domingo, 22 de março de 2020

ENCARGOS MORATÓRIOS, CORONAVÍRUS E A BOA-FÉ OBJETIVA. ARTIGO DE MARCELO MATOS AMARO DA SILVEIRA

ENCARGOS MORATÓRIOS, CORONAVIRUS E A BOA-FÉ OBJETIVA
MARCELO MATOS AMARO DA SILVEIRA*
Data: 22 de março de 2020
1. INTRODUÇÃO
Vivemos um momento de instabilidade de proporções inimagináveis causada pela proliferação do coronavirus ou covid-19, situação que foi declarada como pandemia pela OMS no último dia 11 de março de 2020[1]. Trata-se de uma crise de saúde pública sem precedentes e de escala global, que surgiu na China no final do ano passado, e se alastra por diversos países, com particular impacto na Itália, que vê a cada dia o número de infectados e mortes pelo vírus subir[2]. No Brasil temos visto no último mês a chegada e rápida proliferação da doença, sendo certo que os números oficiais já apontam para mais de 1.100 pessoas contaminadas e quase duas dezenas de mortos[3].
Considerando essa realidade, e as orientações das autoridades públicas nacionais e internacionais, especialmente da OMS, temos visto nessa última semana diversas medidas sendo tomadas pelos entes privados e publicos, com vistas a impedir a disseminação do covid-19. A principal medida a ser tomada é inegavelmente o confinamento, sendo fundamental que todos aqueles que tem condições para tanto permaneçam em casa. A expressão #fiqueemcasa já se tornou um verdadeiro mantra do momento em que estamos vivenciando, e vem sendo acatada por boa parte da população brasileira, principalmente nas grandes cidades.
Neste sentido é fundamental destacar o esforço de empresas e escritórios de advocacia para direcionarem os seus colaboradores para o home office. Também devemos aplaudir as iniciativas tomadas por algumas prefeituras e governos estaduais, como forma de evitar que aglomerações de pessoas ser formem, como é o caso de Belo Horizonte[4], onde um decreto municipal suspendeu os alvarás de funcionamento de centros comerciais, restaurantes, cinemas, teatros, clubes recreativos, academias etc. Alguns Governos estaduais também se movimentam e por exemplo estabeleceram restrições ao transporte interestadual, medida que até pode ser discutível do ponto de vista legal e constitucional, mas que está efetivamente sendo tomada[5].
Sem dúvidas a situação é de conhecimento amplo e irrestrito da população brasileira, e está integralmente voltada para a proteção da saúde pública. Mas quais serão os impactos econômicos que essas medidas terão? Qual será o peso em cima da produção econômica nos mais diversos setores? E principalmente, como isso irá impactar as relações jurídicas existentes no Brasil e no mundo?
As questões parecem ter relevância diminuta nesse momento, pois o mais importante agora é “cuidar da saúde”, mas algumas considerações já podem começar a ser esboçadas, especialmente quanto às relações contratuais. E nesta semana diversos textos interessantíssimos passaram a ser produzidos analisando os impactos da pandemia do Covid-19 nas relações contratuais.
O professor Carlos Elias de Oliveira[6], discorrendo sobre as mais modernas regras de interpretação contratual e sobre a chamada "exceção de pre-vencimento", defende corretamente, ao nosso sentir, a possibilidade de quebra antecipada não culposa de certos contratos e a possibilidade de revisão contratual em razão do problema de saúde pública que estamos vivenciando. Também defendendo a revisão contratual como remédio mais adequado para esse momento, a professora Aline Valverde Terra[7] analisa o impacto da pandemia nas relações locatícias em shopping centers, destacando “impossibilidade superveniente parcial e temporária” do objeto contratual. Um outro texto bastante interessante é do professor Felipe Quintella[8], que avalia a possibilidade de aplicação das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva nas relações contratuais por conta da pandemia do coronavírus.
