A
extensão existencial por testamentos afetivos
Jones Figueirêdo Alves
Cuide-se pensar do uso dos
atuais recursos tecnológicos para a presença continuada de quem assegura uma
vida digital pós-morte, fazendo-se permanecer atuante por uma extensão existencial
organizada propositadamente.
No filme “La Corrispondenza”,
de Giuseppe Tornatore, agora lançado em Madrid (“El País”, 21.07), Amy Rian (Olga Kurylenko) recebe, com maior frequência, de Ed
Phoerum (Jeremy
Irons), um professor de astrofísica, mensagens de voz,
“e-mails”, “sms”, e, ainda, cartas e mensagens de vídeos.
Ele, seu amante, depois de um
relacionamento de seis anos, desaparecera sem que lhe tenha dado nenhuma
explicação. Certo, porém, é que estava morto e as suas mensagens programadas,
em locais e momentos diferentes, estabelecem uma relação atemporal, não afetada
pelo tempo ou pela ausência terrena. Mais que um filme com estórias de amor e
de perda, o seu realismo tecnológico é impactante.
O diretor Giuseppe Tornatore comentou
que a sua ideia, concebida há quinze anos então com identidade de ficção
cientifica, torna-se, agora, perfeitamente factível a permitir que uma pessoa
possa provocar nas demais “a ilusão de que sua vida continua” (l'illusione
che la vita continua”), como sucede com a personagem Ed do seu
filme.
É o que se observa, de fato, com a atual
tecnologia da informação, intensificando as comunicações por “softwares”
notavelmente modernos, logiciários com sequência de instruções programando
processamentos de textos, editorações eletrônicas, serviços de mensagens curtas
– SMS (“Short Message Service”), serviços de mensagens multimídia – MMS
(“Multimedia Messaging Service”), com recursos audiovisuais (imagens e sons); transmissões
de documentos, acesso a computadores remotos, pelas redes de Internet; a
construção de bases de dados especificas e o envio de “e-mails”, entre
outros recursos. A gerência de tais
recursos, de qualquer lugar e em tempo futuro, inclusive, é o que a tecnologia
atual vem garantir.
No ponto, Tornatore proclama que o homem
não deve manter uma relação ambivalente com a tecnologia, por se tratar de “un meraviglioso processo che gli uomini rovinano” (um
maravilhoso processo que os homens arruinam”). De fato, a tecnologia não é
criada para ser uma maldição ou se converter em algo diabólico – diz ele. Muito
ao revès, a relação tecnológica deve ser purificada, empregada ao seu melhor
uso, em proveito dos homens bons e de sua existência.
A “extensão existencial”,
proposta pelo filme e pela tecnologia da informação, indica, em seu efeito
prático, verdadeiros testamentos afetivos, sob a égide, inclusive, de uma
curatela de memórias. Enfim, ativos intangíveis que as
fortunas de espirito e da afeição, como legados, fazem permanecer.
Induvidosamente, novos testamentos legais
têm sido construídos, na esfera do porvir, onde os acontecimentos que sucederão
podem ser programados. Vejamos:
(i) Os “testamentos vitais” (“living
will” - EUA ou “testament de vie” - FR), também conhecidos como instrumentos de
“diretivas antecipadas de vontade” (DVAs), tem sido utilizados como documentos
de declaração volitiva para cuidados e tratamentos médicos. As declarações de
vontade e instruções devem ser aplicadas sobre uma condição terminal do
testador ou em casos de impossibilidade de ele dispor sobre sua vontade, no que
diz respeito à dignificação do seu estado de paciente e/ou de sua morte, à
recusa ou suspensão de tratamentos paliativos, (ortotanásia), etc.
No Brasil, a Resolução nº 1.995/2012, de
30.08.2012, do Conselho Federal de Medicina veio permitir o registro do
“testamento vital”, dito “testamento biológico”, junto à ficha médica ou
prontuário do paciente, vinculando o médico à vontade do testador.
