos valores do FGTS auferidos durante a constância do casamento, ainda que o saque daqueles valores não seja realizado imediatamente à separação do casal" (STJ, REsp 1.399.199/RS, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Rel. p/ Acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 09/03/2016, DJe 22/04/2016).

Esse último acórdão, a propósito, excluiu da comunicação os valores recebidos por um dos cônjuges em momento antecedente à união, por terem uma causa anterior, nos termos do que está no art. 1.661 do Código Civil, in verbis: "são incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento". Em suma, a posição atual do STJ pode ser resumida na seguinte afirmação, constante da Edição n. 113 da ferramenta Jurisprudência em Teses da Corte, publicada em 2018 e que trata da dissolução do casamento e da união estável: “as verbas de natureza trabalhista nascidas e pleiteadas na constância da união estável ou do casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial ou universal de bens integram o patrimônio comum do casal e, portanto, devem ser objeto da partilha no momento da separação” (tese n. 3). E, mais, sobre o FGTS: “deve ser reconhecido o direito à meação dos valores depositados em conta vinculada ao Fundo de Garantia de Tempo de Serviço – FGTS auferidos durante a constância da união estável ou do casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial ou universal de bens, ainda que não sejam sacados imediatamente após a separação do casal ou que tenham sido utilizados para aquisição de imóvel pelo casal durante a vigência da relação” (tese n. 4, publicada na mesma ferramenta e edição).

Diante de toda a polêmica gerada pelo destacado texto do Professor Zeno Veloso, não percebida em anos anteriores, resolvi escrever este artigo. A propósito, o que me parece é que as redes sociais, nos últimos tempos, acabaram por incentivar respostas rápidas, imediatas e instantâneas por muitos, baseadas em um "suposto bom senso", muitas vezes sem se conhecer todo o debate técnico que envolve determinado assunto, no âmbito do Direito Privado. Sobram opiniões, mas faltam leituras prévias...

De início, sobre ser esse o entendimento jurisprudencial majoritário, a posição do Superior Tribunal de Justiça quanto à existência de um fruto civil, decorrente do salário recebido por um dos consortes, é há muito tempo aplicada. Entre os primeiros julgados a respeito de verbas trabalhistas, a propósito, destaco o seguinte: "ao cônjuge casado pelo regime da comunhão parcial de bens é devida a meação das verbas trabalhistas pleiteadas judicialmente durante a constância do casamento. As verbas indenizatórias decorrentes da rescisão do contrato de trabalho só devem ser excluídas da comunhão quando o direito trabalhista tenha nascido ou tenha sido pleiteado após a separação do casal" (STJ, REsp 646.529/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado na remota data de 21/06/2005). Trata-se, portanto, de aplicação do art. 1.660, inc. V, do Código Civil de 2002, que estabelece a comunicação, na comunhão parcial de bens, dos frutos dos bens comuns, ou dos bens particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.

As verbas trabalhistas, por óbvio, são frutos civis ou rendimentos sobre bens particulares, assim entendidos os valores oriundos do trabalho individual, como rendimentos privados. Confirmando essa minha afirmação, em outro aresto, publicado no Informativo n. 430 do STJ, concluiu a mesma relatora:

“O ser humano vive da retribuição pecuniária que aufere com o seu trabalho. Não é diferente quando ele contrai matrimônio, hipótese em que marido e mulher retiram de seus proventos o necessário para seu sustento, contribuindo, proporcionalmente, para a manutenção da entidade familiar. Se é do labor de cada cônjuge, casado sob o regime da comunhão parcial de bens, que invariavelmente advêm os recursos necessários à aquisição e conservação do patrimônio comum, ainda que em determinados momentos, na constância do casamento, apenas um dos consortes desenvolva atividade remunerada, a colaboração e o esforço comum são presumidos, servindo, o regime matrimonial de bens, de lastro para a manutenção da família. Em consideração à disparidade de proventos entre marido e mulher, comum a muitas famílias, ou, ainda, frente à opção do casal no sentido de que um deles permaneça em casa cuidando dos filhos, muito embora seja facultado a cada cônjuge guardar, como particulares, os proventos do seu trabalho pessoal, na forma do art. 1.659, inc. VI, do CC/2002, deve-se entender que, uma vez recebida a contraprestação do labor de cada um, ela se comunica” (STJ, REsp 1.024.169/RS, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.04.2010, DJe 28.04.2010).

Esse último acórdão tem o mérito de esclarecer o conteúdo do art. 1.659, inc. VI, do Código Civil de 2002, que prevê a não comunicação, na comunhão parcial de bens, dos proventos do trabalho de cada consorte. Muitos utilizam tal regra como argumento para afastar não só a comunicação dos salários recebidos como as verbas e frutos que deles decorrem.

De toda sorte, se tal entendimento fosse aplicado, haveria uma negação ou esvaziamento quase total do próprio regime da comunhão parcial de bens, notadamente da sua regra fundamental, prevista no art. 1.658 da codificação privada em vigor, no sentido de que se comunicam os bens que sobrevierem ao casal na constância do casamento. Mais do que isso, haveria também um esvaziamento da comunhão universal, pois o art. 1.668, inc. V, do CC/2002 exclui da comunicação, igualmente, os citados proventos do trabalho de cada um dos consortes.

De forma impecável, a doutrina há tempos adverte sobre a necessidade de uma leitura restritiva do art. 1.659, inc. VI, sob pena de se colocar em descrédito os dois regimes. Segundo Alexandre Guedes Alcoforado Assunção, jurista que participou da última fase do processo de elaboração do Código Civil de 2002, “a previsão da exclusão dos proventos do trabalho de cada cônjuge, indicada no inciso VI, produz situação que se antagoniza com a própria essência do regime. Ora, se os rendimentos do trabalho não se comunicam, os bens sub-rogados desses rendimentos também não se comunicam, conforme o inciso II, e, por conseguinte, praticamente nada se comunica nesse regime, no entendimento de que a grande maioria dos cônjuges vive dos rendimentos do seu trabalho. A comunhão parcial de bens tem em vista comunicar todos os bens adquiridos durante o casamento a título oneroso, sendo que aqueles adquiridos com frutos do trabalho contêm essa onerosidade aquisitiva” (Código Civil comentado. Coordenador Deputado Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 1519).

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem concluído do mesmo modo, como se extrai dos acórdãos antes citados. De data mais recente, acrescente-se o seguinte: "não se pode olvidar que o art. 1.659, VI, do CC/2002, é fruto de profunda discussão no âmbito doutrinário e jurisprudencial, especialmente porque, se fosse a regra interpretada literalmente, o resultado seria a incomunicabilidade quase integral dos bens adquiridos na constância da sociedade conjugal, desnaturando-se por completo o regime da comunhão parcial ou total de bens" (STJ, REsp 1.651.292/RS, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 19/05/2020, DJe 25/05/2020).

A crítica à última regra também é encontrada na doutrina clássica. Silvio Rodrigues, por exemplo, traz outra solução plausível para a interpretação do art. 1.659, inc. VI, defendendo que “no exato momento em que as referidas rendas se transformam em patrimônio, por exemplo, pela compra dos bens, opera-se em relação a estes a comunhão, pela incidência da regra contida nos arts. 1.658 e 1.660, I, até porque não acrescenta o inciso em exame a hipótese e os bens sub-rogados em seu lugar. Entendimento diverso contraria a essência do regime da comunhão parcial e levaria ao absurdo de só se comunicarem os aquestos adquiridos com o produto de bens particulares e comuns ou por fato eventual, além dos destinados por doação ou herança ao casal” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 6: direito de família. p. 183). Por esse caminho, também há que se reconhecer a comunicação de todas as verbas trabalhistas recebidas durante o casamento ou a união estável, na mesma linha do que sustentei.

