Direito de Família e casuística: a culpa é
da mulher do juiz
da mulher do juiz
José Fernando Simão. Livre-docente, Doutor e Mestre
da Faculdade de Direito Civil da USP, onde é professor. Advogado e consultor
jurídico.
Publicado
originalmente no site Consultor Jurídico.
“Perdigão perdeu a
pena
Não há mal que lhe
não venha”
I
– Provimento 56 do CNJ – Garantia de cumprimento da vontade do morto
O Conselho Nacional de Justiça editou em 14 de julho, ou seja, há pouco mais de uma semana, ato que dispõe sobre a “obrigatoriedade de consulta ao Registro Central de Testamentos on-line para processar os inventários e partilhas judiciais” e extrajudiciais.
O Conselho Nacional de Justiça editou em 14 de julho, ou seja, há pouco mais de uma semana, ato que dispõe sobre a “obrigatoriedade de consulta ao Registro Central de Testamentos on-line para processar os inventários e partilhas judiciais” e extrajudiciais.
O Provimento 56
pretende exigir que se verifique a existência de testamentos públicos e
particulares como requisito prévio aos procedimentos de inventário judicial ou
à lavratura de escritura pública (extrajudicial). A questão de fundo é o
respeito à vontade do morto que pode ter feito um testamento que permanece
desconhecido ou mesmo fora ocultado por alguém.
É por isso que o
artigo 1º do provimento exige que seja acessado o Registro Central de
Testamentos on-line (RCTO) para se buscar a existência de testamentos. O artigo
2º exige então a juntada de certidão negativa que declare a inexistência de
testamentos, documento este expedido pela Central Notarial de Serviços
Compartilhados – que gerencia o RCTO.
Em suma, a nova
regra, bem redigida e de excelente valia, garante o cumprimento do testamento
público ignorado pelos herdeiros ou dolosamente ocultado para que a vontade do
morto não atinja seu desiderato.
Vozes poucas se
levantaram para criticar o procedimento como se esse fosse “uma nova e
desnecessária burocracia” para dificultar a vida das pessoas. Os argumentos
trazidos foram: “trata-se de formalismo com implicação financeira às pessoas
que não tem dinheiro para pagar emolumento público” e “não há como se provar a
existência de testamento particular, logo se deveria exigir o registro deste ou
mesmo acabar logo com essa modalidade para garantir cumprimento da vontade do
morto”.
II
– Direito de Família e casuística
Não tem sido
infrequente ouvir em palestras e mesmo ler certos textos mais ligeiros que
afirmam que no Direito de Família não se pode falar em certezas, ou seja, que
haveria uma relativização absoluta do sistema. Ainda, que a casuística é a
regra no sistema e as certezas exceções.
Essas opiniões
apressadas revelam que aquele que as professa está negando ao Direito de
Família sua existência como sistema jurídico e ao mesmo tempo se demitindo da
função de ensinar, para qual se exige o caráter científico. Não é verdade que o
sistema hoje é o da casuística e que não há certezas.
Os romanos
construíram, a partir do caso concreto, um direito casuístico do qual se
extraíram as bases para, no século XIX, os alemães desenharem categorias
jurídicas. A construção da categoria é uma conquista científica, pois garante a
correta compreensão do sistema e sua aplicação uniforme. O inseguro é
certamente injusto.
O fato de o
Direito de Família ter sido relido pelos preceitos constitucionais e a doutrina
ter contribuído com institutos “novos”, que tomaram corpo e se consolidaram,
não significa que o Direito de Família responde à sociedade com “depende do
caso concreto”.
Essa antirresposta
é a falência do sistema como um todo e abre espaço para despautérios e
injustiças. O conceito de afeto, por exemplo, não é vale-tudo. Aliás, parte
grande da doutrina o constrói de maneira científica.[1]
III
– Testamento público e particular: compreensão das diferenças
Silvio Rodrigues,
meu professor de Direito Civil[2], ensinava que cada modalidade de
testamento tem suas vantagens e desvantagens.
