quinta-feira, 28 de julho de 2016

ARTIGO SOBRE APADRINHAMENTO CIVIL. COLUNA DO MIGALHAS DO MÊS DE JULHO

DO APADRINHAMENTO:
BREVE ANÁLISE DA LEI PORTUGUESA E DO PROJETO DE LEI BRASILEIRO[1]



Flávio Tartuce[2]


Entre os dias 1º e 2 de junho de 2016, promoveu-se em Portugal o I Encontro IBDFAM-CDF, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família e pelo Centro de Direito da Família, ligado à secular Universidade de Coimbra. O evento teve a coordenação dos Professores José Fernando Simão, pelo Brasil, e Guilherme de Oliveira, por Portugal, contando com a participação de mais de cinquenta especialistas; entre os brasileiros, os Professores Zeno Veloso, Giselda Hironaka, Rodrigo Toscano de Brito, Rodolfo Pamplona Filho, Giselle Groeninga, João Ricardo Brandão Aguirre, Fernanda Tartuce e Rui Carvalho Piva.
Um dos temas abordados no evento, especialmente pelos juristas portugueses, foi o apadrinhamento civil, tratado em terras lusitanas pela Lei n. 103, de 11 de Setembro de 2009, que teve como um dos seus elaboradores justamente o Professor Guilherme de Oliveira. Este breve texto pretende trazer algumas reflexões iniciais sobre o instituto, na esteira dos debates que ocorreram naquele encontro em Portugal, confrontando a categoria dos patrícios com o Projeto de Lei n. 171, de 2013, aprovado recentemente pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal Brasileiro.
O apadrinhamento civil português traz amplos efeitos jurídicos aos envolvidos, definindo o art. 2º da Lei n. 103/2009 que o instituto é "uma relação jurídica, tendencialmente de carácter permanente, entre uma criança ou jovem e uma pessoa singular ou uma família que exerça os poderes e deveres próprios dos pais e que com ele estabeleçam vínculos afectivos que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento". Ainda nos termos do mesmo comando, o apadrinhamento civil deve ser constituído por homologação ou decisão judicial, sujeita a registro civil.
No que diz respeito à capacidade das partes, podem apadrinhar pessoas maiores de 25 anos, previamente habilitadas para tanto, dando-se preferência aos seus familiares; a pessoas idôneas ou a famílias de acolhimento a quem a criança ou o jovem tenha sido confiado em processo de promoção e proteção; ou mesmo a eventuais tutores (arts. 4º e 11, item n. 5, da Lei n. 103/2009).
Na outra ponta, quanto à capacidade para ser apadrinhado, o art. 5º da Lei n. 103/2009 estabelece que, desde que o apadrinhamento civil apresente reais vantagens para a criança ou o jovem, e desde que não se verifiquem os pressupostos da confiança com vista à adoção, pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor de 18 anos que a) esteja a beneficiar-se de uma medida de acolhimento em instituição; b) esteja a beneficiar-se de outra medida de promoção e proteção; c) encontre-se em uma situação de perigo confirmada em processo de uma comissão de proteção de crianças e jovens ou em processo judicial; d) para além dos casos previstos anteriormente, seja encaminhado para o apadrinhamento civil por iniciativa das pessoas ou das entidades previstas na mesma lei. Em complemento, está previsto que também pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor de 18 anos que esteja a beneficiar-se de confiança administrativa, confiança judicial ou medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção ou a pessoa selecionada para a adoção quando, depois de uma reapreciação fundamentada do caso, se mostre que esta é inviável.
O apadrinhamento civil português somente pode ser concedido uma vez, regido pela regra da unicidade, expressa no art. 6º da Lei n. 103/2009. Enuncia a norma que enquanto subsistir um apadrinhamento civil não pode constituir-se outro quanto ao mesmo afilhado. O preceito estabelece como exceção a hipótese em que os padrinhos vivem em família, seja por casamento ou união de facto (a união estável portuguesa).
