DO
APADRINHAMENTO:
BREVE
ANÁLISE DA LEI PORTUGUESA E DO PROJETO DE LEI BRASILEIRO[1]
Flávio
Tartuce[2]
Entre os dias
1º e 2 de junho de 2016, promoveu-se em Portugal o I Encontro IBDFAM-CDF, realizado
pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família e pelo Centro de Direito da
Família, ligado à secular Universidade de Coimbra. O evento teve a coordenação
dos Professores José Fernando Simão, pelo Brasil, e Guilherme de Oliveira, por
Portugal, contando com a participação de mais de cinquenta especialistas; entre
os brasileiros, os Professores Zeno Veloso, Giselda Hironaka, Rodrigo Toscano
de Brito, Rodolfo Pamplona Filho, Giselle Groeninga, João Ricardo Brandão
Aguirre, Fernanda Tartuce e Rui Carvalho Piva.
Um dos temas
abordados no evento, especialmente pelos juristas portugueses, foi o apadrinhamento civil, tratado em terras
lusitanas pela Lei n. 103, de 11 de Setembro de 2009, que teve como um dos seus
elaboradores justamente o Professor Guilherme de Oliveira. Este breve texto
pretende trazer algumas reflexões iniciais sobre o instituto, na esteira dos debates
que ocorreram naquele encontro em Portugal, confrontando a categoria dos
patrícios com o Projeto de Lei n. 171, de 2013, aprovado recentemente pela
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal Brasileiro.
O
apadrinhamento civil português traz amplos efeitos jurídicos aos envolvidos,
definindo o art. 2º da Lei n. 103/2009 que o instituto é "uma relação
jurídica, tendencialmente de carácter permanente, entre uma criança ou jovem e
uma pessoa singular ou uma família que exerça os poderes e deveres próprios dos
pais e que com ele estabeleçam vínculos afectivos que permitam o seu bem-estar
e desenvolvimento". Ainda nos termos do mesmo comando, o apadrinhamento civil
deve ser constituído por homologação ou decisão judicial, sujeita a registro
civil.
No que diz
respeito à capacidade das partes, podem apadrinhar pessoas maiores de 25 anos,
previamente habilitadas para tanto, dando-se preferência aos seus familiares; a
pessoas idôneas ou a famílias de acolhimento a quem a criança ou o jovem tenha
sido confiado em processo de promoção e proteção; ou mesmo a eventuais tutores
(arts. 4º e 11, item n. 5, da Lei n. 103/2009).
Na outra
ponta, quanto à capacidade para ser apadrinhado, o art. 5º da Lei n. 103/2009 estabelece
que, desde que o apadrinhamento civil apresente reais vantagens para a criança
ou o jovem, e desde que não se verifiquem os pressupostos da confiança com
vista à adoção, pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor de 18 anos
que a) esteja a beneficiar-se de uma
medida de acolhimento em instituição; b)
esteja a beneficiar-se de outra medida de promoção e proteção; c) encontre-se em uma situação de perigo
confirmada em processo de uma comissão de proteção de crianças e jovens ou em
processo judicial; d) para além dos
casos previstos anteriormente, seja encaminhado para o apadrinhamento civil por
iniciativa das pessoas ou das entidades previstas na mesma lei. Em complemento,
está previsto que também pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor
de 18 anos que esteja a beneficiar-se de confiança administrativa, confiança
judicial ou medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista
a futura adoção ou a pessoa selecionada para a adoção quando, depois de uma
reapreciação fundamentada do caso, se mostre que esta é inviável.
O
apadrinhamento civil português somente pode ser concedido uma vez, regido pela
regra da unicidade, expressa no art. 6º
da Lei n. 103/2009. Enuncia a norma que enquanto subsistir um apadrinhamento
civil não pode constituir-se outro quanto ao mesmo afilhado. O preceito estabelece
como exceção a hipótese em que os padrinhos vivem em família, seja por
casamento ou união de facto (a união estável portuguesa).
