Prezados Leitores do Blog.
Conforme já defendíamos em nossas obras
Direito Civil. Volume 1 e Manual de Direito Civil. Volume Único, o Supremo
Tribunal Federal julgou procedente a ADIN 4815, que pleiteava a declaração de
inconstitucionalidade, sem redução de texto, dos arts. 20 e 21 do Código Civil,
com o fim de que tais dispositivos não sejam aplicados aos casos de biografias
não autorizadas de pessoas que despertam o interesse coletivo. Ressalto que a
ação foi proposta pela Associação Nacional de Editores de Livros, estando a
petição inicial bem acompanhada de excelente parecer do Professor Gustavo
Tepedino.
Como destacamos nas obras, era condenável a
censura prévia de biografias em nosso País, com destaque para o livro Lampião -
O Mata Sete, de Pedro de Morais. Em 10 de abril de 2012, sentença de primeira
instância da 7.ª Vara Cível de Aracaju, Sergipe, proibiu a vinculação da obra,
que traz um estudo histórico realizado pelo seu autor, que afirma que Lampião
era homossexual e constantemente traído por sua mulher, Maria Bonita.
A ação foi proposta pela única filha do
casal, Expedida Ferreira Nunes, concluindo o magistrado prolator da decisão que,
“conjugando o art. 5.º, X, da Constituição Federal com o art. 20, parágrafo
único do Código Civil, verifica-se facilmente a ilicitude da conduta do
requerido em pretender divulgar e publicar uma biografia de Lampião, sem
autorização dos titulares do direito de imagem, no caso, a requerente”
(Processo 201110701579). Como as figuras relatadas no livro são históricas
ficava em xeque a ponderação realizada pelo julgador, uma vez que há um
interesse coletivo no estudo realizado pelo advogado escritor.
Com correção, a sentença foi reformada pelo
Tribunal de Justiça de Sergipe em acórdão da sua 2.ª Câmara Cível, prolatada 30
de setembro de 2014. Conforme o relator, Des. Siqueira Neto, a liberdade de
expressão é valor fundamental na ordem democrática nacional. Sendo assim, não é
papel do Poder Judiciário estabelecer padrões de conduta que impliquem
restrição à divulgação das informações: “cabe, sim, impor indenizações
compatíveis com ofensa decorrente de uma divulgação ofensiva”. E arrematou,
citando a doutrina de Marcelo Novelino, publicada por esta mesma casa
editorial: “as pessoas públicas, por se submeterem voluntariamente à exposição
pública, abrem mão de uma parcela de sua privacidade, sendo menor a intensidade
de proteção”. Cabe destacar que esse caso é citado pelo Ministro Luís Roberto
Barroso em suas anotações no julgamento de ontem (10 de junho de 2015).
A decisão traz uma nova forma de se encarar
a liberdade de expressão no País, madura e adulta. Em suma, não é mais cabível
a censura prévia, a priori. Os eventuais excessos devem ser analisados a
posteriori, com a responsabilização civil e penal dos autores que agirem com
abuso do direito de informação.
Abaixo segue a notícia do julgamento, pelo
Migalhas, com os links do voto da Ministra Carmen Lúcia e das anotações do
Ministro Barroso.
Boas reflexões a todos.
Professor Flávio Tartuce
Não é
necessária autorização prévia para publicação de biografias
Fonte: Migalhas.
O STF declarou nesta quarta-feira, 10, ser
inexigível consentimento de pessoa biografada para publicação de biografias. O
plenário acompanhou voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, dando
interpretação conforme a Constituição aos artigos 20
e 21 do Código Civil, sem redução de
texto.
Os ministros entenderam ser igualmente
desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes nas biografias
ou de seus familiares em casos de pessoas falecidas ou ausentes. Os referidos
dispositivos do CC preveem:
"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se
necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a
divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição
ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu
requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a
honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de
ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os
ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é
inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências
necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma."
Em seu voto, Cármen Lúcia
explicou que a matéria em exame na ADIn se refere ao conteúdo e à extensão do
direito constitucional à expressão livre do pensamento, da atividade
intelectual, artística e de comunicação dos biógrafos, editores e entidades
públicas e privadas veiculadoras de obras biográficas. Garantindo-se a liberdade
de informar e de ser informado, de um lado, e o direito à inviolabilidade da
intimidade e da privacidade dos biografados, de seus familiares e de pessoas
que com eles conviveram. "Estas liberdades constitucionalmente
asseguradas informam e conduzem a interpretação legítima das regras
infraconstitucionais".
Para ela, "o direito à liberdade de
expressão é outra forma de afirmar-se a liberdade do pensar e expor o pensado
ou o sentido. E é acolhida em todos os sistemas constitucionais democráticos".
De acordo com a ministra, a Constituição prevê, nos
casos de violação da privacidade, da intimidade, da honra e da imagem, a
reparação indenizatória, e, por outro lado, proíbe "toda e qualquer
censura de natureza política, ideológica e artística". Assim, uma
regra infraconstitucional (o Código Civil) não pode abolir o direito de
expressão e criação de obras literárias. "Não é proibindo, recolhendo
obras ou impedindo sua circulação, calando-se a palavra e amordaçando a
história que se consegue cumprir a Constituição", afirmou. "A
norma infraconstitucional não pode amesquinhar preceitos constitucionais,
impondo restrições ao exercício de liberdades". A ministra observou
que há riscos de abuso, mas o direito prevê formas de repará-los. "O
mais é censura, e censura é uma forma de cala-boca".
