Sobre a doutrina, guarda
compartilhada, poder familiar e as girafas
I – Girafas.
Foi sem nenhum espanto que li por intermédio da
página do Facebook do amigo Fernando Araújo, Professor Catedrático da Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa, que há uma séria discussão jurídica no
Brasil a respeito da alíquota tributária incidente sobre a importação de
Girafas.
A notícia veiculada pela Folha de São Paulo[1]
indica que, em razão do procedimento de cooperação entre zoológicos, no
intuito de preservação da vida selvagem, três girafas doadas por um parque
estadunidense (de Dallas) desembarcaram no Brasil.
Para “surpresa” de todos, a receita federal cobrou
U$ 7,79 mil de PIS/COFINS e U$ 15 mil de ICMS sobre a importação, pois os
animais foram avaliados em U$ 63 mil com base no contrato de seguro. Em
suma, o Zoológico de Pomerode passou a ser devedor da importância de quase R$
78 mil!
Digo que li sem nenhum espanto, pois o Brasil, há
algum tempo, é o país da piada pronta, como diria meu xará José Simão.
Não entendo nada de Direito Tributário, não sei a
natureza jurídica do PIS, COFINS e ICMS, não conheço os dispositivos do Código
Tributário Nacional, mas uma coisa posso afirmar: importar Girafa não está
sujeito à tributação. Simples assim.
E nesse clima de incredulidades jurídicas, em que o
bom senso desapareceu e insiste em não regressar, o tema da guarda
compartilhada merece uma reflexão.
II – Guarda compartilhada.
O Brasil teve, em menos de 10 anos, três regras
diferentes quanto à guarda de filhos. Na redação original, o artigo 1583
informava que “no caso de dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal pela
separação judicial por mútuo consentimento ou pelo divórcio direto consensual,
observar-se-á o que os cônjuges acordarem sobre a guarda dos filhos”.
Depois, em 2008 (Lei 11.698) vem a primeira reforma
e o dispositivo ganha a seguinte redação: “a guarda será unilateral ou
compartilhada.
“Parágrafo
2º Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser
dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as
condições fáticas e os interesses dos filhos:
I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar;
II – saúde e segurança;
III – educação.
Parágrafo 3º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos.”
I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar;
II – saúde e segurança;
III – educação.
Parágrafo 3º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos.”
Agora, a Lei 13.058 de 2014 altera novamente o
dispositivo: artigo 1583, “parágrafo 2o Na
guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de
forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições
fáticas e os interesses dos filhos”. Os incisos são todos revogados.
O parágrafo primeiro do art. 1583 dispõe:
“Parágrafo 1o Compreende-se por guarda unilateral a
atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (artigo 1.584, parágrafo 5o)
e, “por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de
direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes
ao poder familiar dos filhos comuns”.
Por que tantas mudanças em tão pouco tempo? A razão
simples. Graça no Brasil enorme confusão a respeito de guarda e poder familiar.
Essa confusão, quiçá dolosa, tem hiper-expandido a noção de “guarda” e
confundindo-a com poder familiar. Assim, como me disse Ricardo Calderón, é hora
de densificar a lei da guarda compartilhada de 2014 e não mais reclamar de sua
péssima qualidade (que é um fato inegável).
A doutrina ajuda com a distinção entre guarda e
poder familiar. Poder familiar é a função que incumbe aos genitores com relação
aos filhos menores, é direito inerente à paternidade e à maternidade que se
configura como instituição em favor dos filhos, no interesse destes[2].
Poder familiar e guarda não são a mesma coisa.
Entre elas há uma relação de todo e parte. Quando os pais vivem juntos, a
guarda dos filhos se encontra subsumida ao poder familiar que se exerce
conjuntamente por ambos os pais de forma dual e compartilhada[3].
Essa afirmação se confirma pela redação do Código
Civil. Os artigos 1583 e 1584 não se localizam topologicamente no capítulo V
que cuida do poder familiar. Guarda e poder familiar são coisas diversas e a
confusão de parte da doutrina e dos julgados é exatamente diferenciar os
conceitos.
A guarda é simples companhia fática de uma pessoa
com relação à outra a qual a lei atribui efeitos jurídicos. Quem tem a guarda,
tem, faticamente, a companhia do menor e, portanto, tem o dever de cuidar do
menor e zelar por sua segurança. Isso e apenas isso.
O poder familiar é um quid e não um quantum.
Nenhum dos genitores tem redução do poder familiar se, com o divórcio, a guarda
for unilateral. O poder familiar não se abala com o divórcio ou separação
fática do casal.
Se assim fosse, os filhos havidos fora do casamento
(sem prévio vínculo conjugal), e reconhecidos pelo pai, estariam sob o poder
familiar apenas da mãe, pois nunca houve conjugalidade entre os ascendentes.
