quinta-feira, 11 de junho de 2015

ANOTAÇÕES SOBRE A DECISÃO DO STF SOBRE BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

Prezados Leitores do Blog.

Conforme já defendíamos em nossas obras Direito Civil. Volume 1 e Manual de Direito Civil. Volume Único, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ADIN 4815, que pleiteava a declaração de inconstitucionalidade, sem redução de texto, dos arts. 20 e 21 do Código Civil, com o fim de que tais dispositivos não sejam aplicados aos casos de biografias não autorizadas de pessoas que despertam o interesse coletivo. Ressalto que a ação foi proposta pela Associação Nacional de Editores de Livros, estando a petição inicial bem acompanhada de excelente parecer do Professor Gustavo Tepedino.  

Como destacamos nas obras, era condenável a censura prévia de biografias em nosso País, com destaque para o livro Lampião - O Mata Sete, de Pedro de Morais. Em 10 de abril de 2012, sentença de primeira instância da 7.ª Vara Cível de Aracaju, Sergipe, proibiu a vinculação da obra, que traz um estudo histórico realizado pelo seu autor, que afirma que Lampião era homossexual e constantemente traído por sua mulher, Maria Bonita.

A ação foi proposta pela única filha do casal, Expedida Ferreira Nunes, concluindo o magistrado prolator da decisão que, “conjugando o art. 5.º, X, da Constituição Federal com o art. 20, parágrafo único do Código Civil, verifica-se facilmente a ilicitude da conduta do requerido em pretender divulgar e publicar uma biografia de Lampião, sem autorização dos titulares do direito de imagem, no caso, a requerente” (Processo 201110701579). Como as figuras relatadas no livro são históricas ficava em xeque a ponderação realizada pelo julgador, uma vez que há um interesse coletivo no estudo realizado pelo advogado escritor.

Com correção, a sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça de Sergipe em acórdão da sua 2.ª Câmara Cível, prolatada 30 de setembro de 2014. Conforme o relator, Des. Siqueira Neto, a liberdade de expressão é valor fundamental na ordem democrática nacional. Sendo assim, não é papel do Poder Judiciário estabelecer padrões de conduta que impliquem restrição à divulgação das informações: “cabe, sim, impor indenizações compatíveis com ofensa decorrente de uma divulgação ofensiva”. E arrematou, citando a doutrina de Marcelo Novelino, publicada por esta mesma casa editorial: “as pessoas públicas, por se submeterem voluntariamente à exposição pública, abrem mão de uma parcela de sua privacidade, sendo menor a intensidade de proteção”. Cabe destacar que esse caso é citado pelo Ministro Luís Roberto Barroso em suas anotações no julgamento de ontem (10 de junho de 2015).

A decisão traz uma nova forma de se encarar a liberdade de expressão no País, madura e adulta. Em suma, não é mais cabível a censura prévia, a priori. Os eventuais excessos devem ser analisados a posteriori, com a responsabilização civil e penal dos autores que agirem com abuso do direito de informação.

Abaixo segue a notícia do julgamento, pelo Migalhas, com os links do voto da Ministra Carmen Lúcia e das anotações do Ministro Barroso.

Boas reflexões a todos.

Professor Flávio Tartuce

Não é necessária autorização prévia para publicação de biografias

Fonte: Migalhas.

O STF declarou nesta quarta-feira, 10, ser inexigível consentimento de pessoa biografada para publicação de biografias. O plenário acompanhou voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, dando interpretação conforme a Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto.

Os ministros entenderam ser igualmente desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes nas biografias ou de seus familiares em casos de pessoas falecidas ou ausentes. Os referidos dispositivos do CC preveem:

"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma."

Em seu voto, Cármen Lúcia explicou que a matéria em exame na ADIn se refere ao conteúdo e à extensão do direito constitucional à expressão livre do pensamento, da atividade intelectual, artística e de comunicação dos biógrafos, editores e entidades públicas e privadas veiculadoras de obras biográficas. Garantindo-se a liberdade de informar e de ser informado, de um lado, e o direito à inviolabilidade da intimidade e da privacidade dos biografados, de seus familiares e de pessoas que com eles conviveram. "Estas liberdades constitucionalmente asseguradas informam e conduzem a interpretação legítima das regras infraconstitucionais".

Para ela, "o direito à liberdade de expressão é outra forma de afirmar-se a liberdade do pensar e expor o pensado ou o sentido. E é acolhida em todos os sistemas constitucionais democráticos".

De acordo com a ministra, a Constituição prevê, nos casos de violação da privacidade, da intimidade, da honra e da imagem, a reparação indenizatória, e, por outro lado, proíbe "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística". Assim, uma regra infraconstitucional (o Código Civil) não pode abolir o direito de expressão e criação de obras literárias. "Não é proibindo, recolhendo obras ou impedindo sua circulação, calando-se a palavra e amordaçando a história que se consegue cumprir a Constituição", afirmou. "A norma infraconstitucional não pode amesquinhar preceitos constitucionais, impondo restrições ao exercício de liberdades". A ministra observou que há riscos de abuso, mas o direito prevê formas de repará-los. "O mais é censura, e censura é uma forma de cala-boca".