A existência
de amplos efeitos decorrentes do instituto é clara pelo que consta do art. 7º
da Lei n. 103/2009, que determina a existência de responsabilidades parentais
dos padrinhos, o que corresponde, pelo menos em parte, à nossa ideia de poder
familiar; ou de autoridade parental, como querem alguns. Nesse contexto, os
padrinhos exercem amplamente as responsabilidades parentais, ressalvadas as
eventuais limitações previstas no compromisso de apadrinhamento civil ou na
decisão judicial. Aplicam-se, no que couber, algumas regras da tutela,
constantes entre os arts. 1936º e 1941º, 1943º e 1944º do Código Civil
Português; os dois últimos no caso de falecimento, de inibição do exercício da
responsabilidade parental pelos pais ou de serem estes incógnitos. Em complemento,
cabe a intervenção do Ministério Público para a proteção dos interesses do
menor.
Os pais biológicos
do apadrinhado, em regra, beneficiam-se dos direitos expressamente consignados
no compromisso de apadrinhamento civil, a saber: a) conhecerem a identidade dos padrinhos; b) disporem de uma forma de contatar os padrinhos; c) saberem o local de residência do
filho; d) disporem de uma forma de
contatar o filho; e) serem informados
sobre o desenvolvimento integral do filho, a sua progressão escolar ou
profissional, a ocorrência de fatos particularmente relevantes ou de problemas
graves, nomeadamente de saúde; f) receberem
com regularidade fotografias ou outro registro de imagem do filho; g) visitarem o filho, nas condições
fixadas no compromisso ou na decisão judicial, designadamente por ocasião de
datas especialmente significativas, caso dos aniversários de todos (art. 8º da
Lei n. 103/2009). Em suma, quem passa a exercer a guarda fática da criança ou do
adolescente são os padrinhos, havendo um direito de amplo acesso físico e
informacional por parte dos pais biológicos.
Com a
finalidade de concretizar o instituto, as relações entre pais e padrinhos são
regidas pelos princípios do mútuo
respeito; da preservação da intimidade da vida privada e familiar, do bom nome
e da reputação do afilhado; e da cooperação na criação de condições adequadas
ao bem-estar e desenvolvimento do apadrinhado (art. 9º da Lei n. 103/2009).
Por fim, com
relevo para esta breve análise, geral e comparativa, no que diz respeito aos
alimentos, o art. 13 da norma lusitana considera os padrinhos ascendentes em primeiro
grau do afilhado, para efeito da obrigação de lhe prestar alimentos. Porém, são
precedidos pelos pais deste em condições de satisfazer tal encargo. O afilhado,
por seu turno, é considerado descendente em primeiro grau dos padrinhos para
efeito da obrigação de lhes prestar alimentos, mas é precedido pelos filhos
destes em condições de satisfazer este encargo. Em outras palavras, padrinhos e
afilhados são tratados como pais e filhos para os devidos fins alimentares, mas
de maneira subsidiária.
Na verdade, o
projeto de lei brasileiro sobre apadrinhamento
legal, na denominação que consta da proposta, é bem mais
restrito do que o tratamento previsto na norma lusitana. Cinge-se a projeção a
tratar apenas de consequências alimentares decorrentes do vínculo que une os
padrinhos aos apadrinhados. Na verdade, trata-se de prática que já acontece no
Brasil há muito tempo, especialmente no que diz respeito aos conhecidos "padrinhos
de batismo", existentes em algumas religiões. É bem comum, em nosso País,
que os padrinhos arquem com alguns custos de seus afilhados, como aqueles
relacionados com a formação intelectual dos últimos.
O Projeto de
Lei n. 171/2013 pretende tratar da questão no Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei n. 8.069/1990), incluindo os arts. 52-E a 52-I no diploma
legal. Frise-se que os efeitos são apenas alimentares, sem qualquer
interferência no exercício do poder familiar ou das responsabilidades parentais
(segundo os portugueses).
Nesse
contexto, está previsto que se entende por apadrinhamento
legal a situação jurídica de quem voluntariamente assume o dever de sustento
de criança ou adolescente (art. 52-E, § 1º, da projeção). A categoria é
dividida em duas modalidades, a saber: a)
apadrinhamento total, presente quando
o dever de sustento da criança ou do adolescente é assumido integralmente; e b) apadrinhamento parcial, quando o
padrinho assume obrigação de prestar contribuições mensais em favor da criança
ou do adolescente ou contribuições de bens ou serviços com o fim de atender a
proteção integral consagrada pelo ECA (art. 52-E, § 2º, no PL n. 171/2013).
