A FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES CONTRA OS DIREITOS HUMANOS E O CASO DO MENINO JOÃO HÉLIO
JOÃO HORA NETO
Juiz de Direito no Estado de Sergipe. Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Sergipe – UFS. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Especialista em Novo Direito Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL
Na história recente do País, dois graves crimes abalaram e comoveram a sociedade brasileira, a saber:
1º) O homicídio da missionária Dorothy Stang, assassinada a tiros na cidade de Anapu, Estado do Pará, em fevereiro de 2005:
2º) O latrocínio do menino João Hélio Fernandes, no Rio de Janeiro, consumado em fevereiro deste ano;
Ambos os crimes foram graves, hediondos, cruéis – e até penso que o crime de João Hélio tenha sido ainda mais bárbaro, em razão de ele ter sido arrastado vivo, pendurado do lado de fora e preso ao cinto de segurança do carro, por cerca de 07 (sete) quilômetros, durante 15(quinze) minutos, por 14(catorze) ruas, tendo ao fim sido abandonado o carro e o corpo da criança fora encontrado dilacerado.
O fato concreto é que dois brasileiros morreram banalmente, inseridos numa realidade social cada vez mais injusta, atroz e beligerante, na condição de pusilânimes personagens no entremeio de uma surda e voraz guerra civil cotidiana, de há muito engendrada no País e comandada por organizações criminosas e seus diversos matizes.
Contudo, na frieza das estatísticas, mortos foram mais dois brasileiros – sendo a primeira vítima uma senhora já idosa, e a segunda uma criança em terna idade – ambos protegidos não só pela Constituição Federal e pelo Código Penal, mas muito especialmente por Leis Especiais, ou seja, o Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e do Adolescente, respectivamente.
Malgrado isso – e aqui reside a discussão central desse artigo – o tratamento jurídico dado aos casos tem sido diferente e distinto, apesar de ambos guarnecerem um mesmo valor paradigmático perante o Direito – à vista da gravidade e hediondez em cotejo com a expressão “Direitos Humanos”.
De fato, a meu juízo, consigno que a diferenciação de tratamento dá-se em razão de um novel instituto jurídico denominado Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), vigente a partir da Emenda Constitucional nº 45, promulgada em dezembro de 2004, in verbis:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:(...)
V – A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo;(...)
§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal”.
De forma sumária, pois -- o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) objetiva retirar da competência da Justiça Estadual determinados crimes e remetê-los à Justiça Federal, isto é, busca “federalizar” crimes onde haja grave violação aos direitos humanos, a fim de assegurar as obrigações derivadas dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja signatário.
Numa rápida visão jurídica, e até perfunctória – pois não é o escopo desse artigo o aprofundamento jurídico do instituto -- ocorre que dito instituto, o IDC, vem sofrendo diatribes acerca da sua constitucionalidade, ao ponto mesmo de a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), já em meados de 2005, ter ajuizado uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), nº 3486, cujo Relator é o Ministro Sepúlveda Pertence, estando a mesma ainda em trâmite.
Basicamente, a referida Associação defende a inconstitucionalidade do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), alinhavando os seguintes principais argumentos:
1º) Porque viola a Cláusula Pétrea da Segurança Jurídica no Direito Penal (art. 5º inciso XXXIX), princípio segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, postulado básico advindo da doutrina penal moderna, desde o Marquês de Beccaria, em sua clássica obra “Dos Delitos e das Penas”. Nesse tópico, questiona-se o fato de a Emenda Constitucional não ter definido o que são crimes contra os direitos humanos e muito menos o que seja um crime grave contra os direitos humanos, uma vez que as leis penais devem ter conteúdo preciso, certo, delimitado, sendo inadmissíveis leis penais indeterminadas;
2º) Porque viola a Cláusula Pétrea do Juiz Natural (art. 5º incisos XXXVII e LII), segundo o qual “não haverá juízo ou tribunal de exceção” e “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Nesse tópico, questiona-se o fato de a Emenda Constitucional ter criado uma competência penal extravagante, discricionária e incerta, afeta à Justiça Federal, e, portanto, ex post facto, de acordo tão só com o juízo discricionário do Procurador Geral da República, a quem cabe suscitar o IDC com base em critérios genéricos como a gravidade da infração, de forma aleatória e sem prévia fixação legal – violando, portanto, a elementar noção de que a competência é um instituto de ordem pública, e que deve ser previamente estabelecida na lei, exaustiva e taxativamente;
3º) Porque viola a Cláusula Pétrea do Devido Processo Legal (art. 5º LIV), segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Nesse tópico, assesta-se que o processo penal a princípio será iniciado perante a Justiça Estadual, mas sempre haverá um “elemento surpresa”, isto é, a hipótese de o Procurador Geral da República, em qualquer momento, a seu exclusivo juízo, requerer o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), surpreendendo a todos os protagonistas da ação penal em curso (o Juiz, o Promotor e a Defesa), quando a partir daí a ação passará para a competência da Justiça Federal, gerando absoluta insegurança para a Justiça Penal Estadual.