Portanto, no âmbito do Direito Civil, é cada vez mais fundamental conhecer todos os caminhos percorridos, pela doutrina e pela jurisprudência, na interpretação e na experimentação concreta da lei, não se fazendo apenas afirmações baseadas em percepções superficiais da leitura do texto da norma jurídica.


[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

RESUMO. INFORMATIVO 685 DO STJ.

RESUMO. INFORMATIVO 685 DO STJ. 22 DE FEVEREIRO DE 2021.

CORTE ESPECIAL

Processo

AI no AREsp 641.185-RS, Rel. Min. Og Fernandes, Corte Especial, por unanimidade, julgado em 11/02/2021.

Ramo do Direito

DIREITO ADMINISTRATIVO, DIREITO CONSTITUCIONAL

Tema

Concessão de habilitação definitiva. Art. 148, § 3º, do Código de Trânsito Brasileiro. Parcialmente inconstitucional, sem redução de texto. Infração (grave ou gravíssima) meramente administrativa. Não aplicação.

Destaque

O art. 148, § 3º, do Código de Trânsito Brasileiro é parcialmente inconstitucional, excluindo de sua aplicação a hipótese de infração (grave ou gravíssima) meramente administrativa, ou seja, não cometida na condução de veículo automotor

Informações do Inteiro Teor

A jurisprudência desta Corte de Justiça, interpretando teleologicamente o art. 148, § 3º, do CTB (verbis: § 3º A Carteira Nacional de Habilitação será conferida ao condutor no término de um ano, desde que o mesmo não tenha cometido nenhuma infração de natureza grave ou gravíssima ou seja reincidente em infração média),  firmou-se no sentido da possibilidade de concessão da Carteira Nacional de Habilitação definitiva a motorista que cometeu infração de natureza grave não na qualidade de condutor, mas de proprietário do veículo, ou seja, de caráter meramente administrativo, durante o prazo de um ano da sua permissão provisória. 

Nos termos da firme orientação trilhada no STJ, a infração administrativa de trânsito, ou seja, aquela que não está relacionada à condução do veículo e à segurança no trânsito, mas sim à propriedade do veículo, ainda que seja de natureza grave, não obsta a concessão da habilitação definitiva.  

Também uníssono o pensamento do Superior Tribunal no sentido de que tal diretriz não se confundia com eventual declaração de inconstitucionalidade do art. 148, § 3º, do CTB, mas apenas conferia a melhor interpretação de norma infraconstitucional. 

Ocorre que, no julgamento do ARE 1.195.532/RS, tirado do acórdão proferido no presente agravo em recurso especial, o Supremo Tribunal Federal reconheceu expressamente que o órgão fracionário do Superior Tribunal de Justiça, ao conferir interpretação teleológica ao disposto no art. 148, § 3º, do CTB, apesar de não ter declarado expressamente a inconstitucionalidade do mencionado dispositivo legal, promoveu a denominada declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, pela qual o intérprete declara a inconstitucionalidade de algumas interpretações possíveis do texto legal, sem, contudo, alterá-lo gramaticalmente, ou seja, censurou uma determinada interpretação por considerá-la inconstitucional. 

Nesse contexto, reconhece-se a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do § 3º do artigo 148 da Lei n. 9.503/1997, para excluir sua aplicação à hipótese de infração (grave ou gravíssima) meramente administrativa, ou seja, não cometida na condução de veículo automotor. 

Processo

REsp 1.846.781/MS, Rel. Min. Assusete Magalhães, Primeira Seção, por unanimidade, julgado em 10/02/2021 (Tema 1058)

Ramo do Direito

DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Tema

Matrícula de menores em creches ou escolas. Conflito de competência. Direito à educação. Competência absoluta da Justiça da Infância e da Juventude. Arts. 148, IV, e 209 da Lei n. 8.069/1990. Tema 1058

Destaque

A Justiça da Infância e da Juventude tem competência absoluta para processar e julgar causas envolvendo matrícula de menores em creches ou escolas, nos termos dos arts. 148, IV, e 209 da Lei n. 8.069/1990

Informações do Inteiro Teor

Com lastro na CF/1988, a Lei n. 8.069/1990 assegura expressamente, à criança e ao adolescente, o direito à educação como direito público subjetivo, mediante "acesso à escola pública e gratuita, próxima de sua residência, garantindo-se vagas no mesmo estabelecimento a irmãos que frequentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educação básica" (art. 53, V), bem como "atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade" (art. 54, IV). O art. 148 da Lei n. 8.069/1990 estabelece que "a Justiça da Infância e da Juventude é competente para: (...) IV - conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209".

A Lei n. 8.069/1990 estabelece, no seu Capítulo VII, disposições relativas "às ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular" (...) "do ensino obrigatório" e "de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade" (art. 208, I e III), estatuindo que "as ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou omissão, cujo juízo terá competência absoluta para processar e julgar a causa, ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores" (art. 209).

Assim, na forma da jurisprudência do STJ, as "ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente", previstas no art. 148, IV, da Lei n. 8.069/1990, são da competência absoluta da Justiça da Infância e da Juventude, ressalvadas apenas "a competência da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores", na forma do art. 209 da referida Lei n. 8.069/1990, independentemente de a criança ou o adolescente encontrar-se ou não em situação de risco, na forma prevista no art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Com efeito, a jurisprudência do STJ, interpretando os arts. 148, IV, e 209 da Lei n. 8.069/1990, firmou entendimento, ao apreciar casos relativos ao direito à saúde e à educação de crianças e adolescentes, pela competência absoluta do Juízo da Infância e da Juventude para processar e julgar demandas que visem proteger direitos individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, independentemente de o menor encontrar-se ou não em situação de risco ou abandono, porquanto "os arts. 148 e 209 do ECA não excepcionam a competência da Justiça da Infância e do Adolescente, ressalvadas aquelas estabelecidas constitucionalmente, quais sejam, da Justiça Federal e de competência originária" (STJ, REsp 1.199.587/SE, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe de 12/11/2010).

A Primeira Turma do STJ, em situação análoga, na qual se postulava judicialmente o fornecimento de fraldas e alimento a menor, afastou a competência da Vara da Fazenda Pública e concluiu que "esta Corte já consolidou o entendimento de que a competência da vara da infância e juventude para apreciar pedidos referentes ao menor de idade é absoluta, consoante art. 148, inciso IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente".

Examinando caso idêntico, a Segunda Turma do STJ firmou o seguinte entendimento: "O Estatuto da Criança e do Adolescente é lex specialis, prevalece sobre a regra geral de competência das Varas de Fazenda Pública, quando o feito envolver Ação Civil Pública em favor da criança ou do adolescente, na qual se pleiteia acesso às ações ou aos serviços públicos, independentemente de o infante estar em situação de abandono ou risco, em razão do relevante interesse social e pela importância do bem jurídico tutelado. Na forma da jurisprudência do STJ, 'a competência da vara da infância e juventude para apreciar pedidos referentes ao menor de idade é absoluta, consoante art. 148, inciso IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente' (STJ, AgRg no REsp 1.464.637/ES, Rel.Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe de 28.3.2016).

Em conclusão, a interpretação dos arts. 148, IV, e 209 da Lei n. 8.069/1990 impõe o reconhecimento da competência absoluta da Vara da Infância e da Juventude, em detrimento da Vara da Fazenda Pública, para processar e julgar causas envolvendo matrícula de crianças e adolescentes em creches ou escolas, independentemente de os menores se encontrarem em situação de risco ou abandono, tal como previsto no art. 98 da referida Lei n. 8.069/1990.

TERCEIRA TURMA

Processo

EAREsp 1.835.598-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por maioria, julgado em 09/02/2021, DJe 17/02/2021

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Rescisão de contrato particular de compra e venda de imóvel. Cláusula de alienação fiduciária em garantia. Ausência de registro. Garantia não constituída. Venda extrajudicial do bem. Desnecessidade.

