Guarda Alternada - Animais
domésticos: três perplexidades na defesa de seus interesses
José Fernando
Simão. Advogado. Professor Associado da Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco/USP. Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito
Civil pela USP. Professor de cursos preparatórios e de especializações.
Autor da Editora Atlas.
Publicado no Jornal
Carta Forense.
Desde muito pequeno
tenho grande apreço pelos animais e seu estudo. Por influência de meu tio-avô
materno, Walter Narchi, Professor Titular da Faculdade de Biologia da USP, que
sempre me presenteou com livros sobre animais, tornei-me um curioso da vida animal.
Desde tenra idade,
assisto aos diversos programas televisivos a respeito da vida animal, que,
atualmente, em razão da tecnologia, revela detalhes incríveis e antes não
imaginados da vida dos animais não humanos.
Alguns animais me
cativam e muito. Entre os caçadores, os cetáceos e em especial as orcas, que
são mais próximas aos golfinhos e botos que às baleias. Aliás, as técnicas de
caça desses cetáceos impressionam pela coordenação, precisão e estilo. A famosa
caça em Valdez, Argentina, em que as orcas quase encalham para, arrastando-se,
obterem leões marinhos para sua alimentação é prova da sofisticação dessa
espécie que, inclusive, dá aulas aos mais novos para que esses não tenham medo
de encalhar. Ainda, há a pesca no mar norte. As orcas nadam em torno do
cardume, algumas em sentido horário e outras anti-horário, para atordoarem os
peixes. Depois com leves batidas de suas caudas deixam os peixes “tontos” e
iniciam uma refeição suculenta, sem riscos de fuga da presa. Efetivamente, as
técnicas de caça das orcas são mais sofisticadas e complexas que aquelas dos
carnívoros terrestres.
Não foi com pouca
surpresa que li duas notícias a respeito de decisões do Poder Judiciário quanto
aos animais que necessitam de alguma reflexão. Segundo noticiado pelo CONJUR[1], “ juiz Fernando Henrique Pinto,
da 2ª Vara de Família e Sucessões de Jacareí (SP), estabeleceu a guarda
alternada de um cão entre ex-marido e ex-mulher. Em sua decisão, Pinto apontou
que o cão não pode ser vendido, para que a renda seja dividida entre o antigo
casal. Além disso, diz, por se tratar de um ser vivo, a sentença deve levar em
conta critérios éticos e cabe analogia com a guarda de humano incapaz. O casal
está em processo de separação judicial e, provisoriamente, a guarda do cão será
alternada: uma semana de permanência na casa de cada um”.
A notícia causa
espanto: guarda alternada de cachorro por analogia com a guarda de humano
incapaz?
Há tempos é preciso
ser dito que me preocupa a forma de defesa dos animais domésticos que vem sendo
proposta por alguns “estudiosos”. Isso porque se percebe que muitas orientações
pretendem transpor ao animal a noção de melhor interesse que é própria do ser
humano, esquecendo-se que o melhor interesse do animal pode não ser (e quase
nunca o é) o melhor interesse de seus donos[2].
Tratar o cão ou
gato como se crianças fossem, com todo amor e carinho humanos, atende ao melhor
interesse do animal?
Algumas questões
tormentosas vem à lume ao se tratar do melhor interesse do animal, questões
essas que nem sempre são objeto de debate pelos ditos “defensores dos direitos
dos animais não humanos”.
A primeira, para
já, é a questão reprodutiva. Todos os animais, humanos ou não, tem direito a
exprimirem sua sexualidade, seja pelo jogo da conquista, da “sedução”, e
posteriormente por meio de conflitos entre os membros da espécie (normalmente
os machos) para, ao fim de um ritual que pode levar dias, chegar-se à cópula.
Pergunto: a castração de cães e gatos não lhes retira o direito ao exercício de
sua sexualidade? Como fica o livre direito à reprodução que é próprio a todos
os animais? O fato de se trancar o gato no apartamento impedindo que saia e
encontre gatas para sexo não retira do animal um mínimo existencial?
Em suma: porque nós
humanos condenamos cães e gatos à infertilidade ou abstinência sexual quando
nós mesmos praticamos nossa sexualidade?
A segunda
intrigante questão é a do convívio do animal não humano com outros de sua
espécie. Todos os mamíferos convivem, de maneira perene (leões, elefantes etc)
ou temporária (para acasalamento e cuidados com a prole, como as onças) com
outros de sua espécie.
Não se trata de
convívio em “festas de aniversários” promovidas pelo dono do animal. É convívio
se e quando o animal tiver vontade de fazê-lo. O atual modelo de amor dos seres
humanos a seus “pets” permite esse convívio com os demais de sua espécie?
Os donos de gatos,
sempre muito carinhosos, deixam normalmente que seu animal “dê uma volta” na
rua e encontre outros da espécie? Os donos de cães, especialmente os de pequeno
porte (chamados cães de apartamento) permitem ao animal expressar seus
sentimento a outros cães com periodicidade ou entendem que basta o amor na
forma humana para que o cão seja feliz?
A terceira questão
importante são as manifestações físicas de amor dos humanos com seus “pets”. É
comum que se veja donos e amigos dos donos abraçando, afagando, “apertando”
cães e gatos. Essa prova de amor físico de humanos para com animal humanos faz
bem, agrada cães e gatos? Alguém já se imaginou, na situação do cão, sendo
“abraçado” o dia todo por alguém que não é de sua espécie como prova de carinho?
Qual a sensação que
você leitor sente ao ser abraçado por um estranho? A de privacidade invadida,
sinto eu. Por que é “bom” para o animal doméstico ser abraçado por estranhos?
Agora talvez a mais
melindrosa das questões: guarda compartilhada/alternada de cães e gatos atendem
ao melhor interesse dos animais domésticos?
A resposta é a
seguinte: só se pode afirmar que sim depois de realizado um estudo por
profissional da área (biólogo, veterinário etc) que ateste a efetiva vantagem
ao animal não humano em ser tratado como se humano fosse. A simples decisão de
guarda alternada ou compartilhada de cães e gatos sem qualquer participação de
um profissional que avalie o bem estar do animal e as suas especificidades se
revela desastrosa.
Ainda que sem
invocar estudos científicos, sabe-se que os gatos são territorialistas. O fato
de terem de mudar de casa semanalmente é fator de estresse que não se
justifica, em regra. Será, muitas vezes, causa de sofrimento, salvo opinião de
especialista em sentido contrário.
Agora pensemos no
caso do cão cuja guarda ficou alternada por decisão judicial. Algumas perguntas
precisavam ser respondidas antes da decisão: 1) o espaço em que ficará o cão
nas duas casas é suficiente para um animal de seu porte? 2) os ex-cônjuges tinham
pelo cão a mesma relação afetiva, pensando apenas no bem estar do animal? 3) os
ex-cônjuges terão tempo suficiente para os cuidados com o cão ou delegarão tal
função a terceiros?
Em suma, o que se
propõe com as presentes linhas é lançar uma dúvida insuperável àqueles que
defendem os direitos dos animais domésticos: a transposição da noção de melhor
interesse do ser humano aos animais domésticos efetivamente significa que o
melhor interesse do animal foi atendido?
[1] http://www.conjur.com.br/2016-fev-11/juiz-determina-guarda-compartilhada-cao-processo-divorcio
[2] Será que dar
banhos diários no cão em nome de uma suposta higiene é bom para o animal?
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