A existência de amplos efeitos decorrentes do instituto é clara pelo que consta do art. 7º da Lei n. 103/2009, que determina a existência de responsabilidades parentais dos padrinhos, o que corresponde, pelo menos em parte, à nossa ideia de poder familiar; ou de autoridade parental, como querem alguns. Nesse contexto, os padrinhos exercem amplamente as responsabilidades parentais, ressalvadas as eventuais limitações previstas no compromisso de apadrinhamento civil ou na decisão judicial. Aplicam-se, no que couber, algumas regras da tutela, constantes entre os arts. 1936º e 1941º, 1943º e 1944º do Código Civil Português; os dois últimos no caso de falecimento, de inibição do exercício da responsabilidade parental pelos pais ou de serem estes incógnitos. Em complemento, cabe a intervenção do Ministério Público para a proteção dos interesses do menor.
Os pais biológicos do apadrinhado, em regra, beneficiam-se dos direitos expressamente consignados no compromisso de apadrinhamento civil, a saber: a) conhecerem a identidade dos padrinhos; b) disporem de uma forma de contatar os padrinhos; c) saberem o local de residência do filho; d) disporem de uma forma de contatar o filho; e) serem informados sobre o desenvolvimento integral do filho, a sua progressão escolar ou profissional, a ocorrência de fatos particularmente relevantes ou de problemas graves, nomeadamente de saúde; f) receberem com regularidade fotografias ou outro registro de imagem do filho; g) visitarem o filho, nas condições fixadas no compromisso ou na decisão judicial, designadamente por ocasião de datas especialmente significativas, caso dos aniversários de todos (art. 8º da Lei n. 103/2009). Em suma, quem passa a exercer a guarda fática da criança ou do adolescente são os padrinhos, havendo um direito de amplo acesso físico e informacional por parte dos pais biológicos.
Com a finalidade de concretizar o instituto, as relações entre pais e padrinhos são regidas pelos princípios do  mútuo respeito; da preservação da intimidade da vida privada e familiar, do bom nome e da reputação do afilhado; e da cooperação na criação de condições adequadas ao bem-estar e desenvolvimento do apadrinhado (art. 9º da Lei n. 103/2009).
Por fim, com relevo para esta breve análise, geral e comparativa, no que diz respeito aos alimentos, o art. 13 da norma lusitana considera os padrinhos ascendentes em primeiro grau do afilhado, para efeito da obrigação de lhe prestar alimentos. Porém, são precedidos pelos pais deste em condições de satisfazer tal encargo. O afilhado, por seu turno, é considerado descendente em primeiro grau dos padrinhos para efeito da obrigação de lhes prestar alimentos, mas é precedido pelos filhos destes em condições de satisfazer este encargo. Em outras palavras, padrinhos e afilhados são tratados como pais e filhos para os devidos fins alimentares, mas de maneira subsidiária.
Na verdade, o projeto de lei brasileiro sobre apadrinhamento legal, na denominação que consta da proposta, é bem mais restrito do que o tratamento previsto na norma lusitana. Cinge-se a projeção a tratar apenas de consequências alimentares decorrentes do vínculo que une os padrinhos aos apadrinhados. Na verdade, trata-se de prática que já acontece no Brasil há muito tempo, especialmente no que diz respeito aos conhecidos "padrinhos de batismo", existentes em algumas religiões. É bem comum, em nosso País, que os padrinhos arquem com alguns custos de seus afilhados, como aqueles relacionados com a formação intelectual dos últimos.
O Projeto de Lei n. 171/2013 pretende tratar da questão no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), incluindo os arts. 52-E a 52-I no diploma legal. Frise-se que os efeitos são apenas alimentares, sem qualquer interferência no exercício do poder familiar ou das responsabilidades parentais (segundo os portugueses).
Nesse contexto, está previsto que se entende por apadrinhamento legal a situação jurídica de quem voluntariamente assume o dever de sustento de criança ou adolescente (art. 52-E, § 1º, da projeção). A categoria é dividida em duas modalidades, a saber: a) apadrinhamento total, presente quando o dever de sustento da criança ou do adolescente é assumido integralmente; e b) apadrinhamento parcial, quando o padrinho assume obrigação de prestar contribuições mensais em favor da criança ou do adolescente ou contribuições de bens ou serviços com o fim de atender a proteção integral consagrada pelo ECA (art. 52-E, § 2º, no PL n. 171/2013).