Destaque

A ausência do registro do contrato de compra e venda de imóvel impede a constituição da garantia fiduciária.

Informações do Inteiro Teor

No ordenamento jurídico brasileiro, coexiste um duplo regime jurídico da propriedade fiduciária: a) o regime jurídico geral do Código Civil, que disciplina a propriedade fiduciária sobre coisas móveis infungíveis, sendo o credor fiduciário qualquer pessoa natural ou jurídica; b) o regime jurídico especial, formado por um conjunto de normas extravagantes, dentre as quais a Lei n. 9.514/1997, que trata da propriedade fiduciária sobre bens imóveis.

Quanto à propriedade fiduciária de bem imóvel, regida pela Lei n. 9.514/1997, verifica-se que a garantia somente se constitui com o registro do contrato que lhe serve de título no registro imobiliário do local onde o bem se situa.

Dessa maneira, sem o registro do contrato no competente Registro de Imóveis, há simples crédito, situado no âmbito obrigacional, sem qualquer garantia real nem propriedade resolúvel transferida ao credor.

Assim, na ausência de registro do contrato, não é exigível do adquirente que se submeta ao procedimento de venda extrajudicial do bem para só então receber eventuais diferenças do vendedor.

Processo

REsp 1.846.167-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 09/02/2021, DJe 11/02/2021

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Direito real de habitação. Cobrança de aluguéis da companheira supérstite e sua filha. Descabimento.

Destaque

Os herdeiros não podem exigir remuneração do companheiro sobrevivente pelo uso do imóvel.

Informações do Inteiro Teor

O art. 1.414 do CC/2002 assegura ao detentor do direito real a prerrogativa de habitar a residência com sua família. Assim, para fins de aplicação dessa norma, a doutrina propõe seu alargamento, para incluir nesse conceito "membros de suas relações, desde que não satisfaçam estes algum pagamento pela hospedagem".

Para além disso, nesse aspecto em específico, relembre-se uma vez mais, que a mens legis é manter o companheiro - ou cônjuge - vinculado ao local que lhe serve de convívio familiar. É possível afirmar, então, que esse instituto também visa a evitar que, além da morte daquele com quem compartilhava a sua vida, o convivente supérstite também tenha de suportar a perda do lar.

Como sabiamente a Terceira Turma acentuou no julgamento do REsp 1.582.178/RJ, "o objetivo da lei é permitir que o cônjuge sobrevivente permaneça no mesmo imóvel familiar que residia ao tempo da abertura da sucessão como forma, não apenas de concretizar o direito constitucional à moradia, mas também por razões de ordem humanitária e social, já que não se pode negar a existência de vínculo afetivo e psicológico estabelecido pelos cônjuges com o imóvel em que, no transcurso de sua convivência, constituíram não somente residência, mas um lar".

Sendo assim, não podem os herdeiros exigir remuneração da companheira sobrevivente, nem da filha que com ela reside no imóvel.

Processo

REsp 1.846.167-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 09/02/2021, DJe 11/02/2021

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Direito real de habitação. Companheira supérstite. Extinção de condomínio e alienação de imóvel comum. Inviabilidade.

Destaque

Aos herdeiros não é autorizado exigir a extinção do condomínio e a alienação do bem imóvel comum enquanto perdurar o direito real de habitação

Informações do Inteiro Teor

A doutrina civilista tem defendido a impossibilidade de os herdeiros postularem a extinção do condomínio e a alienação do bem comum.

Esta Corte, da mesma forma, nas duas oportunidades em que foi instada a se manifestar sobre o assunto, denegou a pretensão dos herdeiros de extinguir o condomínio e alienar o imóvel indivisível.

Nesse sentido a Quarta Turma destaca que "dada a reserva pelo acórdão do direito real vitalício de habitação, limitado, como não poderia deixar de ser, a venda à nua propriedade (50%), recebida em partilha, tênue se apresenta a ofensa à norma legal em apreço que, em princípio, não proíbe taxativamente o ato de disposição, com as ressalvas já declinadas, mas que, de qualquer forma, ainda que indiretamente pode deixar ao desabrigo o cônjuge, neste caso, contra a vontade da lei" (REsp 234.276/RJ, Rel. ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 14/10/2003, DJ 17/11/2003).

Tem-se, então, que a autorização de extinção do condomínio sobre o imóvel e venda do bem comum contraria a própria essência do direito real de habitação decorrente da sucessão.

QUARTA TURMA

Processo

Resp 1.691.882-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 09/02/2021

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Execução. Verba de financiamento do BNDES. Programa de Capitalização de Cooperativas Agropecuárias (PROCAP-AGRO). Recurso público com destinação social. Impenhorabilidade. 

Destaque

São absolutamente impenhoráveis os recursos públicos recebidos do Programa de Capitalização por Cooperativas Agropecuárias. 

Informações do Inteiro Teor

A penhora deve recair sobre o conjunto de bens do devedor suficientes para o pagamento do principal atualizado, juros, custas e honorários advocatícios (CPC/2015, art. 831). No entanto, por razões de cunho humanitário e de solidariedade social, voltados à proteção do executado e de sua família, estabeleceu o legislador a vedação de atos expropriatórios em relação a certos bens destinados a conferir um mínimo necessário a sobrevivência digna do devedor (CPC/2015, art. 832).

Ademais, as medidas executivas previstas pela norma devem receber uma exegese à luz da Constituição, uma vez que almejam a realização de direitos fundamentais e porque, em sua realização, também podem atingir direitos fundamentais. Sob essa ótica, afigura-se mais adequada a interpretação teleológica das impenhorabilidades, diante da finalidade da norma e em conformação com os princípios da justiça e do bem comum, a fim de se evitar o sacrifício de um direito fundamental em relação a outro.

O Diploma processual civil estabeleceu como absolutamente impenhoráveis os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social (649, IX, do CPC/1973; CPC/2015, art. 833, X). O legislador, em juízo ex ante de ponderação e numa perspectiva de sociabilidade, optou por prestigiar os recursos públicos com desígnios sociais em detrimento do pagamento de crédito ao exequente, salvaguardando o direito coletivo de sujeitos indeterminados favorecidos pelos financiamentos nas áreas de educação, saúde ou assistência social.

No caso, os recursos recebidos pela Cooperativa agropecuária se enquadram na tipicidade do art. 649, IX, do CPC/1973 (art. 833, IX, CPC/2015), seja por se tratar de financiamento público, seja pelo evidente caráter assistencial da verba - programa de capitalização das cooperativas agropecuárias (PROCAP-AGRO) para fomento de atividade com interesse coletivo e para a recuperação das Cooperativas -, devendo ser tidos por absolutamente impenhoráveis.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

RESUMO. INFORMATIVO 684 DO STJ.

 RESUMO. INFORMATIVO 684 DO STJ.

Processo

REsp 1.809.486-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 09/12/2020, DJe 16/12/2020 (Tema 1032)

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR

Tema

Plano de saúde. Cláusula de coparticipação à razão máxima de 50% (cinquenta por cento). Informação e ajuste ao consumidor. Transtorno psiquiátrico. Internação superior a 30 (trinta) dias por ano. Abusividade afastada. Validade. Equilíbrio financeiro. Tema 1032.

Destaque

Nos contratos de plano de saúde não é abusiva a cláusula de coparticipação expressamente ajustada e informada ao consumidor, à razão máxima de 50% (cinquenta por cento) do valor das despesas, nos casos de internação superior a 30 (trinta) dias por ano, decorrente de transtornos psiquiátricos, preservada a manutenção do equilíbrio financeiro.

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia a definir se é legal ou abusiva a cláusula que impõe coparticipação para a hipótese de internação psiquiátrica, uma modalidade de tratamento para indivíduos acometidos por transtornos mentais, comorbidades ou dependência química, que corresponde a um serviço de saúde de enorme relevância pública.