Além da ausência
de qualquer interferência no exercício do poder familiar, guarda ou tutela, o
apadrinhamento legal não impõe ao padrinho qualquer dever de fiscalização ou de
reparação de possíveis danos causados pelo apadrinhado, nem qualquer outro
dever atribuído ao representante legal do afilhado (proposta de art. 52-E, §§ 3º
e 4º, do PL n. 171/2013).
Os valores
pagos são tratados de maneira equiparada à pensão alimentícia para os devidos
fins de impenhorabilidade (art. 52-E, § 5º). Todavia, não cabe prisão civil pela
falta do seu pagamento (art. 52-E, § 8º). Com os fins de evitar eventuais fraudes,
o apadrinhado não é considerado dependente do padrinho para efeitos
previdenciários (art. 52-E, § 9º).
O caráter
alimentar presente no apadrinhamento total é ressaltado pela proposta de
inclusão do art. 52-F no ECA, determinando a norma a incidência do art. 1.694
do Código Civil Brasileiro. Nesse contexto, devem os alimentos ser fixados de
acordo com as necessidades indispensáveis à subsistência do apadrinhado, ou
seja, têm o caráter de alimentos
necessários. A norma possibilita, ainda, o pagamento in natura dos alimentos, como na hipótese em que o
padrinho cede um imóvel de sua propriedade para residência do afilhado
adolescente. O número de apadrinhados limita-se a dois, nessa modalidade, salvo
se forem irmãos. Veda-se, também, o apadrinhamento total da mesma criança ou
adolescente simultaneamente por mais de uma pessoa, salvo se os padrinhos forem
casados ou viverem em união estável devidamente comprovada. Em casos tais,
ambos os cônjuges ou companheiros são solidariamente responsáveis pelas
prestações alimentares.
No
apadrinhamento parcial, o padrinho assume a obrigação de prestar as
contribuições que foram previamente estipuladas, facultando-se a ele o direito
de, a qualquer tempo, cumprir com as suas obrigações de maneira in natura, assim como ocorre na
modalidade de apadrinhamento total. Porém,
ao contrário dessa última, no apadrinhamento parcial o afilhado não é
considerado dependente alimentar do padrinho, constando todas essas regras na
proposta de inclusão do art. 52-G no ECA, pelo PL n. 171/2013.
Por
derradeiro, no que diz respeito à sua formalização, o apadrinhamento legal depende
de escritura pública a ser lavrada no Tabelionato de Notas, subscrita pelo
padrinho e pelo responsável legal do apadrinhado, só produzindo efeitos após o
seu registro no Cartório de Registro das Pessoas Naturais (proposta de inclusão
do art. 52-H no ECA). Sucessivamente, a norma prevê a instauração de um procedimento
administrativo perante o último cartório, com a oitiva do Ministério Público.
Eventual conflito suscita decisão pelo juízo competente. Louva-se a desjudicialização do procedimento, como
regra, na tendência consagrada pelo Novo Código de Processo Civil Brasileiro.
Essas são as
diretrizes gerais do projeto, o que confirma a afirmação segundo a qual o projetado
apadrinhamento legal brasileiro é bem
mais restrito do que o apadrinhamento
civil português, limitando-se ao pagamento de verbas alimentares e não
interferindo no poder familiar. Quando expliquei a projeção brasileira brevemente
nos debates em Portugal, ouvi da Professora Ana Rita Alfaiate, da Universidade
de Coimbra, que não se tratava propriamente de um apadrinhamento civil.
Todavia, a
realidade demonstra que a nossa prática de apadrinhamento é realmente esta que
o Projeto de Lei n. 171/2013 traz como conteúdo. Como palavras finais, estou
filiado à projeção, pois ela acaba regulando algo que já acontece de forma
espontânea na prática brasileira, concretizando a solidariedade estampada no
art. 3º, inciso I, da Constituição Federal de 1988.
[1] Coluna Família e Sucessões do Informativo
Migalhas, mês de julho.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Professor do
programa de mestrado e doutorado da FADISP – Faculdade Especializada em
Direito. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD – Escola Paulista de Direito,
sendo coordenador dos últimos. Professor da Rede LFG. Diretor nacional e
estadual do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado e
consultor jurídico em São Paulo.
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