A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus
Carlos Eduardo Pianovski[1]
1. Valor da promessa e confiança legítima frente à grave perturbação objetiva do programa contratual
Tempos de pandemia, assim como tempos de guerra, geram, a par de seus devastadores efeitos sobre a vida, repercussões que se espraiam sobre a economia, afetando, obviamente, as relações contratuais.
Os contratos, como ensina a clássica lição de Roppo[2], antes de institutos jurídicos, são operações econômicas. O contrato é o instrumento por excelência da livre iniciativa, e, como tal, se a economia adoece, o contrato pode demandar o tratamento e a medicação proporcionais (e, portanto, necessários e adequados) a auxiliar as defesas ordinárias da liberdade e da criatividade dos agentes a debelar a enfermidade.
O Direito Contratual, em tempos de normalidade, define balizas inerentes à liberdade negativa, e garante a normatividade do exercício da autonomia privada, apontando para uma dimensão funcional que, prima facie, deve ser assecuratória e reprodutora da própria liberdade.[3] A força obrigatória dos contratos é, nesse contexto, a tônica, sendo sua mitigação apenas excepcional.
Em tempos de grave crise, porém, o espaço para a exceção se amplia, diante do caráter também excepcional dos eventos que repercutem na economia dos contratos, ora inviabilizando seu adimplemento, ora oferecendo desproporcionais dificuldades para a realização integral de seu programa. A grave perturbação no processo obrigacional (para empregar a consagrada tese de Couto e Silva), impondo-se de fora para dentro à esfera jurídica dos contratantes, pode, legitimamente, implicar a modificação dos efeitos que, ordinariamente, seriam esperados do contrato.
O duplo pilar sobre o qual se assenta o princípio da força obrigatória dos contratos - que consiste no valor jurídico da promessa e na confiança legítima - é como uma moeda com suas duas faces, trazendo, em si mesmo, os fundamentos para a mitigação da eficácia do princípio.
A promessa, que se faz no exercício da liberdade econômica – inevitavelmente associada à autorresponsabilidade do agente livre - se faz sempre contextualizada, podendo ter seus efeitos suspensos ou, mesmo, afastados, em situações extremas que extrapolem o amplo espaço de riscos normais que é inerente ao contrato na economia capitalista. A autorresponsabilidade derivada do exercício livre da promessa pode ceder em contextos novos e excepcionais, que inviabilizem objetivamente seu cumprimento, ou o dificultem radicalmente.
Da mesma forma, a confiança legítima, que oferece à força obrigatória seu fundamento de alteridade, também é contextualizada. Os mesmos fatos que podem retirar da promessa, de per se, a cogência moral e jurídica sob a perspectiva da liberdade individual, também podem repercutir na qualificação da confiança, a impor ao outro contratante não apenas a sujeição à suspensão da exigibilidade de dadas prestações, como o dever de renegociar os contratos, a sua modificação heterônoma pelo Judiciário ou pelo juízo arbitral, ou, ainda, no limite, a sua resolução por onerosidade excessiva.
Em tempos de exceção, vêm à tona instrumentos que, apesar de consagrados de longa data pelo Direito Civil, são, também, excepcionais, como o remédio que somente deve ser ministrado enquanto a doença perdurar.
A adequação e a dosagem dos medicamentos podem, porém, concretamente, variar de contrato para contrato.
Não é possível, pois, ceder à tentação de afirmar que a crise – mesmo com a indisfarçável gravidade como a, hoje, gerada pelo COVID-19 – terá repercussões sobre a eficácia de todos os contratos. Tampouco se pode afirmar que, sobre os contratos que demandam os remédios que mitigam sua força obrigatória, os instrumentos serão os mesmos, ou terão a mesma extensão eficacial.
A repercussão da crise do COVID-19, que se antevê como longa, é de difícil mensuração e previsão, e reivindicam inevitável análise casuística. Esta, porém, deve seguir as balizas do ordenamento jurídico, e, nesse sentido, a reflexão sobre os remédios jurídicos pede, como ponto de partida, o cuidado técnico com o seu emprego.
2. A imputabilidade do incumprimento e a descaracterização da mora
Uma questão imediata que vem à tona diante do cenário de pandemia é o cumprimento pontual das obrigações em curso. Apesar da repercussão generalizada dos efeitos da COVID-19 sobre a vida das pessoas, não é possível afirmar, genericamente, que a exigibilidade das prestações contratuais está suspensa, com a cessação dos efeitos da mora.