Ao contratar um plano de saúde e despender mensalmente relevantes valores na sua manutenção, o consumidor busca garantir, por conta própria, acesso a um direito fundamental que, a rigor, deveria ser prestado pelo Estado de modo amplo, adequado, universal e irrestrito.

Ocorre que, se a universalização da cobertura - apesar de garantida pelo constituinte originário no artigo 198 da Constituição Federal e considerada um dos princípios basilares das ações e serviços públicos de saúde nos termos do artigo 7º da Lei n. 8.080/90 que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências - não é viabilizada pelo Estado no tempo e modo necessários para fazer frente às adversidades de saúde que acometem os cidadãos, tampouco pode ser imposta de modo completo e sem limites ao setor privado, porquanto, nos termos do artigo 199 da Constituição Federal e 4º, § 1º, da Lei n. 8.080/90, a assistência à saúde de iniciativa privada é exercida em caráter complementar.

A presente discussão vincula-se, exatamente, às entidades privadas de assistência à saúde que, embora prestem - de modo secundário e supletivo - serviços de utilidade pública relacionados a direito fundamental estabelecido na Carta Constitucional, exercem, no âmbito do sistema da livre iniciativa, o seu mister com foco na obtenção de lucro inerente à atividade exercida, ressalvadas aquelas instituições filantrópicas ou sem fins lucrativos.

Assim, diferentemente do Estado, que tem o dever de prestar assistência ampla e ilimitada à população, a iniciativa privada se obriga nos termos da legislação de regência e do contrato firmado entre as partes, no âmbito do qual são estabelecidos os serviços a serem prestados/cobertos, bem como as limitações e restrições de direitos.

A Lei n. 9.656/98 rege os planos e seguros privados de assistência à saúde e permite à operadora dos respectivos serviços custear, total ou parcialmente, a assistência médica, hospitalar e odontológica de seus clientes, estabelecendo no artigo 16, inciso VIII, que os contratos, regulamentos ou produtos colocados à disposição dos consumidores podem fixar "a franquia, os limites financeiros ou o percentual de co-participação do consumidor ou beneficiário".

Como se vê da lei de regência, os planos de saúde podem ser coparticipativos ou não, sendo, pois, lícita a incidência da coparticipação em determinadas despesas, desde que informado com clareza o percentual deste compartilhamento, nos termos dos artigos 6º, inciso III e 54, §§ 3o e 4o da Lei n. 8.078/90, nos quais estabelecido que eventuais limitações a direitos, ressalvas e restrições de cobertura, bem como estipulações e obrigações carreadas aos consumidores devem ser redigidos de modo claro, com caracteres ostensivos e legíveis e com o devido destaque a fim de permitir a fácil compreensão pelo consumidor.

A prescrição da internação em virtude de transtornos psiquiátricos ou doenças mentais é considerada uma medida terapêutica excepcional, a ser utilizada somente quando outras formas de tratamento ambulatorial ou em consultório se mostrarem insuficientes para a recuperação do paciente/consumidor.

Diante desse contexto, em obediência aos ditames da Lei n. 9.656/98, que admite a coparticipação de algumas despesas, e aos princípios orientadores da internação segundo a Lei n. 10.216/2001, o Conselho Nacional de Saúde Complementar - CONSU e a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, a fim de regulamentarem a questão, editaram diversas Resoluções Normativas para o trato da matéria ao longo das últimas duas décadas.

Consoante os ditames legais e regulamentares acerca da questão jurídica, verifica-se que não é abusiva a cláusula de coparticipação expressamente contratada e informada ao consumidor, limitada ao máximo de 50% do valor contratado entre a operadora de planos privados de assistência à saúde e o respectivo prestador de serviços de saúde, para a hipótese de internação superior a 30 (trinta) dias decorrente de transtornos psiquiátricos, pois destinada à manutenção do equilíbrio entre as prestações e contraprestações que envolvem a gestão dos custos dos contratos de planos privados de saúde.

Processo

REsp 1.842.911-RS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 09/12/2020, DJe 17/12/2020 (Tema 1051)

Ramo do Direito

DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR

Tema

Recuperação judicial. Crédito. Existência. Sujeição aos efeitos do processo de soerguimento. Art. 49, caput, da Lei n. 11.101/2005. Data do fato gerador. Tema 1051.

Destaque

Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador.

Informações do Inteiro Teor

A questão controvertida consiste em definir, a partir da interpretação do artigo 49, caput, da Lei n. 11.101/2005, se a existência do crédito é determinada pela data de seu fato gerador ou pelo trânsito em julgado da sentença que o reconhece.

Conforme se percebe da leitura do referido artigo, nem todos os credores estão submetidos aos efeitos da recuperação judicial, mas somente aqueles titulares de créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, e que não foram excepcionados pelo artigo 49, §§ 3º e 4º, da Lei n. 11.101/2005. Além disso, os créditos de natureza fiscal estão excluídos da recuperação judicial (art. 6º, § 7º, da Lei n. 11.101/2005).

Diante dessa opção do legislador de excluir determinados credores da recuperação judicial, mostra-se imprescindível identificar o que deve ser considerado como crédito existente na data do pedido ainda que não vencido. A matéria ganha especial dificuldade no que respeita aos créditos que dependem de liquidação.

Os créditos ilíquidos decorrentes de responsabilidade civil, das relações de trabalho e de prestação de serviços, entre outros, dão ensejo a duas interpretações quanto ao momento de sua existência, que podem ser assim resumidas: (i) a existência do crédito depende de provimento judicial que o declare (com trânsito em julgado) e (ii) a constituição do crédito ocorre no momento do fato gerador, pressupondo a existência de um vínculo jurídico entre as partes, o qual não depende de decisão judicial que o declare.

A primeira corrente interpretativa parte do pressuposto de que somente nas situações em que a obrigação é descumprida, sendo necessária a intervenção do Poder Judiciário para que a prestação seja satisfeita, é que se poderia falar em existência do crédito. No entanto, o crédito pode ser satisfeito espontaneamente, a partir da quantificação acordada pelas partes, extinguindo-se a obrigação.

Disso decorre que a existência do crédito não depende de declaração judicial. Na verdade, confunde-se o conceito de obrigação e de responsabilidade.

A existência do crédito está diretamente ligada à relação jurídica que se estabelece entre o devedor e credor, o liame entre as partes, pois é com base nela que, ocorrido o fato gerador, surge o direito de exigir a prestação (direito de crédito). Assim, a prestação do trabalho, na relação trabalhista, faz surgir o direito ao crédito; na relação de prestação de serviços, a realização do serviço.

Na responsabilidade civil contratual, o vínculo jurídico precede a ocorrência do ilícito que faz surgir o dever de indenizar. Na responsabilidade jurídica extracontratual, o liame entre as partes se estabelece concomitantemente com a ocorrência do evento danoso. De todo modo, ocorrido o ato lesivo, surge o direito ao crédito relativo à reparação dos danos causados.

Ou seja, os créditos submetidos aos efeitos da recuperação judicial são aqueles decorrentes da atividade do empresário antes do pedido de recuperação, isto é, de fatos praticados ou de negócios celebrados pelo devedor em momento anterior ao pedido de recuperação judicial, excetuados aqueles expressamente apontados na lei de regência.

Nessa linha, foi editado o Enunciado n. 100 da III Jornada de Direito Comercial, que tem o seguinte teor: "Consideram-se sujeitos à recuperação judicial, na forma do art. 49 da Lei n. 11.101/2005, os créditos decorrentes de fatos geradores anteriores ao pedido de recuperação, independentemente da data de eventual acordo, sentença ou trânsito em julgado."

Em resumo, ocorrido o fato gerador, surge o direito de crédito, sendo o adimplemento e a responsabilidade elementos subsequentes, não interferindo na sua constituição.