(II)
A vontade expressa em testamento quanto ao destino de sêmens e óvulos
congelados, a constituir o material genético objeto de doação no efeito de uma
futura inseminação artificial pela donatária, tem sido definida, também, como
um novo instrumento testamentário, este destinado para o surgimento dos “filhos
de herança”, programados “post mortem” para pessoas determinadas.
É o denominado “testamento genético”,
quando os futuros pai ou mãe, doadores de sêmens ou óvulos, deixam instruções escritas
no sentido de o material genético congelado ser utilizado para a concepção e
nascimento de seus filhos, após suas mortes, com escolha pessoal de quem os
utilize. Escolha feita pelo próprio testador ou pessoa por ele indicada. Em
resumo: o material genético passa a se constituir um bem de inventário,
destinando-se servir à procriação do(a) falecido(a).
Uma advogada israelense, Irit Rosenblum,
foi quem teve a ideia do instrumento legal, elaborando documentos de ultima
vontade onde se permitisse aos herdeiros a disposição do material genético, com
o uso que lhe fosse determinado pelo testador ou conforme suas diretivas.
(iii) Também existem os “testamentos
éticos”, onde a vida depois da vida perdura nas
ensinanças de lições de vida, deixadas ao depois por quem, no aprendizado da
própria vida, empreendeu práticas éticas que bem serviram à sua história de
vida pessoal.
O “Testamento Ético”
(“Ethical Will”), como “legado de patriarca”, tem sido agora amplamente
praticado no exterior, nomeadamente na Itália e nos Estados Unidos. São lições
de partilha de vida, ditadas como expressões de última vontade, anunciando valores
e conselhos.
Sua origem é remota, de
tradições religiosas, a exemplo de antigos escritos judaicos. “Agora, pois,
escrevei-vos este cântico, e ensinai-o aos filhos de Israel...” (Deuteronômio,
31,19). Não custa lembrar, ainda, o testamento ético do médico Mose Bem Maimon
- “Maimônides” (1135-1204), a exemplo da “Oração ao Médico” e das “Cartas ao
Perplexo”; e os testamentos de Abraham bar Hiya (1130), Najmânides (1260),
Falquera (1330), entre outros.
Atualmente, nos Estados
Unidos, gestores de patrimônios financeiros de famílias, os chamados “gestores
de fortuna”, e consultores técnicos em “family
office”, a par de formarem fundações, institutos de pesquisas e organismos
de filantropia estratégica, tem aconselhado a elaboração de testamentos éticos
como documentos de dignidade para o futuro das próximas gerações. Desse modo,
mais significativa tornar-se-á a gestão do patrimônio material, à medida das
novas colocações em prática dos valores imateriais legados.
Não há negar, designadamente, que o
futuro sempre acontece na lei e nos instrumentos jurídicos. Vale lembrar,
aliás, que o nosso Código Civil já prevê a paternidade diferida (art. 1.597,
inciso IV) e a lei portuguesa (nº Lei 32, de 26.06.2006) admite lícita a
transferência “post mortem” de embrião, diante de projeto parental definido por
escrito antes da morte do pai (art. 22, 3).
Pois bem. Agora há cogitar dos
testamentos afetivos, dando-se a esse novo Instrumento
um amplo espectro ao parágrafo 2º do artigo 1.857 do Código Civil, segundo o
qual “são válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial,
ainda que o testador somente a elas tenha se limitado”.
De efeito, a par da
curadoria de dados dos usuários da internet, com a manutenção de perfis de
pessoas falecidas, a serviço da memória digital, como já tem sido exercitada
(Pierre Lévy, 2006), o instituto do testamento afetivo, notadamente no plano da
curadoria de memórias da afeição, apresenta-se, agora, não apenas como uma
outra inovação jurídica, pelo viés tecnológico.
Mais precisamente, os
testamentos afetivos poderão ser o instrumento, eloquente e romântico (um novo
“L'hymne à L'amour”), de pessoas, apesar de mortas, continuarem existindo pelo amor
que elas possuíam e por ele também continuarem vivendo.
Jones Figueiredo Alves é Desembargador
Decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Mestre em Ciências
Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa (FDUL).
Nenhum comentário:
Postar um comentário