4º) Porque viola a Cláusula Pétrea que fixa a competência do Júri Popular (ar. 5º XXXVIII), segundo o qual estabelece a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, quer sejam eles tidos como graves violações aos direitos humanos ou não. Nesse tópico, sustenta-se que as únicas exceções existentes para afastar a competência do Júri Popular são aquelas previstas pelo legislador constituinte originário, como, por exemplo, as decorrentes da prerrogativa de função e as previstas nos incisos V, IX e XI do art. 109 da Carta Magna, não podendo, por conseguinte, uma Emenda Constitucional limitar ou alterar a competência constitucional do Júri Popular;
Ademais, outros tantos argumentos poderiam ser lembrados na esteira daqueles que advogam a inconstitucionalidade do IDC – também a Associação Nacional do Membros do Ministério Público(Conamp) – isto é: a) a violação da cláusula pétrea do Pacto Federativo, por representar o IDC uma “intervenção branca” nos Estados, estranha pois às hipóteses de intervenção federal do artigo 36 da CF/88; b) violação da cláusula pétrea do Pacto Federativo, na medida em que cria uma espécie oblíqua de “Chefia do PGR sobre as PGJ´s”, como se num retorno nefasto ao vetusto instituto da avocatória e que, como tal, busca o fortalecimento do Estado Unitário, ou seja, em favor da União, em detrimento do Estado Federado.
Em síntese apertada, pois, esse é o cenário de polemicidade do IDC, de matriz constitucional, valendo-se registrar, todavia, que organizações não-governamentais de direitos humanos e organismos internacionais, assim como a Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) e a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) são favoráveis ao IDC e argumentam pela sua constitucionalidade.
Pessoalmente, filio-me à corrente que advoga pela inconstitucionalidade, principalmente ao argumento de que me custa a entender o que significa a expressão “crimes contra os direitos humanos”, ou melhor, o que seja “graves crimes contra os direitos humanos”! Para mim, às escâncaras, trata-se de uma manifesta norma penal indeterminada, ao ponto mesmo de os sequazes do IDC, dentre eles, a Professora Flávia Piovesan e o Procurador da República Vladimir Aras
[1], ainda não terem apresentado um preciso rol ideal de tipos penais classificados como graves crimes contra os direitos humanos, não obstante já tenham fixado, contudo, que os delitos contra crianças seja um deles.
A esse talante, ratifico: sou contra o IDC, por entendê-lo flagrantemente inconstitucional, baseado que é numa norma penal indeterminada, imprecisa, subjetiva, fluída, de conteúdo jurídico impalpável, e que sequer suporta uma indagação que tanto requesta minha consciência de julgador e de cidadão:
Ora, se qualquer delito contra criança é tido, pelos partidários do IDC, como um grave crime contra dos direitos humanos, por que então, até a presente data, o Senhor Procurador Geral da República não suscitou o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) para o caso do menino João Hélio, vítima de um crime muito mais bárbaro do que o da religiosa Dorothy Stang?
Porquanto, é aqui que reside a diferenciação de tratamento dados aos casos análogos, que inclusive teima em violar um majestoso brocardo jurídico: “ubi eadem ratio, idem jus”, ou seja, onde houver as mesmas razões, o mesmo Direito! Em verdade, apesar de serem crimes gravíssimos, violadores dos direitos humanos, penso que no caso da Missionária o Senhor Procurador Geral da República à época fora movido por forte pressão da mídia internacional e suscitou o IDC; diferentemente, no caso do menino João Hélio, o atual Senhor Procurador Geral da República se queda inerte e sequer aventa-se em suscitar o IDC, apesar da forte pressão da mídia nacional e do iniludível clamor social – importando em concluir que, tal diferenciação de tratamento jurídico para casos semelhantes somente reforça a tese da inconstitucionalidade do IDC, por se constituir numa evidente norma penal imprecisa, vária e indeterminada.
Alfim, em corolário, se notório é que a impunidade é um dos maiores males do Brasil, e que ela (a impunidade) é amiga íntima da violência – tal constatação de modo algum elide a obediência aos Princípios Constitucionais requestados, que fundam o Estado Democrático de Direito, e que por excelência implica na observância às regras de competência atuais, impondo assim que os processos sejam processados e julgados pela Justiça Penal Estadual, única competente para tanto!
BIBLIOGRAFIA
[1] ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os direitos humanos. Texto extraído do Jus Navigandi. http://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6762
[1] ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os direitos humanos.Texto extraído do Jus Navigandi. http://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6762