Diante disso, conclui-se que a submissão do crédito aos efeitos da recuperação judicial não depende de sentença que o declare ou o quantifique, menos ainda de seu trânsito em julgado, bastando a ocorrência do fato gerador, conforme defende a segunda corrente interpretativa mencionada e o entendimento adotado pela iterativa jurisprudência desta Corte.

Processo

REsp 1.717.213-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 03/12/2020, DJe 10/12/2020 (Tema 1022)

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR

Tema

Recuperação judicial e falência. Decisões interlocutórias. Hipóteses de cabimento do agravo de instrumento previstas na Lei n. 11.101/2005. Risco de lesão grave e de difícil reparação exigidos pelo CPC/1973. Ressignificação do cabimento à luz do CPC/2015. Natureza jurídica do processo recuperacional. Liquidação e execução negocial. Natureza jurídica do processo falimentar. Liquidação e execução coletiva. Aplicabilidade da regra do Art. 1.015, parágrafo único, do CPC/2015. Cabimento de agravo de instrumento contra todas as decisões interlocutórias proferidas nos processos recuperacionais e falimentares. Modulação de efeitos. Segurança jurídica e proteção da confiança. Tema 1022.

Destaque

Cabe agravo de instrumento de todas as decisões interlocutórias proferidas no processo de recuperação judicial e no processo de falência, por força do art. 1.015, parágrafo único, do CPC/2015.

Informações do Inteiro Teor

No regime recursal adotado pelo CPC/2015, há dois diferentes modelos de recorribilidade das decisões interlocutórias: (i) para as decisões proferidas na fase de conhecimento, será cabível o agravo de instrumento nas hipóteses listadas nos incisos do art. 1.015, observado, ainda, o abrandamento da taxatividade desse rol em razão da tese fixada por ocasião do julgamento do Tema Repetitivo 988 (tese da taxatividade mitigada); (ii) para as decisões proferidas nas fases de liquidação e cumprimento da sentença, no processo executivo e na ação de inventário, será cabível o agravo de instrumento contra todas as decisões interlocutórias, por força do art. 1.015, parágrafo único.

O regime recursal diferenciado para as decisões interlocutórias proferidas nas fases de liquidação e cumprimento de sentença, no processo executivo e na ação de inventário se justifica pela impossibilidade de rediscussão posterior da questão objeto da interlocutória, na medida em que nem sempre haverá apelação nessas espécies de fases procedimentais e processos, inviabilizando a incidência da regra do art. 1.009, §1º, do CPC/2015 e também pela altíssima invasividade e gravidade das decisões interlocutórias proferidas nessas espécies de fases procedimentais e processos, uma vez que, em regra, serão praticados inúmeros e sucessivos atos judiciais de índole satisfativa (pagamento, penhora, expropriação e alienação de bens, etc.) que se revelam claramente incompatíveis com a recorribilidade apenas diferida das decisões interlocutórias.

Conquanto a Lei n. 11.101/2005 preveja o cabimento do agravo de instrumento em específicas hipóteses, como, por exemplo, o art. 17, caput, art. 59, §2º e art. 100, não se pode olvidar que, por ocasião da edição da referida lei, vigorava no Brasil o CPC/1973, cujo sistema recursal, no que tange às decisões interlocutórias, era diametralmente oposto ao regime recursal instituído pelo CPC/2015, de modo que a escolha, pelo legislador, de apenas algumas específicas hipóteses de recorribilidade imediata das interlocutórias proferidas nos processos recuperacionais e falimentares deve ser interpretada como o reconhecimento de que, naquelas hipóteses, estava presumidamente presente o risco de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, requisito exigido pelo art. 522, caput, do CPC/1973.

Ao se reinterpretar a questão relacionada à recorribilidade das decisões interlocutórias proferidas nos processos recuperacionais e falimentares à luz do regime instituído pelo CPC/2015, conclui-se que, tendo o processo recuperacional a natureza jurídica de liquidação e de execução negocial das dívidas da pessoa jurídica em recuperação e tendo o processo falimentar a natureza jurídica de liquidação e de execução coletiva das dívidas da pessoa jurídica falida, a esses processos deve ser aplicada a regra do art. 1.015, parágrafo único, do novo CPC.

Assim, nos termos do art. 1.036 e seguintes do CPC/2015, fixa-se a seguinte tese jurídica: Cabe agravo de instrumento de todas as decisões interlocutórias proferidas no processo de recuperação judicial e no processo de falência, por força do art. 1.015, parágrafo único, do CPC/2015.

Para propiciar segurança jurídica e proteger as partes que, confiando na irrecorribilidade das decisões interlocutórias fora das hipóteses de cabimento previstas na Lei n. 11.101/2005, não interpuseram agravo de instrumento com base no art. 1.015, parágrafo único, do CPC/2015, faz-se necessário estabelecer que: (i) as decisões interlocutórias que não foram objeto de recurso de agravo de instrumento poderão ser objeto de impugnação pela parte em eventual e hipotética apelação ou em contrarrazões, como autoriza o art. 1.009, §1º, do CPC/2015, se entender a parte que ainda será útil o enfrentamento da questão incidente objeto da decisão interlocutória naquele momento processual; (ii) que a presente tese jurídica vinculante deverá ser aplicada a todas as decisões interlocutórias proferidas após a publicação do acórdão que fixou a tese e a todos os agravos de instrumento interpostos antes da fixação da tese e que ainda se encontrem pendentes de julgamento ao tempo da publicação deste acórdão, excluindo-se aqueles que não foram conhecidos por decisão judicial transitada em julgado.

CORTE ESPECIAL

Processo

RMS 63.202-MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Rel. Acd. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por maioria, julgado em 01/12/2020, DJe 18/12/2020

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Decisão que indefere requerimento consensual de designação da audiência de conciliação prevista no art. 334 do CPC. Impugnação imediata. Via adequada após tema repetitivo 988. Agravo de instrumento. Excepcional utilização do Mandado de Segurança. Impossibilidade absoluta.

Destaque

Não é admissível, nem excepcionalmente, a impetração de mandado de segurança para impugnar decisões interlocutórias após a publicação do acórdão em que se fixou a tese referente ao tema repetitivo 988, segundo a qual "o rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação".

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia a definir se, após a publicação do acórdão em que se fixou a tese referente ao tema repetitivo 988, é admissível, ainda que excepcionalmente, a impetração de mandado de segurança para impugnar decisões interlocutórias.

Inicialmente, é preciso reconhecer desde logo a premissa no sentido de que ser inócuo e inútil impugnar, apenas em apelação ou em contrarrazões, a decisão interlocutória que indefere a designação da audiência de conciliação pretendida pelas partes.

De fato, de nada adiantará, do ponto de vista prático, uma eventual impugnação diferida sobre um ato processual que se pretende seja praticado no início do processo, especialmente porque diante da irreversibilidade dos efeitos que serão produzidos com a referida decisão e dos danos alegadamente sofridos pelas partes.

Quanto a via impugnativa adequada, a decisão judicial que, a requerimento do réu, indefere o pedido de designação da audiência de conciliação prevista no art. 334, caput, do CPC, ao fundamento de dificuldade de pauta, proferida após a publicação do acórdão que fixou a tese da taxatividade mitigada, somente é impugnável por agravo de instrumento e não por mandado de segurança.

Conquanto seja excepcionalmente admissível a impugnação de decisões judiciais lato sensu por mandado de segurança, não é admissível, nem mesmo excepcionalmente, a impugnação de decisões interlocutórias por mandado de segurança após a tese firmada no tema repetitivo 988, que estabeleceu uma exceção ao posicionamento há muito adotado nesta Corte, especificamente no que tange à impugnabilidade das interlocutórias, de modo a vedar, em absoluto, a impugnação dessa espécie de decisão pelas partes mediante mandado de segurança, porque há via impugnativa recursal apropriada, o agravo de instrumento.

CORTE ESPECIAL

Processo

RMS 63.202-MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Rel. Acd. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por maioria, julgado em 01/12/2020, DJe 18/12/2020

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Decisão que indefere requerimento consensual de designação da audiência de conciliação prevista no art. 334 do CPC. Impugnação imediata. Via adequada após tema repetitivo 988. Agravo de instrumento. Excepcional utilização do Mandado de Segurança. Impossibilidade absoluta.

Destaque

Não é admissível, nem excepcionalmente, a impetração de mandado de segurança para impugnar decisões interlocutórias após a publicação do acórdão em que se fixou a tese referente ao tema repetitivo 988, segundo a qual "o rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação".

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia a definir se, após a publicação do acórdão em que se fixou a tese referente ao tema repetitivo 988, é admissível, ainda que excepcionalmente, a impetração de mandado de segurança para impugnar decisões interlocutórias.

Inicialmente, é preciso reconhecer desde logo a premissa no sentido de que ser inócuo e inútil impugnar, apenas em apelação ou em contrarrazões, a decisão interlocutória que indefere a designação da audiência de conciliação pretendida pelas partes.

De fato, de nada adiantará, do ponto de vista prático, uma eventual impugnação diferida sobre um ato processual que se pretende seja praticado no início do processo, especialmente porque diante da irreversibilidade dos efeitos que serão produzidos com a referida decisão e dos danos alegadamente sofridos pelas partes.

Quanto a via impugnativa adequada, a decisão judicial que, a requerimento do réu, indefere o pedido de designação da audiência de conciliação prevista no art. 334, caput, do CPC, ao fundamento de dificuldade de pauta, proferida após a publicação do acórdão que fixou a tese da taxatividade mitigada, somente é impugnável por agravo de instrumento e não por mandado de segurança.

Conquanto seja excepcionalmente admissível a impugnação de decisões judiciais lato sensu por mandado de segurança, não é admissível, nem mesmo excepcionalmente, a impugnação de decisões interlocutórias por mandado de segurança após a tese firmada no tema repetitivo 988, que estabeleceu uma exceção ao posicionamento há muito adotado nesta Corte, especificamente no que tange à impugnabilidade das interlocutórias, de modo a vedar, em absoluto, a impugnação dessa espécie de decisão pelas partes mediante mandado de segurança, porque há via impugnativa recursal apropriada, o agravo de instrumento.

Processo

REsp 1.188.443-RJ, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel. Acd. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por maioria, julgado em 27/10/2020, DJe 18/12/2020

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Planos e seguros de saúde. Ação coletiva vindicando descumprimento de norma emitida pela ANS. Litisconsórcio passivo necessário da União e da ANS. Imprescindibilidade.

Destaque

Há litisconsórcio passivo necessário da União e da Agência Nacional de Saúde em ação coletiva que afete a esfera do poder regulador da entidade da Administração Pública.

Informações do Inteiro Teor

Trata-se de ação coletiva que tem como causa de pedir a invocação de que a Resolução n. 13/1998 do Conselho de Saúde Suplementar - Consu, reproduzida em cláusulas de contratos de planos e seguros de saúde das rés, alegadamente extrapolou os lindes estabelecidos pela Lei n. 9.656/1998, ao impor o limite, no período de carência contratual, de 12 horas para atendimento aos beneficiários dos planos ambulatoriais e hospitalares. Com efeito, o exame da higidez do ato administrativo é questão prejudicial ao acolhimento do pedido, que implica tacitamente obstar seus efeitos, ao fundamento de violação de direito de terceiros (beneficiários de planos e seguros de saúde).

Por um lado, o art. 4º, incisos I, XXIX e XXX, da Lei n. 9.961/2000 estabelece que compete à Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS: I - propor políticas e diretrizes gerais ao Conselho de Saúde Suplementar - Consu para a regulação do setor de saúde suplementar; XXIX - fiscalizar o cumprimento das disposições da Lei n. 9.656, de 1998, e de sua regulamentação; XXX - aplicar as penalidades pelo descumprimento da Lei n. 9.656, de 1998, e de sua regulamentação. Por outro lado, o contrato (o regulamento contratual) não se confunde com o instrumento contratual, sendo as normas legais e os atos das autoridades constituídas - notadamente em se tratando de relação contratual a envolver a saúde suplementar, que sofre forte intervenção estatal -, juntamente com a vontade das partes (que exprime o poder de autonomia), os agentes típicos das limitações à liberdade contratual dos particulares, isto é, são as fontes do regulamento contratual, para cuja concreta determinação, segundo as circunstâncias e em diferentes medidas, podem concorrer.

Nos termos do art. 47 do CPC/1973, há litisconsórcio necessário quando, por disposição de lei "ou pela natureza da relação jurídica", o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes. E o art. 114 do CPC/2015 também estabelece que o litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes. Já o art. 115, I, do CPC/2015 dispõe que a sentença de mérito, quando proferida sem a integração do contraditório, será nula, se a decisão deveria ser uniforme em relação a todos que deveriam ter integrado o processo.

Assim, orienta a doutrina que parte legítima para a causa é quem figura na relação como titular dos interesses em lide ou, ainda, como substituto processual. No tocante aos substituídos da ação civil pública e às inúmeras seguradoras e operadoras de planos de saúde rés, o pedido mediato da ação, bem como o decidido pelas instâncias ordinárias, pretensamente esvazia os efeitos do ato regulamentar administrativo (que vincula fornecedores e consumidores), a par de ensejar a possibilidade de coexistência de decisões inconciliáveis, caso o ato administrativo venha a ser questionado na Justiça Federal e considerado hígido.

Consoante a jurisprudência da Primeira Seção do STJ, há litisconsórcio passivo necessário quando o pedido formulado na inicial da ação afetar a esfera do poder regulador de entidade da administração pública.

Nessa linha, não se tratando de ação coletiva visando dar cumprimento à regulamentação legal e/ou infralegal - hipótese mais frequente, em que é inquestionável a competência da Justiça Estadual e a ausência de interesse institucional da União e da ANS -, mas de tentativa, por via transversa, sem a participação das entidades institucionalmente interessadas, de afastar os efeitos de disposição cogente infralegal, ocasionando embaraço às atividades fiscalizatórias e sancionatórias da ANS, sem propiciar às entidades da administração pública federal o exercício da ampla defesa e do contraditório, até mesmo para eventualmente demonstrarem o interesse público na manutenção dos efeitos da norma, devem integrar o polo passivo da demanda a União e a ANS.

SEGUNDA SEÇÃO

Processo

EAREsp 1.459.849-ES, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, por maioria, julgado em 14/10/2020, DJe 17/12/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR

Tema

Plano de saúde. Despesas médico-hospitalares realizadas fora da rede credenciada. Reembolso. Restrição a situações excepcionais. Inexistência ou insuficiência de estabelecimento ou profissional credenciado no local. Urgência ou emergência do procedimento. Art. 12, VI da Lei n. 9.656/1998.

Destaque

O reembolso das despesas médico-hospitalaes efetuadas pelo beneficiário com tratamento/atendimento de saúde fora da rede credenciada pode ser admitido somente em hipóteses excepcionais, tais como a inexistência ou insuficiência de estabelecimento ou profissional credenciado no local e urgência ou emergência do procedimento.

Informações do Inteiro Teor

A Segunda Seção, em apreciação aos embargos de divergência, pacificou o entendimento que encontrava dissonância no âmbito do Tribunal com relação ao reembolso das despesas efetuadas pelo usuário do plano de saúde fora da rede conveniada.

À vista disso, constata-se que o acórdão embargado, proferido pela Quarta Turma do STJ reformou o acórdão estadual sob o fundamento de que a jurisprudência desta Corte Superior entende que o reembolso das despesas efetuadas pelo usuário do plano de saúde fora da rede conveniada somente é admitido em casos excepcionais, conforme prevê o art. 12, VI, da Lei n. 9.656/1998.