Além da ausência de qualquer interferência no exercício do poder familiar, guarda ou tutela, o apadrinhamento legal não impõe ao padrinho qualquer dever de fiscalização ou de reparação de possíveis danos causados pelo apadrinhado, nem qualquer outro dever atribuído ao representante legal do afilhado (proposta de art. 52-E, §§ 3º e 4º, do PL n. 171/2013).
Os valores pagos são tratados de maneira equiparada à pensão alimentícia para os devidos fins de impenhorabilidade (art. 52-E, § 5º). Todavia, não cabe prisão civil pela falta do seu pagamento (art. 52-E, § 8º). Com os fins de evitar eventuais fraudes, o apadrinhado não é considerado dependente do padrinho para efeitos previdenciários (art. 52-E, § 9º).
O caráter alimentar presente no apadrinhamento total é ressaltado pela proposta de inclusão do art. 52-F no ECA, determinando a norma a incidência do art. 1.694 do Código Civil Brasileiro. Nesse contexto, devem os alimentos ser fixados de acordo com as necessidades indispensáveis à subsistência do apadrinhado, ou seja, têm o caráter de alimentos necessários. A norma possibilita, ainda, o pagamento in natura dos alimentos, como na hipótese em que o padrinho cede um imóvel de sua propriedade para residência do afilhado adolescente. O número de apadrinhados limita-se a dois, nessa modalidade, salvo se forem irmãos. Veda-se, também, o apadrinhamento total da mesma criança ou adolescente simultaneamente por mais de uma pessoa, salvo se os padrinhos forem casados ou viverem em união estável devidamente comprovada. Em casos tais, ambos os cônjuges ou companheiros são solidariamente responsáveis pelas prestações alimentares.
No apadrinhamento parcial, o padrinho assume a obrigação de prestar as contribuições que foram previamente estipuladas, facultando-se a ele o direito de, a qualquer tempo, cumprir com as suas obrigações de maneira in natura, assim como ocorre na modalidade de apadrinhamento total. Porém, ao contrário dessa última, no apadrinhamento parcial o afilhado não é considerado dependente alimentar do padrinho, constando todas essas regras na proposta de inclusão do art. 52-G no ECA, pelo PL n. 171/2013.
Por derradeiro, no que diz respeito à sua formalização, o apadrinhamento legal depende de escritura pública a ser lavrada no Tabelionato de Notas, subscrita pelo padrinho e pelo responsável legal do apadrinhado, só produzindo efeitos após o seu registro no Cartório de Registro das Pessoas Naturais (proposta de inclusão do art. 52-H no ECA). Sucessivamente, a norma prevê a instauração de um procedimento administrativo perante o último cartório, com a oitiva do Ministério Público. Eventual conflito suscita decisão pelo juízo competente. Louva-se a desjudicialização do procedimento, como regra, na tendência consagrada pelo Novo Código de Processo Civil Brasileiro.
Essas são as diretrizes gerais do projeto, o que confirma a afirmação segundo a qual o projetado apadrinhamento legal brasileiro é bem mais restrito do que o apadrinhamento civil português, limitando-se ao pagamento de verbas alimentares e não interferindo no poder familiar. Quando expliquei a projeção brasileira brevemente nos debates em Portugal, ouvi da Professora Ana Rita Alfaiate, da Universidade de Coimbra, que não se tratava propriamente de um apadrinhamento civil.
Todavia, a realidade demonstra que a nossa prática de apadrinhamento é realmente esta que o Projeto de Lei n. 171/2013 traz como conteúdo. Como palavras finais, estou filiado à projeção, pois ela acaba regulando algo que já acontece de forma espontânea na prática brasileira, concretizando a solidariedade estampada no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal de 1988.






[1] Coluna Família e Sucessões do Informativo Migalhas, mês de julho.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP – Faculdade Especializada em Direito. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD – Escola Paulista de Direito, sendo coordenador dos últimos. Professor da Rede LFG. Diretor nacional e estadual do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.

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