Devagar com o Andor: Coronavírus e Contratos.
Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional
Anderson Schreiber. Professor Titular de Direito Civil da UERJ. Fundador e Diretor do IBDCONT. Advogado, consultor jurídico e parecerista.
Multiplicam-se, nos últimos dias, artigos jurídicos sobre o impacto do coronavírus nas relações contratuais. A maioria dos textos qualifica a pandemia como “caso fortuito ou força maior”, concluindo, a partir daí, que os contratantes não estão mais obrigados a cumprir seus contratos, nos termos expressos do artigo 393 do Código Civil brasileiro.[1] Outros preferem qualificar o espantoso avanço do novo coronavírus como “fato imprevisível e extraordinário”, invocando o artigo 478 do Código Civil[2] para deixar ao contratante a opção de extinguir o contrato ou exigir sua revisão judicial.
Há, nos dois casos, um erro metodológico grave, que se tornou comum no meio jurídico brasileiro: classificar os acontecimentos em abstrato como “inevitáveis”, “imprevisíveis”, “extraordinários” para, a partir daí, extrair seus efeitos para os contratos em geral. Nosso sistema jurídico não admite esse tipo de abstração. O ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade. É preciso, antes de se qualificar acontecimentos em teoria, compreender o que aconteceu em cada contrato: houve efetivamente impossibilidade de cumprimento da prestação pelo devedor? Ou – hipótese que será necessariamente diversa – houve excessiva onerosidade para o cumprimento da prestação? Ou houve, ainda, algum impacto diverso sobre a relação contratual (como a frustração do fim contratual, o inadimplemento antecipado etc.)? Ou não houve, como é possível, impacto algum? São situações completamente distintas que somente podem ser aferidas à luz de cada contrato e é somente após a verificação do que ocorreu em cada relação contratual que se deve perquirir a causa (ou as causas) de tal ocorrência.
Em outras palavras: é somente à luz da impossibilidade da prestação específica de um contrato que se pode cogitar, tecnicamente, de caso fortuito ou força maior para fins de liberação do devedor. E o mesmo vale para acontecimentos ditos extraordinários ou imprevisíveis, noção que somente faz sentido juridicamente diante da aferição específica de excessiva onerosidade para o cumprimento de um determinado contrato.[3] Não se pode classificar acontecimentos – nem aqueles gravíssimos, como uma pandemia – de forma teórica e genérica para, de uma tacada só, declarar que, pronto, de agora em diante, todos os contratos podem ser extintos ou devem ser revistos.
Aliás, mesmo nos casos concretos em que houver impossibilidade ou excessiva onerosidade, não será necessariamente a pandemia em si o evento que afeta o contrato. Em muitos casos, o impacto nos contratos está sendo gerado por restrições adotadas pela Administração Pública – fato do príncipe, na expressão consagrada na tradição publicista – em virtude da pandemia. São essas restrições e sua influência sobre cada contrato que precisam ser analisadas individualmente. E mais: mesmo quando se estiver diante de situações de impossibilidade do cumprimento da prestação ou de excessiva onerosidade para o seu cumprimento, como ocorre, por exemplo, com contratos de transporte diante de fechamento de fronteiras e outras restrições à circulação de pessoas, é preciso ter muito cuidado com fórmulas generalizantes ou soluções em abstrato, especialmente aquelas que podem ser invocadas para embasar o descumprimento de contratos em meio a um cenário de crise.
Como diz o sábio provérbio, surgido nas procissões religiosas realizadas no interior do Brasil: “devagar com o andor que o santo é de barro”. A queda acentuada das bolsas de valores, associada à baixa dos preços do petróleo, e outros tantos fatores negativos que se associaram naquilo que muitos já consideram uma “tempestade perfeita”, pode tornar desinteressante a preservação de muitos contratos já firmados. Nem por isso se terá aí fundamento jurídico para rompimento ou mesmo para revisão do contrato, se não houver impacto econômico direto sobre as prestações devidas. Não custa lembrar que, para a economia em geral e para a própria preservação das relações sociais, é imprescindível que a maior parte dos contratos já firmados seja mantida e que as prestações devidas sejam cumpridas. O adequado abastecimento dos centros urbanos, para ficar em apenas um exemplo, depende fundamentalmente disso. O velho pacta sunt servanda não merece ataques desnecessários nesse momento.
A propósito, convém registrar que, mesmo no âmbito daqueles contratos cujas prestações sejam economicamente afetadas pelas restrições a todos impostas neste momento, antes de qualquer pleito revisional deve-se recorrer à boa-fé objetiva e ao dever de renegociar. Soluções alternativas podem e devem ser encontradas pelos próprios contratantes para preservar o cumprimento de seus contratos, tanto mais na situação que estamos vivendo, em que o Poder Judiciário, em funcionamento restrito, deve ser acionado apenas para situações realmente urgentes. Extinção de vínculos contratuais e revisão judicial de contratos são remédios extremos que as partes têm o dever de evitar sempre que possível, diante do imperativo de mútua cooperação e lealdade que deriva do artigo 422 do Código Civil brasileiro e do princípio constitucional da solidariedade social (art. 3º, I).
A pandemia já está exigindo de todos nós – e promete exigir ainda mais – sacrifícios pessoais e econômicos. É hora de suportarmos todos, na medida das nossas forças, esses sacrifícios. À ciência jurídica compete servir de instrumento para soluções que preservem, tanto quanto possível, os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros e as bases econômicas necessárias para que esses direitos sejam exercidos em sua máxima intensidade. Para isso, é importantíssimo preservar tanto quanto possível os contratos já celebrados, evitando o risco real de que, em um cenário de crise, os instrumentos jurídicos sejam manipulados de modo oportunista por aqueles que não têm real necessidade de aplicá-los.
[1] “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
[2] “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.” A revisão judicial do contrato encontra, por sua vez, amparo no artigo 317 do Código Civil, consoante interpretação amplamente majoritária na doutrina brasileira.
[3] Sobre o tema, seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 202 e seguintes.
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