Por sua vez, os acórdãos paradigmas, proferidos pela Terceira Turma do STJ, entenderam que a exegese do artigo supracitado deve ser extensiva, em homenagem aos princípios da boa-fé e da proteção da confiança nas relações privadas.

Importante deixar assente que o contrato de plano de assistência à saúde, por definição, tem por objeto propiciar, mediante o pagamento de um preço (consistente em prestações antecipadas e periódicas), a cobertura de custos de tratamento médico e atendimentos médico, hospitalar e laboratorial perante profissionais, rede de hospitais e laboratórios próprios ou credenciados.

Dessa forma, a estipulação contratual que vincula a cobertura contratada aos médicos e hospitais de sua rede ou conveniados é inerente a esta espécie contratual e, como tal, não encerra, em si, nenhuma abusividade.

Não obstante, excepcionalmente, nos casos de urgência e emergência, em que não se afigurar possível a utilização dos serviços médicos próprios, credenciados ou conveniados, a empresa de plano de saúde, mediante reembolso, responsabiliza-se pelas despesas médicas expendidas pelo contratante em tais condições, limitada, no mínimo, aos preços de serviços médicos e hospitalares praticados pelo respectivo produto.

Trata-se, pois, de garantia legal mínima conferida ao contratante de plano de assistência à saúde, a ser observada, inclusive, no denominado plano-referência, de cobertura básica, de modo que não se pode falar em ofensa ao princípio da proteção da confiança nas relações privadas, já que os beneficiários do plano estarão sempre amparados, seja pela rede credenciada, seja por outros serviços de saúde quando aquela se mostrar insuficiente ou se tratar de situação de urgência.

SEGUNDA TURMA

Processo

REsp 1.722.423-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 24/11/2020, DJe 18/12/2020

Ramo do Direito

DIREITO ADMINISTRATIVO, DIREITO CIVIL

Tema

Danos morais. Pessoa Jurídica de Direito Público. Credibilidade institucional agredida. Dano reflexo sobre os demais jurisdicionados. Lesões extrapatrimoniais. Condenação. Possibilidade jurídica.

Destaque

Pessoa Jurídica de Direito Público tem direito à indenização por danos morais relacionados à violação da honra ou da imagem, quando a credibilidade institucional for fortemente agredida e o dano reflexo sobre os demais jurisdicionados em geral for evidente.

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia a determinar se é possível o INSS, pessoa jurídica de direito público, ser vítima de danos morais.

Inicialmente, Também não afasta a pretensão reparatória o argumento de que as pessoas que integram o Estado não sofrem "descrédito mercadológico".

O direito das pessoas jurídicas à reparação por dano moral não exsurge apenas no caso de prejuízos comerciais, mas também nas hipóteses, mais abrangentes, de ofensa à honra objetiva. Nesse plano, até mesmo entidades sem fins lucrativos podem se atingidas.

Assim, não se pode afastar a possibilidade de resposta judicial à agressão perpetrada por agentes do Estado contra a credibilidade institucional da autarquia, a qual implica em dano reflexo sobre os demais segurados da Previdência e os jurisdicionados em geral é evidente, tudo consubstanciado por uma lesão de ordem extrapatrimonial.

Processo

REsp 1.821.336-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 04/02/2020, DJe 22/10/2020

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Convenção Modelo da OCDE. Soft law. Prequestionamento. Não configuração.

Destaque

A menção a convenções abstratas que não possuem validade e eficácia no Direito Interno não é suficiente à configuração do prequestionamento, mesmo que em sua forma implícita.

Informações do Inteiro Teor

No caso, a corte de origem menciona o art. 12 da Convenção Modelo da OCDE para concluir que os valores remetidos ao exterior não se enquadram no conceito de royalties, pois os serviços prestados pela impetrante não implicam transferência de tecnologia.

Em análise superficial, pode induzir a reconhecimento do prequestionamento implícito da matéria.

No entanto, uma peculiaridade: a referência ao art. 12 da Convenção Modelo da OCDE, instrumento de soft law por excelência, não é suficiente à configuração do prequestionamento.

Em outras palavras, a menção à abstrata Convenção Modelo da OCDE, que não possui, per si, validade e eficácia no Direito Interno, não é suficiente à configuração do prequestionamento, mesmo que em sua forma implícita. Apenas a apreciação das concretas convenções firmadas com base em tal modelo e internalizadas no ordenamento jurídico nacional, essas sim normas jurídicas aptas a produzir efeitos no País, supriria o requisito para conhecimento do apelo nobre.

Sem desprezar a relevância interpretativa dos princípios e normas de Direito Público Internacional, não é possível o reconhecimento do prequestionamento implícito, baseado em mera recomendação internacional, que nem sequer se enquadra no conceito de "lei federal" para fins de interposição de Recurso Especial.

Ademais, a redação do art. 12 da Convenção Modelo da OCDE (lato sensu) não é suficiente à conclusão que a parte recorrente pretende ver acolhida. Apenas com análise de cada Protocolo específico, questão não suscitada pela recorrente na Corte de origem, é possível definir o alcance da expressão "informações correspondentes á experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico". Esse é o ponto central da argumentação do Recurso Especial, que não foi tratado no acórdão recorrido e não foi objeto da oposição de aclaratórios.

TERCEIRA TURMA

Processo

REsp 1.834.231-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Operações de crédito pessoal. Desconto das parcelas em conta corrente na qual recebido benefício de prestação continuada de assistência social ao idoso - BPC. Pedido de limitação dos descontos. Acolhimento. Verba destinada essencialmente à sobrevivência do idoso. Princípio da dignidade da pessoa humana. Resp 1.555.722/SP.Distinguishing.

Destaque

É possível a limitação dos descontos em conta bancária de recebimento do Benefício de Prestação Continuada, de modo a não privar o idoso de grande parcela do benefício destinado à satisfação do mínimo existencial.

Informações do Inteiro Teor

Discute-se, na espécie, a limitação de descontos de prestações de mútuo em conta bancária na qual é depositado, em favor do recorrido, o Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social ao Idoso - BPC.

Este benefício, de matriz constitucional, cuida de mecanismo de proteção social que visa garantir ao idoso o mínimo indispensável à sua subsistência, não provida por sua família, mediante a concessão de uma renda mensal equivalente a 1 (um) salário mínimo.

No plano infraconstitucional, a Lei n. 8.742/1993 (Lei da Assistência Social - LOAS), a par de corroborar que a assistência social é política estatal que provê os mínimos sociais, estabelece que faz jus ao BPC o idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais cuja família tenha renda mensal per capita igual ou inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo.

Assim, à toda evidência, o BPC, longe de constituir "remuneração" ou "verba salarial" - do que tratou o precedente firmado no REsp 1.555.722/SP - consiste em renda transferida pelo Estado ao idoso, de modo a ofertar-lhe, em um primeiro momento, condições de sobrevivência em enfrentamento à miséria, e para além disto, "também propiciar condições mínimas de sobrevivência com dignidade".

Nesse diapasão, constata-se que, em razão da natureza e finalidade do BPC, a margem de disponibilidade, do beneficiário, sobre o valor do benefício é consideravelmente reduzida se comparada à liberdade do trabalhador no uso de seu salário, proventos e outras rendas. O valor recebido a título de benefício assistencial, deveras, é voltado precipuamente à satisfação de necessidades básicas vitais do indivíduo, com vistas à sua sobrevivência. Diferentemente, em se tratando de verba de natureza salarial, é possível cogitar de uma maior margem financeira do indivíduo para custear suas despesas em geral, como educação, lazer, vestuário, transporte, etc, aí incluído o pagamento de credores.