"História faz-se pelo que se conta. Silêncio também é história. Mas apenas quando relatada e de alguma forma dada a conhecimento de outrem. Pela sua força de construção e desconstrução de relações sociais, políticas e até mesmo econômicas, a expressão como direito é fruto de lutas permanentes desde os primórdios da história."

Durante o julgamento, os ministros afirmaram que não estavam interditando o acesso das pessoas que se sentirem ofendidas com eventuais obras biográficas ao Judiciário. A ministra Cármen Lúcia ressaltou que todos os que buscarem o Judiciário merecem seu respeito. "Defenderei até eu morrer o direito de cada um lutar, na forma da CF e da lei, pelo seu direito de buscar o que lhe parece justo. Não vejo nisso qualquer agressão ou afronta."

Acompanhando a relatora, o ministro Luís Roberto Barroso ressaltou que "defender a liberdade de expressão não significa dizer que ela sempre seja protagonista da verdade ou protagonista da Justiça".

"A liberdade de expressão não é garantia de verdade ou de justiça. Ela é uma garantia da democracia. Defender a liberdade de expressão pode significar ter de conviver com a injustiça e até mesmo com a inverdade. Isso é especialmente válido para as pessoas públicas, como agentes públicos ou artistas."

Para ele, a interpretação dos artigos 20 e 21 do CC que confere àqueles que são retratados em biografias a prerrogativa de autorizarem a publicação dessas obras e, na ausência de autorização, de obterem judicialmente a proibição da sua divulgação, é incompatível com a CF.

Sustentações orais

A ADIn - que questionava o alcance da interpretação dos artigos 20 e 21 do CC - foi ajuizada em 2012 pela Associação Nacional dos Editores de Livros - Anel, representada no caso pelo advogado Gustavo Binenbojm (Binenbojm, Gama & Carvalho Britto Advocacia). Em sua sustentação oral, o causídico argumentou que o propósito da censura é sempre o mesmo; o de “controlar o que os cidadãos podem ver e saber como forma de determinar o que os cidadãos devem pensar”. Ele ressaltou ainda que essa não é uma causa dos editores de livro, tão pouco dos escritores, historiadores e acadêmicos, e sim uma causa da sociedade brasileira. "É a causa de um país que tem pressa de se educar e de se informar, o que é a causa final de todos os que acreditam que as ideias e as palavras podem mudar o mundo".

Pelo Instituto Historico e Geográfico Brasileiro – IHGB, amicus curiae, sustentou o advogado Thiago Bottino do Amaral, o qual lembrou que a liberdade acadêmica por si só "é fundamento jurídico suficiente para se fazer a interpretação de modo a não se permitir a exigência prévia de autorização para a publicação de biografias". O IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo foi representado na tribuna pela advogada Ivana Co Galdino Crivelli.

O Conselho Federal da OAB, também amicus curiae, foi representado na Tribuna pelo seu presidente, Marcus Vinicius Furtado Coêlho. Ele apontou que não poderá qualquer censor delimitar qual a matéria será objeto de uma biografia. Segundo ele, todos os fatos deem ter relevância para o biógrafo que esta exercendo o direito constitucional a liberdade de expressão e os fatos inverídicos, as ofensas à honra, à calúnia, serão resolvidas como devem ser resolvidos todos os danos cometidos contra as pessoas. "Nos casos de calúnia, de ofensas da honra, de injúria, de difamação, a solução será obviamente a indenização."

"Posso dizer depois de 30 anos ocupando esta tribuna que foram tantas emoções e de qualquer maneira assumo hoje como se fosse a primeira vez, ainda emocionado e muito honrado." Com estas palavras, Kakay iniciou sua sustentação oral pelo Instituto Amigo, criado por Roberto Carlos. O advogado afirmou que a única censura que vislumbrou no processo em questão foi a censura de impedir que o cidadão que tenha sua dignidade afetada não poder propor seu questionamento no Judiciário.

Lembrando a igualdade dos direitos à intimidade e à informação, o advogado ressaltou que o direito constitucional de todo cidadão ir ao Judiciário também estava em jogo. "Nós entendemos que quando se trata de biografias não é a liberdade de expressão que está em jogo, é o direito a informação. Na biografia a pessoa estuda caso concreto em relação a outra pessoa e depois tem que levar o que estudou para o livro sendo, evidentemente, fiel ao que estudou. Os detalhes averiguados com certeza podem ser levados. (..) O que me leva a ocupar a tribuna é que a ADIn diz quase como se fosse absoluto o direito do biografo. O biografado não pode avaliar caso a caso quando se sentir ofendido em sua dignidade."
Veja a íntegra do voto da relatora, ministra Cármen Lúcia.
Confira a íntegra do voto do ministro Barroso.

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