Se a doutrina tiver dúvidas quanto a isto, basta a
leitura do Código Civil com relação ao “exercício do poder familiar” conforme dispõe
o artigo 1634.
Como ambos os pais têm o dever de dirigir a criação
e educação dos filhos (artigo 1.634, I), há coisas que não tem qualquer
relação com a guarda e independem de guarda compartilhada.
Assim, a decisão quanto à educação dos filhos
abrange:
a) a escola em que estudam (método de ensino adotado pela escola);
a) a escola em que estudam (método de ensino adotado pela escola);
b) acompanhar a vida escolar do menor,
inclusive, denunciando eventual prática de bullying;
c) se farão ou não atividades complementares
de cunho esportivo (futebol, ballet, judô) ou de cunho intelectual (ensino de
idiomas, kumon) ou lúdico (artesanato, teatro);
d) a necessidade ou não de aulas particulares
para reforço;
e) os livros que devem adquirir para seus
estudos
f) visitas regulares aos estabelecimentos de
ensino para terem conhecimento das questões referentes aos filhos.
Tudo isso decorre do poder familiar, e não da
guarda. Seja ela compartilhada ou não têm ambos os pais o dever de cuidar de se
filho e decidir estas questões.
Com relação à criação dos filhos temos:
a) a formação religiosa dos menores;
b) os cuidados com sua saúde física e
psicológica, como, por exemplo, decisão sobre a necessidade de o filho ter
auxílio de terapeuta, sobre qual o melhor tratamento em caso de doença, acesso
a todas as informações médico-hospitalares;
c) decisão quanto a ida a acampamentos
promovidos pela escola;
d) decisão quanto viagens de lazer ou
estudos, onde pode o menor ir, em que condições autoriza a viagem;
e) quais amigos são não boas companhias ao
menor. Se certo amigo o maltrata há o dever de proteger a criança;
f) a questão se pode o menor sair à noite, que
horas deve retornar, os lugares que deva frequentar;
g) prover diretamente ou em dinheiro meios de
subsistência do filho, para que este tenha uma vida digna e saudável, o que
significa o pagamento de alimentos em sentido jurídico.
Tudo isso decorre do poder familiar e não da
guarda. Seja ela compartilhada ou não têm ambos os pais o dever de cuidar de se
filho e decidir estas questões.
Da mesma forma, decorre do poder familiar o direito
de conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem. Novamente, tem a
direito independe de quem tema guarda.
A Lei 13.058, de 2014 acrescentou, ainda, ao
artigo 1634, o inciso IV pelo qual compete a ambos os pais conceder-lhes
ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior. Disse o óbvio. Viajar é
parte da formação do filho. Logo, a lei apenas reflete o temor que a criança
seja vítima de rapto internacional
Os incisos VI a IX do artigo 1634 também esclarecem
que guarda não se confunde com poder familiar, pois compete a ambos os pais: nomear-lhes tutor por testamento ou
documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não
puder exercer o poder familiar; representá-los judicial e
extrajudicialmente até os 16 anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após
essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; e
exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua
idade e condição.
Todos esses direitos e deveres decorrem do poder
familiar e independem da guarda.
Então cabe uma pergunta: qual é, então, a efetiva
diferença entre a guarda unilateral e a compartilhada se o poder familiar permanece
hígido e ambos os pais tem iguais direitos e deveres?
A questão da guarda compartilhada se resume a um
único e relevantíssimo aspecto. A companhia física de criança, ou seja, o
convívio entre pais e filhos. Na guarda unilateral, a mãe, normalmente, tem a
guarda e o pai apenas o direito de visita quinzenal da criança aos
fins-de-semana. Na guarda compartilhada há um convívio intenso e, em regra,
mais saudável do pai com seus filhos.
Ela se estabelece por convívios (de maior ou menor
intensidade) durante a semana, por exemplo. Assim, na guarda compartilhada o
pai assume o dever de levar a criança à escola em certos dias da semana, de
buscá-la em outros dias; de almoçar com ela e assim saber como foi seu dia,
quais são seus problemas, angústias e inquietações, de estar com ela por mais
tempo para a prática de atividades lúdicas, de lazer ou esportivas.
O pai deixa de ser o “papai do fim-de-semana sim,
fim-de-semana não” e passa a ser pai em sua plenitude, sempre no melhor
interesse do menor, por óbvio.
Guarda compartilhada implica que a criança durma na
casa do pai? Não, não implica. Pode ocorrer, mas não é regra, é exceção. A
criança deve ter uma noção única de residência. Se tiver idade compatível com o
pernoite em casa paterna isso pode ocorrer.
Guarda compartilhada implica redução de pensão
alimentícia? Não, pois o maior convívio não significa que a criança tenha menos
necessidades. Ela não deixa de precisar de escola e seguro-saúde, por exemplo.