Convém ressaltar, sequer há autorização legal para desconto de prestações de empréstimos e cartão de crédito diretamente no BPC, concedido pela União Federal e pago por meio do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, pois a Lei n. 10.820/2003, que regula a consignação em folha de pagamento de parcelas de empréstimos e cartão de crédito, ao dispor sobre os descontos nos benefícios pagos pelo INSS, remete, tão somente, aos benefícios de aposentadoria e pensão, ou seja, aqueles relacionados à Previdência Social, não abrangendo, assim, benefícios assistenciais.

Essa limitação dos descontos, na espécie, não decorre de analogia com a hipótese de consignação em folha de pagamento, mas com a necessária ponderação entre o princípio da autonomia da vontade privada e o princípio da dignidade da pessoa humana, de modo a não privar o devedor de grande parcela do benefício que, já de início, era integralmente destinado à satisfação do mínimo existencial.

Nesse contexto, diante desse específico quadro normativo, cabe realizar a distinção (distinguishing) entre o entendimento firmado no REsp 1.555.722/SP e a hipótese concreta dos autos, para o fim de acolher o pedido de limitação dos descontos ao percentual de 30% do valor recebido a título de Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social ao Idoso - BPC.

Processo

REsp 1.868.099-CE, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR

Tema

Empréstimo consignado firmado com analfabeto. Aposição de digital. Insuficiente. Validade. Assinatura a rogo, na presença de 2 (duas) testemunhas, ou or procurador público. Expressão do livre consentimento. Acesso ao conteúdo das cláusulas e condições contratadas.

Destaque

É válida a contratação de empréstimo consignado por analfabeto mediante a assinatura a rogo, a qual, por sua vez, não se confunde, tampouco poderá ser substituída pela mera aposição de digital ao contrato escrito.

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia a definir, a par da adequação da tutela jurisdicional entregue, a validade do contrato de empréstimo consignado por consumidor analfabeto mediante a mera aposição da digital ao instrumento contratual.

A liberdade de contratar é assegurada ao analfabeto, bem como àquele que se encontre impossibilitado de ler e escrever. Em regra, a forma de contratação, no direito brasileiro, é livre, não se exigindo a forma escrita para contratos de alienação de bens móveis, salvo quando expressamente exigido por lei.

O contrato de mútuo, do qual o contrato de empréstimo consignado é espécie, se perfaz mediante a efetiva transmissão da propriedade da coisa emprestada. Essa observação, ainda que pareça singela, é essencial para a identificação dos requisitos de validade do contrato, em especial, no que se refere à sua formalização, isso porque o fundamento central do acórdão recorrido foi a aplicação, ao caso dos autos, do art. 595 do Código Civil de 2002, cujo texto normativo excepcionaria a necessidade de procuração pública para assinatura de contrato de prestação de serviço.

Ainda que se configure, em regra, contrato de fornecimento de produto, a instrumentação do empréstimo consignado na forma escrita faz prova das condições e obrigações impostas ao consumidor para o adimplemento contratual, em especial porque, nessa modalidade de crédito, a restituição da coisa emprestada se faz mediante o débito de parcelas diretamente do salário ou benefício previdenciário devido ao consumidor contratante pela entidade pagadora, a qual é responsável pelo repasse à instituição credora (art. 3o, III, da Lei n. 10.820/2003).

A adoção da forma escrita, com redação clara, objetiva e adequada, é fundamental para demonstração da efetiva observância, pela instituição financeira, do dever de informação, imprescindíveis à livre escolha e tomada de decisões por parte dos clientes e usuários (art. 1o da Resolução CMN n. 3.694/2009).

Nas hipóteses em que o consumidor está impossibilitado de ler ou escrever, acentua-se a hipossuficiência natural do mercado de consumo, inviabilizando o efetivo acesso e conhecimento às cláusulas e obrigações pactuadas por escrito, de modo que a atuação de terceiro (a rogo ou por procuração pública) passa a ser fundamental para manifestação inequívoca do consentimento.

A incidência do art. 595 do CC/2002, na medida em que materializa o acesso à informação imprescindível ao exercício da liberdade de contratar por aqueles impossibilitados de ler e escrever, deve ter aplicação estendida a todos os contratos em que se adote a forma escrita, ainda que esta não seja exigida por lei.

A aposição de digital não se confunde, tampouco substitui a assinatura a rogo, de modo que sua inclusão em contrato escrito somente faz prova da identidade do contratante e da sua reconhecida impossibilidade de assinar.

Processo

REsp 1.761.068-RS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. Acd. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por maioria, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Cumprimento de sentença. Impugnação. Termo inicial. Término do prazo para pagamento voluntário do débito. Art. 525 do CPC/2015. Garantia do juízo. Irrelevância.

Destaque

O prazo para impugnação se inicia após 15 (quinze) dias da intimação para pagar o débito, ainda que o executado realize o depósito para garantia do juízo no prazo para pagamento voluntário, independentemente de nova intimação.

Informações do Inteiro Teor

Na vigência do CPC/1973, prevaleceu na Segunda Seção que, havendo depósito judicial do valor da execução, a constituição da penhora é automática, independente da lavratura do respectivo termo, motivo pelo qual o prazo para oferecer embargos do devedor deveria ser a data da efetivação do depósito judicial da quantia objeto da ação de execução.

Referida orientação tinha em vista a previsão do art. 738, I e II, do CPC/1973, em sua redação originária, anterior à reforma da Lei n. 11.232/2005, que estabelecia a garantia do juízo como pressuposto dos embargos do devedor e que previa que o prazo para a sua apresentação de embargos tinha início com a intimação da penhora ou do termo de depósito judicial.

No CPC/2015, com a redação do art. 525, § 6º, a garantia do juízo deixa expressamente de ser requisito para a apresentação do cumprimento de sentença, passando a se tornar apenas mais uma condição para a suspensão dos atos executivos.

De fato, nos termos do § 3º do art. 523 do CPC/2015, somente após não ter sido efetuado o pagamento no prazo de 15 dias da intimação do executado será expedido, desde logo, o mandado de penhora e avaliação, o que se justifica pelo fato de que, conforme a doutrina, "antes de decorrido o prazo para pagamento voluntário não se justifica a prática de atos executivos".

Não por outra razão, o art. 525, caput, dispõe que o prazo de 15 (quinze) dias para a apresentação da impugnação se inicia após o prazo do pagamento voluntário, independentemente de nova intimação.

Logicamente, portanto, se o mandado de penhora só pode ser expedido após o prazo de 15 (quinze) dias do pagamento espontâneo, não há razão para se considerar que a garantia do juízo é pré-requisito da apresentação da impugnação ao cumprimento de sentença.

Da mesma forma, se, nos termos do CPC/1973, segundo a redação do § 1º do art. 475-J, tão logo o juízo estivesse assegurado pela constrição de bens - requisito de admissibilidade da reação do devedor -, deveria ser realizada a intimação da penhora, quando, então, querendo, poderia o devedor apresentar impugnação no prazo de quinze dias; na atual redação do CPC/2015, a garantia do juízo é completamente dispensável para viabilizar a impugnação, sendo, assim, igualmente, dispensada a intimação, na hipótese de penhora, ou o reconhecimento da ocorrência de comparecimento espontâneo, por meio do depósito, para que o prazo para a impugnação comece a ter curso, porquanto não têm essas circunstâncias qualquer influência sobre esse fato processual.

Realmente, a apresentação de garantia do juízo não supre eventual falta intimação, eis que, na forma dos arts. 523 e 525 do CPC/2015, a intimação para a apresentação da impugnação, se houver interesse, já se torna perfeita com a intimação para pagar o débito, tendo início automático após o prazo de 15 (quinze) dias para o cumprimento espontâneo da obrigação.

Assim, por disposição expressa do art. 525, caput, do novo CPC, mesmo que o executado realize o depósito para garantia do juízo no prazo para pagamento voluntário, o prazo para a apresentação da impugnação somente se inicia após transcorridos os 15 (quinze) dias contados da intimação para pagar o débito, previsto no art. 523 do CPC/2015, independentemente de nova intimação.