Flávio Tartuce.[1]
O Novo Código de Processo Civil, em vigor no País desde o
dia 18 de março de 2016, tem como um dos seus nortes principiológicos a desjudicialização
dos conflitos e contendas. Entre as suas normas fundamentais, preceitua o
Estatuto Processual emergente que o Estado promoverá, sempre que possível, a
solução consensual dos conflitos (art. 3º, § 2º). Além disso, está previsto que
a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos
deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (art. 3º, § 3º, do
CPC/2015).
No que diz respeito às ações de família, o texto
normativo instrumental parece ser peremptório quanto à necessidade de se
realizar a audiência de mediação ou conciliação, estabelecendo o caput do art. 695 do Novo CPC que “recebida
a petição inicial e, se for o caso, tomadas as providências referentes à tutela
provisória, o juiz ordenará a citação do réu para comparecer à audiência de
mediação e conciliação”. Como bem observa Daniel Amorim Assumpção Neves, “no
procedimento comum, a audiência de conciliação e mediação pode não ocorrer
quando ambas as partes se opuserem à sua realização. Nas ações de família,
entretanto, o silêncio do art. 695 do Novo CPC permite a conclusão de que
nessas ações a audiência é obrigatória, independentemente da vontade das partes”
(Novo Código de Processo Civil Comentado.
Salvador: JusPodivm, 2016, p. 1.099).
Passados cinco meses de entrada em vigor dessas regras, a
verdade é que todas essas regras não estão sendo aplicadas, por falta de uma
necessária estruturação do Poder Judiciário. O Estado – em sentido amplo –,
precisa contratar urgentemente mediadores e conciliadores judiciais capacitados
e remunerá-los devidamente, para exercer as atribuições previstas na nova lei.
Tal atuação exige uma formação específica, com
investimentos públicos e privados, que deveriam ter sido realizados no prazo de
vacatio legis do CPC/2015, o que não ocorreu.
Como tenho dito em aulas e palestras, infelizmente, não nos preparamos para o
Novo CPC quando deveríamos tê-lo feito, em 2015, justamente no lapso de
vacância. Houve uma preocupação com outros temas, que não aqueles que mais nos
interessam diretamente.
A par dessa realidade, em iniciativa louvável, o Centro
de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF) promoveu, nos dias
22 e 23 de agosto últimos, a I Jornada sobre
Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. O evento aconteceu em
Brasília, com a participação de ministros do STJ, magistrados federais e
estaduais, procuradores, promotores de Justiça, advogados, defensores públicos
e professores universitários. O seu foco principal foi a discussão de propostas
para soluções desjudicializadas de
conflitos, em adequação às inovações legislativas não só do Novo CPC como
também da Lei 13.140/2015, conhecida como Marco
Civil da Mediação.
Na linha das já consagradas Jornadas de Direito Civil, também promovidas pelo Conselho da
Justiça Federal, o encontro teve a competente coordenação geral do Ministro do
STJ, Luis Felipe Salomão, e a atuação do Ministro Antonio Carlos Ferreira,
coordenador da comissão de trabalho de arbitragem; do professor Kazuo Watanabe,
coordenador da comissão sobre mediação, e do professor Joaquim Falcão,
coordenador do grupo sobre outras formas de soluções de conflitos.
Tive a honra de
atuar como especialista convidado, ao lado de outros quarenta colegas, e com a
participação total de cerca de 150 juristas de todo o País. Ao final foram
aprovados 104 enunciados, que constituem uma doutrina qualificada tendo “força
persuasiva de caráter técnico-jurídico, não se confundindo com a posição do
Conselho da Justiça Federal e de seu Centro de Estudos Judiciários, bem como de
seus membros quando do exercício da função pública, sobre o mérito de eventuais
conflitos administrativos ou judiciais a eles submetidos” (art. 34 da Portaria
169/2016 do CJF, que regulamenta a Jornada).
Aqui iniciamos
uma série de textos de comentários sobre algumas das propostas aprovadas,
relativas ao Direito de Família e das Sucessões. Serão comentados os enunciados
divulgados em primeira mão pelo informativo
Migalhas (disponíveis em: ).
Não será apontada a sua numeração, pois ela ainda pende de revisão e confirmação
pela organização do encontro.
O tema inaugural
a ser tratado é justamente a mediação, que tanto necessita de investimentos, para
se deixar de lado uma frase sempre repetida pela professora Giselle Câmara Groeninga
em suas exposições, no sentido de que “no Brasil há mais cursos de mediação do
que mediações em curso”. O primeiro enunciado aprovado sobre o assunto foi
justamente na linha de se incentivar a sua prática pelo Estado, eis que “a
mediação é método de tratamento adequado de controvérsias que deve ser
incentivada pelo Estado, com ativa participação da sociedade, como forma de
acesso à Justiça e à ordem jurídica justa”. Com essa afirmação, adota-se uma
postura de efetivação das regras constantes dos parágrafos do art. 3º do Novo
CPC antes destacados.