Os ângulos de análise sobre o assunto podem ser os mais variados, sendo possível tanto avaliações gerais quanto pontuais em relação às mais diversas hipóteses de relações contratuais. Os impactos são verdadeiramente incontáveis e muitas vezes impossíveis de serem previstos. O nosso objetivo no presente artigo, contudo, é mais modesto. Buscamos avaliar como deve ser encarado o inadimplemento pontual (especialmente mais não limitado ao temporal) das obrigações e a aplicação dos encargos moratórios no presente momento sob o prisma da boa-fé objetivo.
 2. NOTAS SOBRE ENCARGOS MORATÓRIOS
No cenário que estamos vivenciando não parece ser difícil imaginar que um dos principais impactos sentidos nas relações contratuais será o inadimplemento pontual das obrigações, principalmente aquelas que envolvem as prestações de fato e com o pagamento de valor pecuniário. Nesse contexto de instabilidade que se instala diversas obrigações não poderão ser adimplidas no tempo, no local ou da forma convenciona pelas partes. E por conta disso a discussão sobre os encargos moratórios têm total pertinência. Nos voltamos, portanto, aos dois principais e mais comuns: a cláusula penal moratória e os juros moratórios
A cláusula penal, partindo-se de uma visão mais geral, é um pacto acessório a uma obrigação em que o devedor se compromete a realizar uma prestação diversa da assegurada, cujo conteúdo é usualmente pecuniário, que deverá ser prestada caso ocorra o incumprimento dessa obrigação que seja por fato a ele imputável[9]. A figura está regulamentada no Código Civil Brasileiro nos art. 408 a 416, no capítulo destinado à disciplina das consequências do inadimplemento das obrigações. A estipulação da cláusula penal depende necessariamente da declaração de vontade das partes, uma vez que é um negócio jurídico.
Tradicionalmente a cláusula penal é separada em duas modalidades (usualmente referidas pela doutrina como espécies) que não leva em conta os seus efeitos e funcionamento, existindo uma modalidade compensatória e uma modalidade moratória[10]/[11]. Grosso modo, é possível falar que a primeira se presta a tutelar o incumprimento absoluto da obrigação, enquanto a segunda serve para definir consequências quando é verificado o inadimplemento pontual da obrigação. A referida divisão consta do nosso Código Civil, que estabelece diferentes dinâmicas de funcionamento para cada uma das modalidades de cláusula penal, compensatória ou moratória.
A nossa analise se volta exclusivamente para a cláusula penal moratória, que é aquela destinada estabelecer uma sanção quando há mora no cumprimento da obrigação e que está disciplinada no artigo 411 do CC/02. Segundo esse artigo a “multa” moratória funciona cumulativamente com o cumprimento ou indenização por incumprimento, podendo ser exigida em conjunto com o cumprimento forçado ou com as perdas e danos[12].
Já os juros legais ou moratórios são parcelas que se acrescem à obrigação principal quando for verificado o inadimplemento pontual da obrigação, sendo sua função principal sancionar o devedor pelo incumprimento. Estão disciplinados no Código Ccivil no 406 e 407 do código civil também no capítulo que disciplina das consequências do inadimplemento das obrigações. É uma figura que é aplicada por fruto da lei, mas que também pode ser convencionada pelas partes, conforme estabelece o primeiro artigo mencionado. Mas a existência de convenção só tem relevância em relação à taxa a ser aplicada.
Isto porque, conforme estabelecido no outro artigo mencionado, os juros são devidos a partir da mora e mesmo que o devedor sofra qualquer prejuízo em função da mora do devedor, possuindo inegável função punitiva[13] e natureza de pena privada. Eles são diversos dos chamados juros compensatórios ou remuneratórios, que servem para remunerar os bens do credor que foram livremente entregues para o devedor, como no caso dos mútuos feneratícios.
A partir da noção geral das figuras apresentada acima é possível identificar que ambas são acessórias e possuem em comum uma condição de eficácia. As figuram não encetam uma obrigação autônoma, mas sim acessória, dependentes de uma obrigação principal. Além disso a eficácia e funcionamento destas estão condicionados a um fato incerto e futuro, qual seja, o inadimplemento pontual da obrigação assegurada.
Somente se for verificado o inadimplemento da obrigação os efeitos sancionatórios da cláusula penal e dos juros com cariz moratório serão verificados. Neste sentido é fundamental apontar dicção dos artigos 389, 394 e 395 do Código Civil, que estabelecem que quando verificado o inadimplemento pontual da obrigação, ou seja, a mora do devedor, ele deve responder pelos prejuízos (e/ou cláusula penal), acrescido de juros, atualização monetária e honorários advocatícios. Importante destacar que no direito brasileiro a mora do devedor se refere ao inadimplemento quanto ao tempo, lugar e forma estabelecida[14], ou em caso de cumprimento inexato[15], ou seja, não é um elemento exclusivamente voltado para o atraso na realização da prestação acordada.
Mas não basta que o inadimplemento pontual da obrigação seja verificado para que os encargos moratórios produzam seus efeitos. O inadimplemento deve necessariamente se dar por fato imputável ao devedor, ou seja, com culpa. Essa é a noção que se retira da leitura atenta dos artigos 396 e 408 do Código Civil. Deve ser verificada a culpa do devedor no inadimplemento, sendo que ele dê causa ao fato ou omissão que levou à não realização da prestação. Ainda que a culpa nas relações contratuais seja presumida, bastando que inadimplemento ocorra para que o devedor esteja em mora, ela deve existir, já que se está diante de uma presunção juris tantum, que é passível de afastamento caso seja produzida prova em contrário[16]. Além disso, afastam-se os efeitos da mora nas hipóteses de caso fortuito ou força maior, nos termos do art. 393 do Código Civil.
Verificada a mora do credor, que por exemplo não realiza o pagamento da mensalidade escolar no prazo acordado, ou não realiza a entrega da mercadoria no local onde deveria, os efeitos dos encargos moratórios podem ser verificados. Esses efeitos, como já ficou evidenciado, são cumulativos. O inadimplemento pontual, portanto, cria para o credor o direito de exigir a realização da prestação acrescida da cláusula penal e dos juros moratórios (ou as predas e danos acrescidos dos encargos). Essa noção, nos parece, é de suma importância. Os encargos moratórios são um direito do credor, que pode ou não os exigir. Mais que isso, acreditamos que se trata de um direito subjetivo do credor.
O direito subjetivo confere a seu titular a possibilidade de exercer um poder concedido por uma norma ou, no caso em questão, por um acordo, sendo que seu exercício significa o aproveitamento de certo bem jurídico, conforme ensinam Menezes Cordeiro e Larenz[17]. Assim, podemos afirmar que a aplicação dos encargos moratórios é um direito subjetivo do credor[18]. Isto significa dizer que ao mesmo tempo que ele tem uma grande discricionariedade para exercer esse direito, e aos mesmo está também vinculado a normas e limites de controle que precisam ser observados.
 3. AS HIPÓTESES DE MORA EM RAZÃO DO COVID-19 E A INAPLICABILIDADE DOS ENCARGOS MORATÓRIOS
Até o presente momento já foi realizada uma pequena introdução à situação que estamos vivendo e apresentadas breves notas sobre os encargos moratórios (a cláusula penal e os juros). Como já destacamos a situação de instabilidade atual faz com que imaginemos um aumento significativo do inadimplemento pontual das obrigações, que podem se dar por diversos motivos. Considerando esse contexto, será que é possível enquadrar o atraso no pagamento ou falha na prestação como mora do devedor? E mais, a aplicação dos encargos moratórios como direito subjetivo do credor é possível na atual situação?
Para responder essa questão pensamos ser interessante separar a análise em dois grupos de casos: 1) impossibilidade do cumprimento pontual por conta da pandemia do covid-19; 2) dificuldade no cumprimento pontual por conta da pandemia do covid-19.
O primeiro grupo de casos é o de solução mais simples. Trata-se de um conjunto de situações que foram brilhantemente abordadas pelos autores citados na introdução do presente texto, e que envolve o inadimplemento pontual das obrigações por motivos não imputáveis ao devedor. São os casos em que há impossibilidade superveniente parcial e temporária do objeto da prestação.
Carlos Elias de Oliveira nos apresenta um caso que exemplifica muito bem a hipótese. Imaginem um contrato de investimento para constituição de um restaurante na cidade de Belo Horizonte, cuja abertura foi acordada para o dia 25 de março, sendo que de um lado temos um investidor e do outro um executor. Considerando a situação vivida, o cumprimento desse prazo se torna impossível por fato absolutamente alheio à vontade do executor. Não há culpa nesse caso, pois o executor está impedido de realizar sua prestação, qual seja, entregar o restaurante em pleno funcionamento no dia acordado.
Como vimos, a culpa é um elemento essencial da mora, sem ele os efeitos dela não são verificados, somente podendo ser apontado um simples atraso ou inexatidão na realização da prestação[19]. A impossibilidade de realizar a prestação, portanto, afasta a culpa do executor. Nesse sentido, caso exista nesse suposto contrato uma multa moratória de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) e juros de 1% (um por cento) ao mês sobre o valor do investimento, incidentes em caso de atraso na entrega do restaurante, essa aplicação fica obstada por inexistir um inadimplemento pontual culpável do devedor. A aplicação da “multa” moratória exige a verificação da ampla culpa do credor[20], e tal acepção também deve ser aplicada aos juros.
Os casos enquadrados no grupo são aqueles em que não será verificada a mora do devedor, já que o inadimplemento se dá sem sua culpa. Nesses casos não é possível que o credor aplique os encargos moratórios que foram pactuados ou que decorrem da lei. Eles serão especialmente verificados para atividades que estão impedidas de serem realizadas ou com severas restrições, e que são afetadas pelo chamado fato do príncipe[21]. Em conclusão parcial podemos afirmar que sem culpa não há mora, e sem mora os encargos não podem ser aplicados.
Nos voltamos em seguida ao segundo grupo de casos que vislumbramos, que envolve a o inadimplemento pontual em razão de dificuldades causadas pela pandemia do covid-19. Esse nos parece o grupo que envolve a maior quantidade de casos e hipóteses, e que pode ocorrer não só durante a pandemia, mas também quando esta se dissipar. Aqui cogitamos não o inadimplemento pela impossibilidade da prestar em si, mas o inadimplemento resultante da dificuldade na prestação.
Nesses casos estaremos diante de uma mora do devedor, pois o inadimplemento será com culpa. Mas será que mesmo diante dessa situação de mora do devedor será possível que o credor exija os encargos moratórios? Entendemos que não!
Como exemplo nos valemos da situação analisada no artigo da Professora Aline Valverde Terra, as locações em shopping centers. A loja localizada em um shopping center em Belo Horizonte ficará, a princípio, até o final de março sem funcionar, e consequentemente sem faturar. Desta forma, sem dúvidas terá dificuldades para pagar em dia a conta de telefone e internet junto à prestadora dos serviços. A cobrança pela telefônica da “multa” e dos juros previsto no contrato pelo atraso no pagamento, neste caso, nos parece abusiva.
Considerando nossa defesa quanto ao enquadramento dos encargos moratórios como um direito subjetivo do credor, nossa posição não poderia ser outra. A aplicação dos encargos moratórios em caso de inadimplemento pontual decorrente das dificuldades vividas nos momentos atuais consiste em inequívoco abuso de direito, em literal violação aos ditames do 187 do Código Civil. Isto significa dizer que aparentemente o exercício do direito será regular, mas no fundo ele será realizado em contradição aos valores normativos e os deveres de conduta que emanam da boa-fé objetiva[22].
Sempre é bom lembrar que as relações contratuais estão permeadas pela boa-fé objetiva em suas mais variadas facetas, conforme dispõe o art. 422 do Código Civil. Defendemos que o parâmetro máximo de controle da cláusula penal é a cláusula geral de boa-fé[23], que também deve ser aplicada no controle dos juros moratórios. Sendo inegável que esses parâmetros normalmente justificaram um controle valorativo, especialmente voltadas aos limites legais para ambas as figuras[24] (e a possibilidade de redução equitativa da cláusula penal – art. 413 do Código Civil), eles também podem atuar na própria aplicação dos encargos. Nesse sentido, o controle da cláusula penal (e dos juros) surge como um dos principais exemplos da positivação da função corretora da boa-fé nos ordenamentos jurídicos[25].
Ao exercer esse direito subjetivo o credor deve observar os parâmetros da boa-fé objetiva, já que na aplicação dos encargos moratórios o credor está exercendo uma posição jurídica, que deve ser equilibrada segundo os parâmetros emanados dessa cláusula geral. Nesse sentido, Menezes Cordeiro ensina que uma das hipóteses de desequilíbrio na posição jurídica ocorre quando da “desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem”[26]. Cobrar os encargos significa um sacrifício bastante desequilibrado o que viola os parâmetros da boa-fé, especialmente considerando os deveres de cooperação e lealdade e o dever de proteção que são corolários dessa figura.
O primeiro conjunto de deveres é violado pois a exigência de “multa” e juros” no atual momento não se coaduna com os princípios da ética contratual, e prejudica que o programa contratual se mantenha destinado à sua finalidade precípua, que é o adimplemento satisfatório[27]. Cobrar os encargos moratórios hoje em razão de um atraso no pagamento de uma parcela do financiamento do carro pode fazer com a próxima parcela não seja paga tão cedo.
O segundo conjunto de deveres, também chamados de laterais, é violado à medida que a cobrança dos encargos moratórios imputa um sofrimento (ou dano) ao devedor, que está em dificuldades para cumprir com sua obrigação em razão da pandemia do Covid-19. Não é observado no caso o dever de abstenção ao agravamento das prestações, sendo violado os interesses de proteção[28].
Nesse conjunto de casos em que for verificado o inadimplemento por conta das dificuldades causadas pela pandemia do covid-19 a cobrança dos encargos moratórios representará um abuso de direito. Deve-se, portanto, reconhecer essa abusividade e obstar que a multa e os juros sejam cobrados, cabendo ao credor apenas o direito à prestação acordada[29]. Essa é, inclusive, exatamente a orientação contida no enunciado 617 da VIII Jornada de Direito Civil do CJF, que tivemos a honra de participar. O enunciado, que teve nosso voto favorável no votação feita no plenário do encontro, dispõe que:
O abuso do direito impede a produção de efeitos do ato abusivo de exercício, na extensão necessária a evitar sua manifesta contrariedade à boa‐fé, aos bons costumes, à função econômica ou social do direito exercido.[30]
Em suma, nesse conjunto de casos a mora será verificada, mas os seus efeitos não. A boa-fé objetiva na sua função corretiva irá entrar em campo e impedir o ato abusivo ocorra. Exigir a realização da prestação será possível nesse caso, mas a cobrança de “multa” e juros moratórios excede os limites da boa-fé, e, portanto, esse efeito da mora deve ser impedido.
4. CONCLUSÃO
Em conclusão é possível apontar que a situação hoje vivida é absolutamente extraordinária, e as consequências futuras são incertas. Contudo, nos parece possível afirmar que algumas ações podem mitigar os impactos jurídicos e econômicos que a pandemia do covid-19 poderá trazer. Dentro desse pensamento os ditames da boa-fé objetiva nos guiam e devem ser adotas e compreendidos por todos os atores dentro das relações contratuais. Renegociar e revisar as cláusulas e condições contratuais é fundamental nesse contexto.
Nos momentos que se seguem receber certo pagamento, mesmo que de forma atemporal, poderá ser considerado um certo “luxo”. Nesse contexto, aplaudimos a decisão dos principais bancos do Brasil, que na última segunda, em conjunto com o Conselho Monetário Nacional, e agindo dentro dos mais estritos parâmetros da boa-fé, anunciaram que não irão realizar cobrança de encargos moratórios pelos próximos 60 dias para clientes pessoa física e micro e pequenas empresas[31] (que seria ainda melhor se fosse estendida para todos os clientes).
Considerando esse cenário vislumbramos duas situações principais envolvendo o inadimplemento pontual por conta da pandemia do covid-19. Em uma delas o inadimplemento pontual ocorre por fato que não pode ser imputado ao devedor, pois a realização da prestação será impossível. Nesses casos não será verificada a mora, e consequentemente os efeitos dos encargos moratórios não serão verificados. Por outro lado, serão verificadas situações em que o inadimplemento pontual se dará em razão das dificuldades caudadas pela pandemia do covid-19. Nessas hipóteses a mora será verificada, pois o inadimplemento é culposo, mas ainda assim defendemos que os encargos moratórios não podem ser cobrados. Essa cobrança não se coaduna com os ditames da boa-fé objetiva, configurando abuso de direito, ficando obstada a cobrança da cláusula penal moratória e dos juros moratórios em caso de inadimplemento pontual da obrigação.

* Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Arbitragem pela mesma Faculdade. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos/MG. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCont. Advogado no Moura Tavares, Figueiredo, Moreira e Campos Advogados, em Belo Horizonte
[2] Disponível em:
[4] Por meio do Decreto nº 17.304/2020. Disponível em
[6] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O Coronavírus, a Quebra Antecipada não Culposa de Contratos e a Revisão Contratual: O Teste da Vontade Presumível. Disponível em http://www.flaviotartuce.adv.br/assets/uploads/artigosc/360ec-carloselias_coronavirusquebra.docx.
[7] TERRA, Aline de Miranda Valverde. Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/322241/covid-19-e-os-contratos-de-locacao-em-shopping-center.
[8] CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. A pandemia do coronavírus e as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva. Disponível em http://genjuridico.com.br/2020/03/19/pandemia-do-coronavirus-teorias/.
[9] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. v. I, p. 93.
[10] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Função, natureza e modificação da cláusula penal no direito civil brasileiro, p. 181.
[11] Preferimos outro tipo de classificação conforme é possível verificar na nossa obra: SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula Penal e Sinal: as penas privadas convencionais na perspectiva do direito português e brasileiro. Rio de Janeiro: GZ, 2019.
[12] ROSENVALD, Nelson. Cláusula Penal: A pena privada nas relações negociais, p. 58-59.
[13] Como bem aponta TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil. São Paulo: Método, 2018, p. 175.
[14] Sobre a concepção de mora no Direito brasileiro, ver: MARTINS-COSTA, Judith. Do adimplemento das obrigações, p. 324-325
[15] TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil. São Paulo: Método, 2018, p. 123.
[16] SCHIRIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos de Direito Civil: Obrigações, vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 320.
[17] Para maiores esclarecimentos sobre direito subjetivo conferir: CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2012. v. I, p. 896-902; e LARENZ, Karl. Derecho Civil – Parte General. Traducción Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madrid: Edersa, 1978, p. 281-284.
[18] Que para CORDEIRO, António Menezes. Da Boa-fé no Direito Civil, p. 670 é “uma permissão normativa de aproveitamento específico” introduzindo “no coração do direito privado a permissibilidade” (p. 670).
[19] Ideia que se extrai do comentário do professor José Fernando Simão ao art. 396 do Código Civil (SIMÃO, José Fernando. Comentários ao Livro I – Das Obrigações, p. 221-A. In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019).
[20] TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil, p. 196.
[21] Que são as medidas estabelecidas por terceiros, normalmente a administração pública, que devem ser compulsoriamente obedecidas pelas partes, ainda que importem em descumprimento contratual.
[22] SCHIRIBER, Anderson. Comentários ao Livro III – Dos Fatos Jurídicos, p. 187-A. In: SCHIRIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019
[23] Para um desenvolvimento mais detalhado sobre a questão veja nossa obra: SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula Penal e Sinal: as penas privadas convencionais na perspectiva do direito português e brasileiro, p. 59-68.
[24] Que de um modo geral será definido pela Lei de Usura (Decreto 22.626), conforme bem aponta TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil, p. 179 e 198.
[25] MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 581.
[26] CORDEIRO, António Menezes. Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 65, v. II, set. 2005.
[27] MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação, p. 574.
[28] MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação, p. 598-599.
[29] CORDEIRO, António Menezes. Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas. O autor destaca que as consequências do reconhecimento do abuso de direito são variadas, sendo uma delas “a cessação do concreto exercício abusivo, mantendo-se, todavia, o direito”.
[30] Tão bem destacado por Anderson Schiriber no seu comentário do art. 187, p. 116-117 (In: SCHIRIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência)

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