Examinar mora é avaliar imputabilidade objetiva.
Há obrigações que permanecem exigíveis, diante da ausência de repercussão efetiva de força maior ou fato do príncipe que afaste a possibilidade razoável de cumprimento tempestivo. A impossibilidade de adimplemento é aferível não pelo fato externo em si, mas pela repercussão deste na esfera jurídica do devedor, sempre forte nos baldrames de alocação de riscos definidos pelo contrato.
Nessa linha, pode-se concluir que, ao menos neste momento, boa parte das obrigações pecuniárias se enquadra nesse âmbito em que a exigibilidade se mantém, sempre a depender, obviamente, da aferição concreta sobre a esfera jurídica do devedor, com especial atenção, nos contratos empresariais, nas repercussões objetivas ensejadas pela pandemia em sua atividade econômica.
Não é difícil, de outro lado, aferir a inimputabilidade do não cumprimento tempestivo de dadas obrigações referentes a atividades econômicas cujo exercício tenha sido suspenso por determinação estatal. Obrigações de fornecimento, ou de entrega de coisa certa, impostas a agentes econômicos que tiverem suas atividades suspensas, seja por proibição de circulação de pessoas, seja por ordem estatal, podem ter, efetivamente, sua impontualidade marcada pela inimputabilidade, afastando os efeitos próprios da mora.
O mesmo se diga sobre serviços não essenciais que não possam ser prestados razoavelmente por meio remoto, e que sejam inviabilizados por restrições à movimentação de pessoas. A impossibilidade objetiva retira a imputabilidade, e, portanto, desnatura a mora e seus efeitos.
3. O caráter extraordinário e imprevisível dos efeitos da pandemia e sua repercussão na revisão e na resolução contratual
A experiência jurisprudencial brasileira na aplicação dos artigos 317 e 478 do Código Civil tem se dirigido, historicamente, ao correto prestígio à força obrigatória dos contratos, e do caráter excepcional da revisão e da resolução contratual com base na teoria da imprevisão – que pode decorrer da interpretação sistemática dessas regras.
Com efeito, mais fácil é a identificação da referência jurisprudencial às normas que regem a matéria por meio de decisões que apontam a inviabilidade da revisão contratual do que naquelas que a autorizam.[4]
O contexto da grave crise que deriva da pandemia, porém, poderá vir a ser campo fértil para pôr à prova a aplicação dessas regras.
O ponto de partida para a adequada compreensão da viabilidade da resolução ou da revisão contratual pelo juiz ou pelo árbitro, sob o fundamento da onerosidade excessiva, reside no sentido que se pode atribuir ao conceito de fato superveniente extraordinário e imprevisível.
Não basta, para a revisão contratual, que o fato, em si mesmo, exceda consideravelmente os riscos normais do negócio (caráter extraordinário) e não seja passível de razoável antecipação pelos contratantes momento da celebração da avença (imprevisibilidade), mas é necessário que os efeitos concretos do evento na economia do contrato também detenham essas características. A rigor, mais do que o fato em si, importa aferir o caráter extraordinário e imprevisível dos efeitos do fato sobre as esferas econômicas dos contratantes, e, notadamente, sobre o programa contratual.
Essas repercussões serão variáveis caso a caso, conforme as características das obrigações em jogo. Assim como as revisões contratuais serão, por certo, mais frequentes do que em tempos de normalidade social e econômica, haverá contratos que, mesmo com elevada repercussão na equação econômico-financeira, não poderão ser revisados, pois os efeitos concretos do evento pandemia integrarão o âmbito dos riscos normais do negócio (não se tratando, pois, de efeito extraordinário sobre a avença, a despeito do fato extraordinário da própria pandemia).
Mais uma vez, a aferição somente poderá ser realizada caso a caso, pautando-se na correta e técnica aplicação dos parâmetros normativos.
4. Da cláusula de hardship e do dever de renegociação derivado da boa-fé
As medidas terminativas ou de revisão contratual devem ser sempre balizadas pelo princípio da boa-fé contratual. Não por acaso, a confiança legítima, que integra o binômio constitutivo do princípio, é um dos pilares da força obrigatória dos contratos (ao lado do valor jurídico da promessa).
Em lúcido artigo publicado neste espaço, Anderson Schreiber, ao ressaltar a necessária preservação da força obrigatória dos contratos, aponta, como corolário da boa-fé, o dever de renegociar.