Mas não basta o
investimento estatal. Também se faz necessária a mudança cultural no ensino do
Direito. É preciso substituir a cultura
da guerra, do contencioso, da vitória
e da derrota, transmitidas nas Faculdades de Direito, pela cultura da paz, da resolução, do diálogo
e do reconhecimento do outro. Nesse contexto, algumas propostas interessantes
foram aprovadas. Assim, enunciou-se que “recomenda-se que as Faculdades de
Direito mantenham estágios supervisionados nos escritórios de prática jurídica
para formação em mediação e conciliação e promovam parcerias com entidades
formadoras de conciliadores e mediadores, inclusive tribunais, MP, OAB, Advocacia
Pública e Defensoria Pública”. E ainda: “sugere-se que as Faculdades de Direito
instituam disciplinas obrigatórias e autônomas e projetos de extensão
destinados à arbitragem, à mediação e à conciliação”. Por fim, quanto ao tema,
destaque-se: “propõe-se a implementação da cultura de resolução de conflitos
por meio de mediação, como política pública, nos diversos segmentos do sistema
educacional, visando auxiliar na resolução extrajudicial de conflitos de
qualquer natureza, utilizando mediadores externos ou capacitando alunos e
professores para atuarem como facilitadores do diálogo na resolução e prevenção
dos conflitos surgidos nesses ambientes”. Os investimentos, assim, não são
apenas do Poder Público, mas também dos entes privados, notadamente das
instituições de ensino. Sem essa mudança embrionária,
concretizada nos primeiros anos da formação jurídica, a mediação nunca se
tornará realidade.
No que diz
respeito ao modo de se operacionalizar a mediação, aprendi com a minha irmã,
Fernanda Tartuce, que nela não se busca o acordo, mas sim o diálogo entre as
partes. Não se busca apenas o resultado quantitativo, o cumprimento de
eventuais metas numéricas, mas sim a qualidade da interação, na aproximação das
partes. E, nessa esteira, louva-se a aprovação de proposta estabelecendo que “a
expressão ‘sucesso ou insucesso’ do artigo 167, parágrafo 3º, do CPC não deve
ser interpretada como quantidade de acordos realizados, mas a partir de uma
avaliação qualitativa da satisfação das partes com o resultado e com o
procedimento, fomentando a escolha da Câmara, do conciliador ou do mediador com
base nas suas qualificações e não nos resultados meramente quantitativos”.
Com relação
direta com as ações de família, foi aprovada outra interessante proposta, no
sentido de se possibilitar a participação de crianças, adolescentes e jovens na
mediação, especialmente nas contendas relativas à guarda de filhos: “é
admissível, no procedimento de mediação, em casos de fundamentada necessidade,
a participação de crianças, adolescentes e jovens – respeitado seu estágio de
desenvolvimento e grau de compreensão – quando o conflito (ou parte dele)
estiver relacionado aos seus interesses ou direitos”. As justificativas da
proposição mencionam o art. 227 da Constituição Federal, na expressão de ser dever
da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais. Assim, a criança e o
adolescente têm direito à liberdade de opinião e de expressão, o que incide no
procedimento de resolução de conflitos.
Por fim, neste
primeiro texto sobre o assunto cabe destacar a delicada questão da capacitação
dos mediadores extrajudiciais, objeto de proposições antagônicas, que muito
foram debatidas pela comissão de mediação. Havia proposta no sentido de que
poderá funcionar como mediador extrajudicial, qualquer pessoa capaz, de
confiança das partes e que possua a capacitação mínima exigida pelo Conselho
Nacional de Justiça. Na mesma linha almejava-se que “a capacitação do mediador
extrajudicial de que trata o art. 9º da Lei de Mediação deve atender aos parâmetros
curriculares estabelecidos pelo CNJ”.
Com tom
antagônico, outra proposição sugeria o seguinte texto de enunciado: “para atuar
como mediador extrajudicial, os únicos requisitos exigidos pela Lei n.
13.140/15 são: capacidade civil plena, confiança das partes e capacitação,
sendo que essa capacitação, diferentemente da judicial, não contempla
requisitos mínimos estipulados pelo CNJ ou outro órgão”. Compartilhando essa
via, em tom até mais contundente “a capacitação do mediador privado, prevista
no art. 9º da Lei n. 13.140/2015, significa que deve ter vocação, reputação
ilibada, confiança dos envolvidos e aptidão para mediar, não sendo necessário
certificado de conclusão de curso, conforme os parâmetros fixados pelo Conselho
Nacional de Justiça e Ministério da Justiça, exigência que se destina a mediadores
judiciais; sendo, porém, recomendável que tenha acesso a cursos que lhe propiciem
o acesso aos princípios orientadores da mediação e o aperfeiçoamento constante
das técnicas”.
Ao final, acabou
sendo aprovada uma proposta de consenso, no meio
do caminho, mas mais próxima das últimas, com o seguinte texto: “a menção à
capacitação do mediador extrajudicial, prevista no art. 9 da Lei 13.140, indica
que ele deve ter experiência, vocação, confiança dos envolvidos e aptidão para
mediar, bem como conhecimento dos fundamentos da mediação, não bastando a
formação em outras áreas do saber que guardem relação com o mérito do conflito”.
Assim, não há a necessidade obrigatória de vinculação à formação efetivada pelo
Conselho Nacional de Justiça, o que é salutar.
Em suma, o
evento mostrou que muitos são os desafios futuros relativos à extrajudicialização, e que outras
jornadas sobre o assunto são essenciais, para que as regras previstas no Novo
Código de Processo Civil sejam, de fato, concretizadas. Mas o Direito de
Família não foi objeto somente da comissão de trabalhos sobre mediação. No
próximo texto, veremos os debates ocorridos na comissão de arbitragem, onde
atuamos diretamente.
[1]
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP.
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu da EPD, sendo coordenador dos últimos. Diretor do IBDFAM
– Nacional e IBDFAM/SP. Advogado e consultor jurídico.
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