"História faz-se pelo que se conta. Silêncio
também é história. Mas apenas quando relatada e de alguma forma dada a
conhecimento de outrem. Pela sua força de construção e desconstrução de
relações sociais, políticas e até mesmo econômicas, a expressão como direito é
fruto de lutas permanentes desde os primórdios da história."
Durante o julgamento, os ministros afirmaram que
não estavam interditando o acesso das pessoas que se sentirem ofendidas com
eventuais obras biográficas ao Judiciário. A ministra Cármen Lúcia ressaltou
que todos os que buscarem o Judiciário merecem seu respeito. "Defenderei
até eu morrer o direito de cada um lutar, na forma da CF e da lei, pelo seu
direito de buscar o que lhe parece justo. Não vejo nisso qualquer agressão ou
afronta."
Acompanhando a relatora, o ministro Luís Roberto
Barroso ressaltou que "defender
a liberdade de expressão não significa dizer que ela sempre seja protagonista
da verdade ou protagonista da Justiça".
"A liberdade de expressão não é garantia de
verdade ou de justiça. Ela é uma garantia da democracia. Defender a liberdade
de expressão pode significar ter de conviver com a injustiça e até mesmo com a
inverdade. Isso é especialmente válido para as pessoas públicas, como agentes
públicos ou artistas."
Para ele, a interpretação dos artigos 20 e
21 do CC que confere àqueles que são retratados em biografias a prerrogativa de
autorizarem a publicação dessas obras e, na ausência de autorização, de obterem
judicialmente a proibição da sua divulgação, é incompatível com a CF.
Sustentações orais
A ADIn - que questionava o alcance da interpretação
dos artigos 20 e 21 do CC - foi ajuizada em 2012 pela Associação Nacional dos
Editores de Livros - Anel, representada no caso pelo advogado Gustavo
Binenbojm (Binenbojm, Gama & Carvalho Britto Advocacia). Em sua
sustentação oral, o causídico argumentou que o propósito da censura é sempre o
mesmo; o de “controlar o que os cidadãos podem ver e saber como forma de
determinar o que os cidadãos devem pensar”. Ele ressaltou ainda que essa não é
uma causa dos editores de livro, tão pouco dos escritores, historiadores e
acadêmicos, e sim uma causa da sociedade brasileira. "É a causa de um
país que tem pressa de se educar e de se informar, o que é a causa final de
todos os que acreditam que as ideias e as palavras podem mudar o mundo".
Pelo Instituto Historico e Geográfico Brasileiro –
IHGB, amicus curiae, sustentou o advogado Thiago Bottino do Amaral, o qual
lembrou que a liberdade acadêmica por si só "é fundamento jurídico
suficiente para se fazer a interpretação de modo a não se permitir a exigência
prévia de autorização para a publicação de biografias". O IASP - Instituto
dos Advogados de São Paulo foi representado na tribuna pela advogada Ivana Co
Galdino Crivelli.
O Conselho Federal da OAB, também amicus curiae,
foi representado na Tribuna pelo seu presidente, Marcus Vinicius Furtado
Coêlho. Ele apontou que não poderá qualquer censor delimitar qual a matéria
será objeto de uma biografia. Segundo ele, todos os fatos deem ter relevância
para o biógrafo que esta exercendo o direito constitucional a liberdade de
expressão e os fatos inverídicos, as ofensas à honra, à calúnia, serão
resolvidas como devem ser resolvidos todos os danos cometidos contra as
pessoas. "Nos casos de calúnia, de ofensas da honra, de injúria, de
difamação, a solução será obviamente a indenização."
"Posso dizer depois de 30 anos ocupando
esta tribuna que foram tantas emoções e de qualquer maneira assumo hoje como se
fosse a primeira vez, ainda emocionado e muito honrado." Com estas
palavras, Kakay iniciou sua sustentação oral pelo Instituto Amigo, criado por
Roberto Carlos. O advogado afirmou que a única censura que vislumbrou no
processo em questão foi a censura de impedir que o cidadão que tenha sua
dignidade afetada não poder propor seu questionamento no Judiciário.
Lembrando a igualdade dos direitos à intimidade e à
informação, o advogado ressaltou que o direito constitucional de todo cidadão
ir ao Judiciário também estava em jogo. "Nós entendemos que quando se
trata de biografias não é a liberdade de expressão que está em jogo, é o
direito a informação. Na biografia a pessoa estuda caso concreto em relação a
outra pessoa e depois tem que levar o que estudou para o livro sendo,
evidentemente, fiel ao que estudou. Os detalhes averiguados com certeza podem
ser levados. (..) O que me leva a ocupar a tribuna é que a ADIn diz quase como
se fosse absoluto o direito do biografo. O biografado não pode avaliar caso a
caso quando se sentir ofendido em sua dignidade."
- Processo relacionado: ADIn 4.815
Veja a íntegra do voto da relatora, ministra
Cármen Lúcia.
Confira a íntegra do voto do ministro Barroso.
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