A união gay e o direito a pensão
Mário
Luiz Delgado* - O Estado de S. Paulo
03
Março 2015 | 13h 50
Análise
publicada originalmente no Estadão Noite
A imprensa vem
noticiando que o Superior Tribunal de Justiça está prestes a se manifestar
sobre os alimentos devidos entre pares homoafetivos e, especificamente, se um
dos parceiros de união homoafetiva poderia pleitear ao outro pensão alimentícia
após o rompimento da convivência. Em que pese inexistir legislação específica,
o Brasil, por construção jurisprudencial, não só reconheceu a união homoafetiva
como entidade familiar, como outorgou, por equiparação, o mesmo regime jurídico
da união estável entre homem e mulher.
O elenco das
entidades familiares posto no artigo 226 da Constituição é reconhecido, de
forma quase consensual, como meramente exemplificativo. Rol aberto a comportar
indefinidas formas de constituição de família, todas elas igualmente protegidas
pelo Estado. O ponto em comum a todas a justificar o reconhecimento e o
incentivo estatal é a afetividade, pois se muitas são as famílias em seus
diversos arranjos familiares próprios, inegável que todas elas terão a sua
formação pressuposta pelo afeto, como elo que as une e reúne.
O Código Civil
brasileiro de 2002 disciplinou os direitos e deveres dos que convivem em união
estável, assegurando aos companheiros um estatuto legal em muitos aspectos
semelhante ao dos cônjuges. A união estável, seja ela entre homem e mulher,
entre dois homens ou entre duas mulheres, é uma situação de fato, consagrada
pela realidade social, em tudo semelhante ao casamento.
Não há dúvida,
portanto, que os mesmos direitos conferidos às uniões estáveis heteroafetivas
também o serão às uniões homoafetivas, sem qualquer distinção, aí incluído o
direito a alimentos. A questão que se coloca é se esses alimentos, devidos com
fundamento na conjugalidade ou na afetividade convivencial podem ser postulados
após a dissolução da união, com base em necessidade superveniente.
Para alguns
autores, se a dissolução da união foi reconhecida em processo judicial e a
sentença não fixou alimentos porque um dos companheiros renunciou, não cabe
pleito posterior, até porque, dissolvido o vínculo, desapareceria a causa
jurídica dos alimentos e a irrenunciabilidade prevista no art. 1.707 do Código
Civil só protegeria os alimentos oriundos do parentesco, mas não aqueles
decorrentes da conjugalidade.
Todavia, na
doutrina existem profundas divergências quanto à extinção do vínculo
alimentício entre ex-cônjuges por ocasião do divórcio ou entre ex-companheiros
por ocasião da dissolução da união estável. Entre os que defendem a irrenunciabilidade
da obrigação encontram-se autores de nomeada como Paulo Luiz Netto Lôbo, José
Fernando Simão, Flávio Tartuce, para quem "os direitos inerentes à
dignidade humana, mesmo de cunho patrimonial, não podem ser renunciados".
Na jurisprudência, não obstante alguns julgados do próprio STJ, também existe
controvérsia quanto à possibilidade de renúncia aos alimentos entre ex-cônjuges
e ex-companheiros, especialmente após a entrada em vigor do CC/2002 com a
redação atribuída ao atual art. 1.707.
Por outro lado, se
o rompimento da união se consumou pela informalidade, sem renúncia expressa de
um dos companheiros aos alimentos, estes poderão ser requeridos posteriormente.
Isso porque, mesmo aos que entendem possível a renúncia, o ato abdicativo do
direito deve ser expresso. Inexiste, no caso dos alimentos, renúncia tácita
decorrente da simples inércia do titular. É um direito que não se extingue pelo
seu não-uso.
O Superior
Tribunal de Justiça já decidiu que "mesmo após o divórcio, não tendo
ocorrido a renúncia aos alimentos por parte do cônjuge que, em razão dos longos
anos de duração do matrimônio, não exercera atividade econômica, se vier a
padecer de recursos materiais, por não dispor de meios para suprir as próprias
necessidades vitais (alimentos necessários), seja por incapacidade laborativa,
seja por insuficiência de bens, poderá requerê-la de seu ex-consorte, desde que
preenchidos os requisitos legais" (REsp 1073052/SC, Rel. Ministro MARCO
BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 11/06/2013, DJe 02/09/2013.). Esse é o
entendimento que deve prevalecer para as uniões homoafetivas.
Sublinhe-se,
finalmente, que o fundamento jurídico da obrigação alimentar não se esgota no
parentesco ou na conjugalidade. Acima deles sobrepaira irradiante e intangível
o princípio da solidariedade (CF, art. 3º, I), a justificar a permanência do
dever de mútua assistência material mesmo após a dissolução do vínculo.
Especialmente porque aqueles que vivenciaram a conjugalidade, hetero ou
homoafetiva, nunca serão dois desconhecidos e não podem se comportar como
estranhos. Entre eles, com mais razão, é de se impingir a concretização, na
horizontalidade das relações privadas, do princípio da solidariedade.
Em conclusão, é
plenamente possível deduzir pretensão alimentar após o rompimento da união homoafetiva,
desde que provada a necessidade de quem pleiteia e as possibilidades de quem é
demandado, informadas pelo princípio da proporcionalidade.
* MÁRIO
LUIZ DELGADO É DIRETOR DE ASSUNTOS LEGISLATIVOS DO IASP. DOUTOR PELA USP E
MESTRE PELA PUC/SP
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