Contudo, excepcionalmente, poderá haver redução, mas não em automática
decorrência da guarda compartilhada e sim de prova cabal da menor necessidade
do credor dos alimentos.
Por fim, não se deve esquecer que, no melhor
interesse da criança, podemos ter um guardião que não tem poder familiar. É o
caso dos pais que perdem o poder familiar e o avô assume a guarda (sentido de
companhia) e a tutela como sucedâneo do poder familiar.
III – Doutrina
Se é verdade que muito se publica atualmente, se é
verdade que o “mundo virtual” é espaço para que se diga tudo sobre qualquer
coisa, também é verdade que negar utilidade às novas formas de divulgação da
informação é algo pueril. Como, nas brincadeiras infantis, significa levar a
bola para casa dizendo “não brinco mais”.
Explico. Leio com assombro nas redes sociais um
número grande de pensamentos “pseudo-jurídicos” com erros de premissa, com
desconhecimento do básico em termos de categoria jurídica, com fanfarronices
retóricas e, por que não, eventualmente com um dolo subjacente em prol de
interesses pessoais não confessados pelo autor do “texto jurídico”.
Dúvida não há quanto a um grupo muito sério de
professores, juízes, membros do Ministério Público, acadêmicos de Direito e
demais pensadores que contribuem, em muito, com a reflexão jurídica de
qualidade.
Disse Paulo Lobo no III IBDCIVIL ocorrido em Recife
recentemente: “Doutrina é o espaço de rigor de investigação. É o espaço
privilegiado de leitura. Formação mais que informação. É criação e crítica. Sem
isso, há apenas erudição de boa ou má qualidade".
Isso não significa, contudo, que a doutrina tem o
“tempo” que tinha no passado para responder às demandas jurídicas prementes. O
idílico mundo em que após 15 anos de reflexão uma nova obra sobre um tema era
publicada, acabou. Mesmo porque os problemas do excesso de leis e de grande
volume de demandas exige da doutrina rapidez intelectual para cumprir sua
função de interpretar o sistema e permitir ao julgador mais clareza em sua
decisão.
E como lembrou Luiz Edson Fachin, também no III
IBDCIVIL, jurista que não tem dúvida não pesquisa, mas o jurista não pode se
deixar dominar pela dúvida. Deve com ela conviver.
Assim, entre doutrina e opinião há uma grande
diferença. Opinião é “chute”, é “sentimento”, é falta de seriedade no ambiente
acadêmico. Contudo, a doutrina tardia, que se produz apenas quando as teses se
consolidam, quando as decisões já foram tomadas e que usam dos julgados como
forma de “avalizar” a opinião do autor, é tão pouco importante quanto à
opinião.
Parte da doutrina brasileira, em atitude
contemplativa, como lembra Lewis Carrol, por meio do Coelho em "Alice no
País das Maravilhas", olha-se no espelho e diz “Oh dear! Oh dear! I
shall be late”.
Sobre a guarda compartilhada (Oh dear!),
é hora e já estamos atrasados (I shall be late), de se extirpar a
confusão reinante entre guarda e poder familiar. Essa confusão é danosa e seu
fim é necessário para a aplicação adequada da Lei 13.058/14 no melhor interesse
dos filhos.
Mas, para finalizar minha reflexão pergunto como se
resolve o problema da tributação da Girafa? Eça de Queiroz indica, n’A
Correspondência de Fradique Mendes a solução. Fradique, em uma de suas muitas
viagens, traz uma múmia egípcia para presentear uma amiga. A autoridade
alfandegária retém a múmia para se calcular o imposto de importação. Contudo a
múmia, assim como as girafas de Pomerode, não se encontrava em nenhuma das
categorias de mercadoria tributável. A solução de Eça de Queiroz deveria ser
adotada pela Receita Federal brasileira:
“Ele, Fradique, sugerira o artigo
que taxa o arenque defumado. Realmente, no fundo, o que é um arenque defumado
senão a múmia, sem ligaduras e sem inscrições, dum arenque que viveu. Ter
sido peixe ou escriba nada importava para os efeitos fiscais. O que a
Alfândega via diante de si era o corpo duma criatura, outrora palpitante, hoje
secada ao fumeiro. Se ela em vida nadava num cardume nas ondas do mar do Norte,
ou se, nas margens do Nilo, há quatro mil anos, arrolava as reses de Amnon e
comentava os capítulos de fim de dia — não era certamente da conta dos
Poderes Públicos. Isto parecia-lhe lógico”
[1] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/08/1671583-supremo-podera-ter-que-decidir-se-importacao-de-girafas-e-tributada.shtml?cmpid=compfb
José Fernando Simão é advogado, diretor do
conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da
Escola Paulista de Direito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário