É NAMORO OU UNIÃO
ESTÁVEL?
Texto originalmente
publicado no Jornal O Liberal, de Belém do Pará.
Zeno Veloso
Li na coluna de Monica Bergamo que os advogados de Luiza Brunet procuraram o
escritório de advocacia Luiz Kignel, que representa o empresário Lírio
Parisotto - que teria agredido a modelo e atriz, em Nova York-, para discutir
os termos da separação dos dois. Segundo o advogado do rico empresário, os
procuradores da bela Brunet pediram R$100 milhões pelo que seria a formação do
patrimônio durante a união estável. Nem foi oferecida contra-proposta, sob o
argumento de que "Não houve união estável alguma. O que houve foi um
namoro, com vários rompimentos, inclusive". Uma eventual disputa na
Justiça, observa a bem informada colunista, pode ser uma das maiores do país:
"Parisotto está entre os 30 empresários mais ricos do Brasil com fortuna
estimada em US$ 1,6 bilhão".
Enfim, a polêmica vai ser grande. Uma parte vai argumentar que existiu uma
união estável, uma entidade familiar, mostrando que os protagonistas tinham
convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo
de constituição de família. E mais, que a companheira participou do crescimento
do patrimônio do companheiro, havendo o chamado "esforço comum", pelo
que teria direito a uma indenização.
A outra parte diz, simplesmente: "nada disso! Não houve união estável,
coisa alguma. Não havia convivência como marido e mulher, nem, muito menos, o
objetivo de constituir uma família, que tem de ser dos dois parceiros. Enfim,
existia somente um namoro, em que os namorados, pessoas adultas, independentes,
encontravam-se muitas vezes, mantinham relações íntimas, conviviam algum tempo
juntos, inclusive no exterior, e tudo, afinal, não passava de um namoro, embora
um namoro qualificado, mas sem maiores consequências, sobretudo, sem nenhuma
consequência de ordem econômica, a título de divisão de bens, pagamento de
pensão, sucessão hereditária, ou coisa que o valha.
A matéria é controvertida, os próprios doutrinadores estão divididos, as
opiniões são discrepantes, as discussões acesas, intensas. Neste artigo, vou
expor o que penso, dar meu parecer sobre o tema, não com o intuito de ensinar,
mas de trazer alguns subsídios para o debate.
A união estável é uma entidade familiar constitucionalmente prevista e
protegida, tão digna e respeitável quanto a que decorre do casamento. Seus
requisitos são apontados no art. 1.723 do Código Civil, que diz: "É
reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher,
configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família". Por força de interpretação
sistemática e construtiva, o Supremo Tribunal Federal-STF reconheceu a existência
de união estável, como entidade familiar, também entre pessoas do mesmo sexo.
Como se vê, essa entidade é uma situação de fato, classificada pelo notável
Paulo Lôbo (Famílias, Saraiva/SP, 2008, pág. 152)
como "ato-fato jurídico", que não depende para a sua constituição ou
dissolução de formalidades ou solenidades, como o casamento.
Destacamos, no citado art. 1.723 do Código Civil, elemento objetivo e elemento
subjetivo. A união estável só está configurada com a junção desses elementos.
O elemento objetivo, exterior, visível, que se percebe no meio social, que se
demonstra inequivocamente aos olhos de todos, é a convivência pública, vale
dizer, notória, ostensiva, dos protagonistas do relacionamento afetivo, que não
pode ser escondido, clandestino, mantido em segredo. E a convivência deve ser
contínua, isto é, firme, sem hiatos ou interrupções marcantes. Requer-se,
então, estabilidade. E tem de ser duradoura, prolongada no tempo, não existindo
entidade familiar se a relação é recente, efêmera, eventual. Embora não seja
fixado um tempo mínimo para a sua configuração (dois anos, por exemplo, como
prevê a lei portuguesa), algum tempo de convivência é fundamental, para que a
união estável se estabeleça. Nada que tem de ser duradouro pode ser breve ou
transitório. Os parceiros devem viver como se fossem cônjuges, com aparência de
casamento, ou, para usar a expressão latina, more uxorio, numa comunhão de vida. Mas não
se exige que morem na mesma casa, sob o mesmo teto, embora seja assim, na
grande maioria dos casos.
Ao lado desse elemento objetivo, vem o elemento subjetivo, interno, moral: a
intenção de constituir família, a convicção de que se está criando uma entidade
familiar, assumindo um verdadeiro e firme compromisso, com direitos e deveres
pessoais e patrimoniais semelhantes aos que decorrem do casamento, o que tem de
ser aferido e observado em casa caso concreto, verificados os fatos, analisados
o comportamento, as atitudes, consideradas e avaliadas as circunstâncias.
Nem sempre é fácil distinguir essa situação de outra, o namoro, que também se
apresenta informalmente no meio social. Numa feição moderna, aberta, liberal,
especialmente se entre pessoas, adultas, maduras, que já vêm de relacionamentos
anteriores (alguns bem sucedidos, outros nem tanto), eventualmente com filhos
dessas uniões pretéritas, o namoro implica, igualmente, convivência íntima -
inclusive, sexual -, os namorados coabitam, frequentam as respectivas casas,
comparecem a eventos sociais, viajam juntos, demonstram para os de seu meio
social ou profissional entre os dois há uma afetividade, um relacionamento
amoroso. E quanto a esses aspectos, ou elementos externos, objetivos, a
situação pode se assemelhar - e muito - a uma união estável. Parece, mas não é!
Pois falta um elemento imprescindível da entidade familiar, o elemento
interior, anímico, subjetivo: ainda que o relacionamento seja prolongado,
consolidado, e por isso tem sido chamado de "namoro qualificado", os
namorados por mais profundo que seja o envolvimento deles, não desejam e não
querem - ou ainda não querem - constituir uma família, estabelecer uma entidade
familiar, conviver numa comunhão de vida, no nível do que os antigos chamavam
de affectio
maritalis. Ao
contrário da união estável, tratando-se de namoro - mesmo do tal namoro
qualificado -, não há direitos e deveres jurídicos, mormente de ordem
patrimonial entre os namorados. Não há, então, que falar-se de regime de bens,
alimentos, pensão, partilhas, direitos sucessórios, por exemplo.
O pressuposto subjetivo, a convicção de que se está constituindo uma família,
vivendo numa entidade familiar, deve ser comum aos conviventes. Se apenas um
deles entende assim, ou só um está convicto disso, o elemento não está
cumprido, pois não pode ser unilateral. Mas, como se trata de pressuposto
interno, anímico, psicológico, é de verificação tormentosa, intrincada, e de
dificílima comprovação. Maria Berenice Dias, com a experiência de
Desembargadora e do alto de sua estatura de jurista consagrada, depõe:
"Não é fácil distinguir união estável e namoro, que se estabelece pelo
nível de comprometimento do casal, sendo enorme o desafio dos operadores do
direito para estabelecer sua caracterização" ( in
Manual de Direito das Famílias, 10ª ed. RT/SP, 2015, pág. 261). Para
resolver a questão, com suas sutilezas, dificuldades, o magistrado pode
recorrer à técnica da ponderação. O Enunciado nº 17 do IBDFAM - Instituto
Brasileiro de Direito de Família, aprovado em outubro de 2015, seguindo proposta
de Flávio Tartuce, prevê: "A técnica de ponderação, adotada expressamente
pelo art. 489, § 2º, do Novo CPC, é meio adequado para a solução de problemas
práticos atinentes ao Direito das Famílias e das Sucessões".
Muito autores criticam e apontam os graves problemas e os excessos causados por
uma legislação abundante e expansiva a respeito de união estável,
regulamentando todos os aspectos, estabelecendo variados efeitos pessoais e
consequências de ordem patrimonial a esse relacionamento afetivo entre os
companheiros. Em Portugal, a chamada união de facto tem efeitos bem reduzidos,
infinitamente menores, mais modestos do que os consagrados na ordem jurídica
brasileira. Mesmo assim, Hugo Cunha Lança (in Revista de Ciências
Empresariais e Jurídicas, nº 24, Porto, Portugal, 2014, pp. 179-232) proclama,
advertindo: "Dormir com alguém, acordar com o Estado". O genial João
Baptista Villela (Repensando o Direito de
Família, in Anais do
I Congresso Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM, coordenação de Rodrigo da
Cunha Pereira, Del Rey-Belo Horizonte, 1999, pág. 23) observa:
"Especialmente grave tem sido nos últimos anos o furor regulamentatório da
República em matéria das chamadas uniões estáveis. Não há na Constituição uma só
palavra de onde se possa derivar a suposta necessidade de submeter essas
formações espontâneas à cravelha da lei. O que quis e quer a Constituição é,
por óbvias razões de justiça social, estender a tais construções informais o
manto protetor da lei, especialmente os benefícios da seguridade social".
Num artigo doutrinário instigante, cujo título já antecipa o pensamento do
autor: O
Paradoxo da União Estável: um Casamento Forçado ( in Revista Nacional de direito de Família
e Sucessões, Lex Magister/IASP, v. 2, p. 5-21, 2014), Mário Delgado protesta,
também, quanto ao excesso de regulamentação da união estável, opinando:
"Não compete ao legislador, nem muito menos à jurisprudência, regulamentar
a união estável a ponto de atribuir-lhe direta e autoritariamente os efeitos da
sociedade conjugal, o que implica, na prática, transformar a união estável em
casamento contra a vontade dos conviventes, aos quais estar-se-ia impondo um
verdadeiro 'casamento forçado'".
Se os que vivem, conscientemente, nessa entidade familiar, já se sentem
sufocados com a minuciosa normatização de suas vidas, imaginem as preocupações,
a aflição e o medo dos que assumem um relacionamento afetivo de simples namoro,
e têm o justo receio de que essa situação possa ser confundida com a da união
estável...
Diante disso, pela insegurança que envolve o assunto, para evitar riscos e
prejuízos que podem advir de uma ação com pedidos de ordem patrimonial,
alegando-se a existência de uma união estável, com o rol imenso de efeitos
patrimoniais que enseja, quando, de fato e realmente, só havia namoro, sem
maior comprometimento, algumas pessoas combinam e celebram o que se tem
denominado contrato de namoro. Já se vê que não é acordo de vontades que tem por
objeto determinar, singelamente, a existência de um namoro, que, se assim
fosse, nem contrato, tecnicamente, seria. Mas, deixando de lado a questão
terminológica e indo direto ao ponto, tal avença, substancialmente, é uma
declaração bilateral em que pessoas maiores, capazes, de boa-fé, com liberdade,
sem pressões, coações ou induzimento, confessam que estão envolvidas num
relacionamento amoroso, que se esgota nisso mesmo, sem nenhuma intenção de
constituir família, sem o objetivo de estabelecer uma comunhão de vida, sem a
finalidade de criar uma entidade familiar, e esse namoro, por si só, não tem
qualquer efeito de ordem patrimonial, ou conteúdo econômico.
Sintetizando: as partes declaram, expressa e inequivocamente, sem conotação de
fraude, intuito dissimulatório ou ilicitude, observados os princípios de
probidade e boa-fé, e sem violar normas imperativas, a ordem pública e os bons
costumes, a inexistência de uma relação jurídica. Em que lei há uma proibição
de que isso seja feito? E se não há proibição, em nome do liberalismo, da
autonomia privada, da democracia, vigora o secular princípio: permittitur
quod non prohibetur = tudo
o que não é proibido é permitido.
A melhor doutrina abona esse entendimento: José Afonso da Silva (Comentário Contextual à Constituição,
Malheiros/SP, 7ª ed., 2010, pág. 83), comentando o art. 5º, II, da Carta Magna,
define: "a liberdade só pode ser condicionada por um sistema de legalidade
legítimo". Dissertando sobre o princípio da legalidade, Celso Antônio
Bandeira de Mello (Curso de Direito
Administrativo, Malheiros/SP, 20ª ed., pág. 94) enuncia: "Ao
contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a
Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autoriza".
A meu ver, não se trata de "mercantilizar o envolvimento" ou de
"monetarizar o afeto", como alguns doutrinadores criticam (inclusive,
a eminente mestra Maria Berenice Dias, no Manual, antes
citado), mas, apenas, de identificar o relacionamento amoroso que mantêm,
deixar clara e bem definida a extensão do mesmo, consignar e esclarecer que,
pelo menos no momento presente, não passa de namoro. Quer-se prevenir e evitar
a alegação da existência de efeitos materiais que podem ser de grande monta, de
altíssimo valor.
Advirta-se, entretanto: se, ao contrário do que informa a declaração que
emitiram, a união estável entre eles está configurada, ou, posteriormente, vem
a se constituir, é isso que vale e tem efeito, e não o que se declarou no
chamado contrato de namoro
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