quarta-feira, 3 de agosto de 2016

LIBERDADE PARA AMAR, SOLIDARIEDADE NAS FAMÍLIAS. POR GUSTAVO TEPEDINO

LIBERDADE PARA AMAR, SOLIDARIEDADE NAS FAMÍLIAS.
Por Gustavo Tepedino. Professor Titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da UERJ. Sócio fundador do escritório Gustavo Tepedino Advogados.
No último domingo, a colunista Martha Medeiros publicou sensível reflexão sobre o amor, sentimento verdadeiramente indecifrável. Em seu texto, constatou que "o amor já foi uno, concreto e definido. Mas o século mudou e com ele as variantes do amor, que se multiplicaram. Hoje há diversas formatações para vivenciá-lo, são inúmeros os seus significados e ilimitadas as suas maneiras de encantar e transformar. O amor romântico – 'eu e você para sempre' – é apenas uma de suas modalidades".
A multiplicidade das formas de amar bem demonstram a complexidade do direito das famílias nos dias de hoje.
Aliás, este tem sido o grande desafio do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, do qual tenho a honra de ser diretor. Nosso Instituto é o grande timoneiro na reconstrução do direito das famílias, a partir da compreensão da entidade familiar como comunidade solidária e democrática, na qual a igualdade e a diversidade devem necessariamente ser promovidas.
Por que será tão difícil aceitar os arranjos familiares alheios, que reflitam a individualidade, a dignidade e a liberdade de cada pessoa em seu própria forma de amar?
O texto me remeteu aos nossos debates no Congresso Nacional de 2015, em que abordei os dilemas contemporâneos que se apresentam ao direito das famílias. Divido com vocês alguns trechos da minha exposição (http://jota.uol.com.br/dilemas-do-afeto):
A conhecida expressão da dramaturgia, a vida como ela é, parece encontrar-se felizmente apreendida pelo direito, após longo e resistente percurso. As instituições e as solenidades cedem lugar aos caprichosos desígnios da realidade, mais criativos que a mais ousada das narrativas ficcionais, a fotografarem as relações de família tais como são. Ao mesmo tempo, contudo – outra face da mesma moeda – o florescer da sensibilidade do direito para com o afeto revela inevitavelmente a instabilidade dos sentimentos, como é próprio do humano; aguça a fragilidade dos relacionamentos; e torna transitórias, volúveis e contraditórias as certezas jurídicas acumuladas.
Almeja-se o sentimento verdadeiro e sincero nas relações afetivas, o qual traz em si vulnerabilidade e insegurança, na medida em que se abre mão do esteio de normas heteronômicas (quer ditadas pelo Estado, pela Igreja, por padrões morais da comunidade). A autogestão da liberdade, permanentemente posta à prova, e a substituição do penhor institucional, formal e externo, pela segurança forjada pela autonomia privada, a partir das próprias decisões, mutantes e frágeis, eis o maior desafio da mulher e do homem na comunidade familiar contemporânea.
O novo conceito de unidade familiar (expressão chave para a compreensão da evolução do direito de família) introduzido pela Constituição assinala alteração paradigmática da unidade formal em torno do matrimônio à unidade instrumental à realização dos componentes do núcleo familiar.
Intensas e robustas se apresentaram as resistências contra o que seria a contaminação do direito civil pelas normas de ordem pública constitucional, notadamente do direito de família, reduto da intimidade da vida privada, com sua tradição milenar. Ironicamente, contudo, em nome da liberdade, que tanto prezamos, e dos espaços de não ingerência na vida privada, permitiu-se ao longo do tempo o aviltamento da personalidade da mulher e dos filhos em favor do predomínio masculino, autoritário, sexista e misógino, que estabeleceu em torno do modelo monogâmico do casamento verdadeira poligamia masculina velada vis à vis da sexualidade quase angelical feminina, ameaçada pela chibata do desprezo social diante do menor desvio de conduta em face do paradigma dominante.
A constatação do fracasso da bandeira da não ingerência nos espaços de liberdade, sem uma ordem pública que garanta a igualdade do viver livremente às relações existenciais, certamente contribuiu para a admissão da força normativa das normas constitucionais nas relações privadas. Entretanto, por impressionante relutância cultural, permanece ainda viva a imagem do texto constitucional como elemento adjetivo, que corrobora as interpretações progressistas, que se mantém como limite ao legislador ordinário.
O perigo dessa atitude aparentemente venturosa é que, à míngua de sólida construção argumentativa que insira a axiologia constitucional em cada norma a ser aplicada, acaba-se por oferecer aos magistrados o poder de valoração subjetiva dos conceitos, transformando o debate jurídico em ringue ideológico no qual, infelizmente, nem sempre a maioria da magistratura se mostra alinhada com a família democrática, reduto de liberdade na igualdade e na solidariedade constitucionais.
Segue-se daí a imprescindibilidade de se andar além da admissão da força normativa da Constituição da República e do princípio da dignidade humana como balizadores da ordem pública interna na qual se inserem as escolhas existenciais, os espaços de liberdade privada e a família em particular.
O direito de família, tendo logrado apartar-se do direito civil patriarcal e institucional, precisa urgentemente ser entendido na legalidade constitucional, no âmbito da proteção da pessoa humana. É na axiologia constitucional que a pessoa humana há de ser protegida, amparada pelos princípios da solidariedade social, da igualdade formal e substancial e da dignidade humana, que asseguram a unidade do sistema.
O pluralismo pressupõe liberdade para a construção do próprio destino, atribuindo-se exclusivamente à autonomia privada o planejamento familiar e reprodutivo. Trata-se de espaço indecifrável pelo legislador, na argutíssima percepção de Stefano Rodotà, atribuído à consciência dos interessados, não já dos deputados e senadores, já que destinado a incidir imediatamente sobre a dignidade humana, em sua mais recôndita intimidade. Tal liberdade, contudo, é promovida pelo texto constitucional, que a prevê permeada e qualificada internamente pela solidariedade social.
A pessoa só constrói sua autonomia na interação com o outro, na troca de experiências, no processo dialético do seu amadurecimento e aprendizado de vida. Ao fim e ao cabo, são nesses espaços de intersubjetividade, delimitados pelo olhar do outro, que a pessoa edifica sua personalidade.
O exercício da liberdade exige, pois, responsabilidade, seja no casamento, nas uniões estáveis, nas uniões livres, na filiação, devendo-se respeitar os contratos, compromissos, convenções, ajustes expressos tácitos, estabelecidos.
Nas comunidades familiares, mais do que em qualquer outra relação privada, a solidariedade é limite interno e qualificador da liberdade.


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