Breves notas sobre o retrocesso impingido pela Súmula
385 do STJ.
EZEQUIEL MORAIS
Mestrando
em Direito Civil pela Universidade de São Paulo - USP
(Faculdade
de Direito do Largo São Francisco).
Advogado,
com estágio no Studio Legale Associato
Pezone (Itália).
Ex-Conselheiro
da OAB. Professor em Pós-graduações.
Autor e
coautor de obras jurídicas.
Sem divagações, sabemos todos que o
sistema jurídico brasileiro não permite que o devedor seja constrangido na
cobrança de dívida [arts. 39, VII, 42 e 71 do CDC; arts. 186 e 187 do CC; arts.
146, 147 e 345 do CP e art. 5.º, LXVII, da CF/88]. Ponto.
Mesmo assim, é sempre importante
ressaltar que o exercício regular de um direito reconhecido não é
constrangimento ilegal, não é prática abusiva e, portanto, não é crime ou ato
ilícito, com exceção, sem dúvida, dos casos em que se configuram o abuso de
direito e a inobservância do duty to
mitigate the loss [ou the damage].
Este último, aliás, consubstancia-se, em resumo, não só no dever do contratante
de mitigar, de diminuir a perda do outro, mas, também e principalmente, no
dever de evitar a perda, de afastar provável, vindouro prejuízo. Essas, a
propósito, são as claras e corretas lições dos professores Marco Fábio Morsello
e Giselda Hironaka, ambos da nossa querida Faculdade de Direito do Largo São
Francisco – USP.
Bem, transpostas as palavras
introdutórias, rumemo-nos, caro leitor, à pedra angular do presente artigo: a
Súmula 385 do STJ (DJ 08/06/2009) ofende várias normas do nosso sistema
jurídico; vai de encontro com a diretriz principiológica tanto do Código de
Defesa do Consumidor quanto do Código Civil, para não dizer da própria
Constituição Federal.
Desde 2010, sustento
isso no livro CDC Comentado (Edt. RT, pág. 223). Mas agora trago o tema
novamente à tona em decorrência de uma sentença – e por ela motivado, de novo –
oriunda da Comarca de Mongaguá-SP, da lavra do magistrado Fernando Cesar do
Nascimento, que adotara o nosso mesmo entendimento ao não aplicar a Súmula 385
porque a mesma “não se amolda ao sistema consumerista” (proc. n.º
366.01.2008.000763, DJe 1765, de 29/10/2014, São Paulo. Obs.: apelação ainda
pendente de julgamento no TJ-SP).
Eis o texto sumular que resulta em
retrocesso: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe
indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado
o direito ao cancelamento”.
Definitivamente, não podemos
concordar com os ditames da súmula acima referida, e nem poderíamos, pois
contraria, como outrora dissemos, normas consumeristas e civis e, por
consequência, direito constitucional que protege a pessoa, a honra, a imagem.
Notemos: um (01) só apontamento negativo do nome de uma pessoa pode ter certo
significado. Mas vinte (20!), por exemplo, “negativações” têm, convenhamos,
outros significado, causas e conseqüências bastante diferentes.
Flávio Tartuce muito bem esclarece e
complementa com exatidão: “imagina-se pela súmula que a pessoa que já teve o
nome inscrito nunca mais terá direito à indenização, pois, como devedor que
foi, perdeu a sua personalidade moral. [...] Sem falar que a Súmula 385 entra
em conflito com a Súmula 370 do mesmo STJ, segundo a qual cabe indenização por
dano moral no caso de depósito antecipado de cheque pré ou pós-datado.
Imagine-se que o consumidor já teve o nome inscrito por uma dívida regular,
surgindo uma inscrição posterior indevida em decorrência do citado depósito
antecipado. Pela Súmula 385, não caberá a indenização moral; pela Súmula 370, a
resposta é positiva, em contrariedade à ementa anterior” (Manual de direito do consumidor. Edt. Método, p. 446).
Por tais razões, reafirmamos que a
Súmula 385, com conotação temerária e exageradamente generalizante, pode tornar
lícito um ato ilícito apenas porque já preexistia outro registro negativo do
nome do cidadão – e isto sem levar em consideração que o registro negativo
preexistente pode ser irregular, indevido!
E mais: a manutenção de tal súmula é
um claro incentivo à prática do abuso de direito (CC, art. 187). Inclusive, de
acordo com a linha mestra aqui adotada, traçada com base nos princípios da
boa-fé objetiva e da socialidade (art. 5.º da LINDB), apropriada e irretocável
é a lição de Inácio de Carvalho Neto, ao afirmar que “dispõe o citado art. 5.º
que o juiz, ao aplicar a lei, ‘atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e
às exigências do bem comum’. A explícita menção, como regra de aplicação da lei
pelo juiz, do atendimento aos fins sociais da norma, configura claramente o
reconhecimento de que deve ser coibida a prática de atos que desatendam a esses
mesmos fins sociais”. Em outras palavras, como bem ressaltado, é preciso
atender “à finalidade da lei e do Direito enquanto sistema ético e moral” (Abuso
do direito. Edt. Juruá, p. 183).
Ainda, nem cogitamos aqui de aplicar
ou não a técnica de ponderação de princípios, segundo a Teoria da Ponderação,
desenvolvida por Robert Alexy. Não é essa a questão e muito menos o fator de
resolução do problema, pois é certo que o registro indevido viola direito e
causa dano à pessoa [física ou jurídica] negativada, configurando, assim, um
ato ilícito (art. 186 do CC). E esse mesmo ato – irregular(!) – está longe de
ser exercício regular de um direito reconhecido (art. 118, I, do CC). Então, é
cristalina a afronta ao art. 42, § 2.º, do CDC, dentre várias outras normas.
O STJ, ao editar a infeliz Súmula 385
em 2009 e, pior, ao não revogá-la até hoje, dá guarida ao abuso do direito
(art. 187, do CC); legitima, valida um ato que pode ser ilícito!
Ah... aproveitando a oportunidade,
vale recordar de outra polêmica súmula que continuamos a entender ser
igualmente equivocada: STJ, 381.
Saudações. Com carinho.
Ezequiel Morais - Mestrando em Direito Civil pela Universidade de São
Paulo - USP (Faculdade de Direito do Largo São Francisco). Advogado, com
estágio no Studio Legale Associato Pezone
(Itália). Ex-Conselheiro da OAB. Professor em Pós-graduações. Autor e coautor
de obras jurídicas.
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