O testamento
público tem a vantagem de não se perder, pois o instrumento consta do Livro do
Tabelionato de Notas. Tem, ainda, maior rigor na observância da vontade do
testador, pois é feito perante tabelião que assegura a liberdade deste e o
cumprimento das solenidades prescritas em lei. É a forma mais utilizada no
Brasil. Há um inconveniente, pois a vontade é conhecida pelo tabelião e pelas
duas testemunhas. Em tese, qualquer pessoa tem acesso ao conteúdo. O elemento segurança
o caracteriza[3].
O testamento
particular, feito pelo testador e lido em voz alta na presença de três
testemunhas, garante que seu conteúdo permaneça inacessível, pois a cédula
permanece com o testador ou pessoa de sua confiança. Tem por vantagem o fato de
sequer se saber de sua existência, já que a lei não exige, corretamente, seu
registro. É forma pouquíssimo utilizada no Brasil. Há o risco de se perder a
cédula, desta ser destruída e a vontade do morto nunca ser cumprida. O elemento
sigilo, não absoluto, o caracteriza.
Em suma, é a
autonomia privada que marca todo o Direito Civil; do testador que permite a
escolha entre uma ou outra forma de testar. Não há razão para se aventar o
“registro do testamento particular” nem sua retirada do sistema. É mais simples
que se dê ao testador o direito de escolha, sabendo ele das vantagens e
desvantagens das várias formas de testar.
A crítica à
“burocracia” contida no Provimento 56 indica desconhecimento do tema. Garantir
o cumprimento da vontade do morto por meio de uma simples informação contida no
sistema não é burocracia. É respeito ao testamento, respeito ao testador e
respeito ao cidadão brasileiro.
Já há em São Paulo
regras expressas do Tribunal de Justiça que determinam que o Colégio Notarial
deve informar a existência de testamentos.Sobre custos, a questão é de política
pública. Não fala a resolução em cobrança ou custos para obtenção da certidão.
Há várias certidões negativas obtidas virtualmente sem qualquer custo
atualmente.
Se custos houver,
que seja franqueada gratuitamente para aqueles que não podem pagar. Contudo, o
fato de existirem custos (que certamente serão razoáveis) não reduz a
importância nem a excelência da ideia.
IV
– A culpa é da mulher do juiz
As críticas à
resolução são precipitadas e infundadas. O conteúdo é adequado ao sistema e a
doutrina especializada aplaudirá a iniciativa. Infelizmente, se adotarmos a
premissa de que Direito de Família é casuística; que não existem regras e sim o
caso concreto; que testamento particular deve ser registrado; que a obtenção de
certidão é cara, logo a regra é ruim, a doutrina se demite de sua função de
construir ciência e colaborar com a construção de um Direito de Família melhor.
E, para concluir,
depois desse discurso vazio, vêm as críticas às decisões judiciais. A culpa é sempre do juiz “que não sabe julgar, que deveria
ler melhor o processo, que não aplica a lei, porque cuida da casuística”.
É hábito do ser
humano atribuir ao outro suas próprias culpas. Gil Vicente, no Auto da Barca
do Inferno, na longa discussão entre o magistrado que em vida recebia
subornos e o Diabo relata, de maneira muito jocosa, tal fato:
Juiz
- E aonde vai o batel?
Diabo
- No inferno vos poremos.
Juiz
- Como? À terra dos demos há de ir um corregedor?
Diabo
- Santo descorregedor, embarcai e remaremos.
Juiz
- Non est de regulae iuris.[4] (...)
Diabo
– E as peitas dos judeus que vossa mulher levava?[5]
Juiz
- Isso eu não no tomava, eram percalços seus, não são peccatus meus, peccavit
uxore mea[6]
Em suma, a culpa é
sempre do outro!
[3] Há estados em que, por força de regras dos
tribunais de Justiça, a certidão do testamento não pode ser dada livremente.
[4] “Não é a regra da lei”. O juiz pretende discutir
com o Diabo a lei que se aplica ao caso concreto. No fundo, quer regra própria
por se juiz. É a casuística.
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