Sucessão do Companheiro no STF
Anderson Schreiber. Procurador do Estado do Rio de Janeiro.
Professor Adjunto de Direito Civil da UERJ. Doutor em Direito Privado Comparado
pela Università degli Studi del Molise (Itália). Mestre em Direito Civil pela
UERJ. Autor de várias obras, dentre elas Direitos
da Personalidade, Editora Atlas.
Todos os campos do Direito demandam segurança
jurídica, mas sua exigência é ainda maior no Direito das Sucessões. A
transmissão do patrimônio, por meio do seu fatiamento entre múltiplos
herdeiros, é fonte frequente de conflitos com os quais ninguém ganha: a longa
demora em inventários prejudica os herdeiros, que ficam privados dos bens a que
têm direito; prejudica o Estado, que fica privado dos tributos incidentes; e
prejudica diretamente a sociedade, abarrotando o Poder Judiciário com processos
que duram, em alguns casos, mais de uma década. É usual na advocacia sucessória
a percepção de que uma família só pode se dizer realmente unida se já tiver
passado por um inventário, tamanha a sua capacidade de fomentar disputas.
Daí a importância de que o Direito das Sucessões
não crie obstáculos adicionais, exprimindo-se sempre por normas claras e
objetivas. Qualquer dúvida de interpretação dá margem ao surgimento de
desacordos, que se mostram de difícil solução em um momento em que os ânimos
das partes se encontram à flor da pele, por força da perda dolorosa de um ente
querido, não raro o elemento unificador daquela família. O Código Civil
brasileiro de 2002 desviou-se dessa importante premissa, trazendo muitas normas
de redação ambígua, que suscitam dúvidas para os intérpretes no campo
sucessório. Exemplo notável é o art. 1.790, que cria regime peculiar para a
sucessão do companheiro, restrito a bens onerosamente adquiridos durante a
união estável. O dispositivo é fonte de um sem-número de discussões. Debate-se,
por exemplo, qual o destino do patrimônio da pessoa falecida se morre deixando
apenas bens recebidos a título gratuito (por doação, por herança etc.) e sem
deixar outros herdeiros (descendentes etc.) que não o companheiro. Na
literalidade do art. 1.790, o companheiro nada herdaria, mas o art. 1.844 do
mesmo Código Civil condiciona a atribuição dos bens ao Município à ausência de
“cônjuge, ou companheiro, nem parente algum sucessível”. Dividem-se os autores
quanto à solução do imbróglio.
Outro debate surge na hipótese de sucessão
híbrida, já que o art. 1.790 trata, em seus incisos I e II, das situações em
que o companheiro concorre com descendentes exclusivos do autor da herança ou
com descendentes do próprio companheiro, mas não da concorrência com prole
híbrida, ou seja, com descendentes exclusivos e comuns,
formando-se numerosas correntes para propor diferentes soluções para a omissão
normativa, inclusive com fórmulas matemáticas para identificar o percentual a
que faria jus o companheiro. Cenários assim tão fragmentados, que poderiam se
mostrar instigantes em outros campos do Direito, revelam-se devastadores no
campo das Sucessões, onde a ausência de uma diretriz clara acaba elevando a
conflituosidade post mortem e dificultando mesmo a disposição dos bens em vida,
tendo se tornado cada vez mais frequente na prática advocatícia a elaboração de
testamentos com cláusulas condicionadas à interpretação prevalente das normas
jurídicas. O Direito das Sucessões deixa, assim, de ser baliza, para se tornar
complicador.
Por essas razões, foi festejado por todos os
estudiosos do Direito Privado o início do julgamento pelo Supremo Tribunal
Federal, na sessão de 31 de agosto deste ano, do Recurso Extraordinário
878.694/MG, em que se discute a constitucionalidade do art. 1.790 do Código
Civil. O caso concreto envolve mulher que foi considerada herdeira universal de
seu falecido companheiro pelo juízo de primeira instância, o qual aplicou à
companheira, por equiparação, o regime sucessório do cônjuge (art. 1.829, I),
entendendo inconsitucional a diferenciação entre cônjuges e companheiros para
fins de atribuição da herança. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais reformou a
decisão, para atribuir à mulher um terço da herança, reservando o restante aos
três irmãos do de cujus, como ordena literalmente o art. 1.790, em
seu inciso III. O Recurso Extraordinário foi, então, interposto, sob o
argumento de que o art. 1.790 fere a isonomia constitucionalmente reconhecida
entre as diferentes entidades familiares, em especial entre o casamento e a
união estável.
O Relator Ministro Luis Roberto Barroso votou pela
procedência do recurso, concluindo que “no sistema constitucional vigente é
inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros,
devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1829
do Código Civil de 2002”. Em seu entendimento, o legislador pode atribuir
regimes jurídicos distintos ao casamento e à união estável, mas só será
legítima tal diferenciação “se não implicar hierarquização de uma
entidade familiar em relação à outra, desigualando o nível de proteção
estatal conferido aos indivíduos”. O voto do Relator foi acompanhado por
outros seis Ministros: Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux,
Celso de Mello e Cármen Lúcia, todos favoráveis ao reconhecimento da
inconstitucionalidade do art. 1.790.
O julgamento foi, porém, interrompido por um
pedido de vista do Ministro Dias Toffoli. Inventários e partilhas em todo o
Brasil encontram-se em compasso de espera, aguardando pela retomada do caso e
pela decisão final do STF. Registre-se que os Ministros que já se manifestaram
pronunciaram-se expressamente a favor da modulação temporal da futura decisão,
respeitando as partilhas já realizadas e restringindo o novo entendimento a ser
fixado pela Corte aos processos judiciais em que ainda não tenha havido
trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas
extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública. O
certo, todavia, é que, iniciado o julgamento da matéria, tornou-se temerário
realizar partilhas judiciais ou extrajudiciais nesse período em que a Suprema
Corte brasileira encontra-se na iminência de definir sua posição sobre o tema,
em sentido oposto à literalidade do art. 1.790 do Código Civil. Ao mesmo tempo,
com o julgamento em aberto, ainda é teoricamente possível que os Ministros
revejam suas posições, desconstituindo a aparente maioria. Diante disso, há
numerosas sucessões paralisadas em cartórios brasileiros, que vão se avolumando
a cada dia, enquanto todos aguardam ansiosamente a palavra final do STF.
Como lembrou Ana Luiza Nevares, professora de
Direito Civil e advogada que representou na causa o Instituto Brasileiro de
Direito de Família e o Instituto dos Advogados Brasileiros, o tema tem enorme
importância prática, já que “mais de um terço dos casais brasileiros vivem sob
união estável”. Se ao Direito das Sucessões não compete, repita-se, proliferar
incertezas, o mesmo se aplica à atuação dos seus intérpretes, convindo ao STF
proferir, o quanto antes, sua decisão final sobre essa matéria tão candente.
Andamento do RE 878.694/MG:
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