Com efeito, tal dever pode tanto ser previsto contratualmente em cláusula de hardship[5], como derivar diretamente da função integrativa da boa-fé.
Medidas interventivas devem ser precedidas do cumprimento do dever de renegociar – e o não atendimento desse preceito, em situação de grave crise, pode gerar repercussões a balizar a própria intervenção judicial, podendo, no limite, implicar o não atendimento de pretensões de modificação ou extinção de contratos, por violadoras à boa-fé objetiva.
O dever de renegociar, derivado da boa-fé, é consonante com o valor da liberdade contratual – que se fundamenta, em última instância, na própria livre-iniciativa.
A aposta constitucional na liberdade dos agentes privados não é eliminada, mesmo em momentos de grave crise.
Daí a necessidade de se refletir sobre o sentido e os limites da intervenção estatal nos contratos, tanto no grave contexto presente, quanto no momento pós-crise.
5. Dos limites da intervenção estatal nos contratos: preocupações sobre o pós-crise
As reflexões até aqui traçadas se pautam, cabe ressaltar, no ordenamento posto. Novas iniciativas legislativas para a imposição de remédios emergenciais e transitórios não são, porém, de se descartar, a depender da gravidade e da extensão dos efeitos econômicos da crise – especialmente diante de repercussões dotadas de considerável grau de generalidade.
A intervenção corretiva, que permita a manutenção de contratos como um respirador artificial a insuflar os pulmões da livre iniciativa, pode ser não apenas aceitável como pode se tornar indispensável para a preservação das relações econômicas, permitindo, em momento posterior, que a liberdade e a inventividade dos agentes privados complete as condições para a cura.
Não se pode desconsiderar, ainda, que medidas estatais mitigatórias, que não afetam diretamente contratos, mas protegem e asseguram o prosseguimento de dadas atividades, podem ser elementos relevantes para a aferição da presença ou não de requisitos aptos a ensejar revisão contratual ou suspensão da exigibilidade de obrigações, nos termos anteriormente expostos neste texto.
Instrumentos de Direito Civil para mitigar a força obrigatória podem vir a ter, portanto, sua eficácia afastada em dados casos, nos quais a atuação estatal tenha viabilizado razoavelmente a manutenção do regular cumprimento das obrigações.
A atuação estatal, em momento de grave crise, não deve vir, pois, como dirigismo universal ou contraposição à liberdade dos particulares, mas, sim, como instrumento à preservação das condições de possibilidade dessa mesma liberdade, e viabilização de sua reprodução.
A intervenção estatal com medidas de exceção somente se justifica – com o perdão da obviedade - quando a situação excepcional está presente, e deve ser sempre, reitere-se, proporcional às necessidades dos agentes econômicos, em benefício da higidez da livre iniciativa e do valor do trabalho.
Não há que se confundir as medidas de preservação das atividades econômicas por meio da modificação ou suspensão dos efeitos de contratos com intervencionismo estatal ou paternalismo desmedido.
Cessada a fase crítica da crise, inevitável deverá ser a reafirmação da força obrigatória dos contratos, como instrumento a gerar a necessária segurança que, em si mesma, é incentivo à atividade econômica.
No pós-crise, é necessário reforçar a aposta na livre iniciativa, cujo valor social é intrinsecamente reconhecido como fundamento da República. Que o vírus da pandemia, após debelado, não se converta no vírus do desmedido dirigismo.
[1] Professor de Direito Civil da UFPR. Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Membro-fundador do IBDCont. Advogado. Árbitro.
[2] ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 2009.
[3] Permitimo-nos remeter a PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s). Rio de Janeiro, GZ, 2011
[4] Relevante exemplo pode ser colhido no REsp 945.166 - GO, assim ementado: DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE SAFRA FUTURA DE SOJA. CONTRATO QUE TAMBÉM TRAZ BENEFÍCIO AO AGRICULTOR. FERRUGEM ASIÁTICA. DOENÇA QUE ACOMETE AS LAVOURAS DE SOJA DO BRASIL DESDE 2001, PASSÍVEL DE CONTROLE PELO AGRICULTOR. RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA. IMPOSSIBILIDADE. OSCILAÇÃO DE PREÇO DA "COMMODITY". PREVISIBILIDADE NO PANORAMA CONTRATUAL. (STJ – Relator Ministro Luiz Felipe Salomão – Dje: 12/03/2012).
[5] Sobre o tema, GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua conservação: lesão e cláusula de hardship. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2008.
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