Flávio Tartuce[1]
Fui consultado recentemente sobre hipótese fática interessante,
que dizia respeito à possibilidade ou não de se reconhecer a existência de uma
sociedade de fato dentro do regime da separação convencional de bens. Em outras
palavras, mesmo tendo os cônjuges optado pelo regime da separação de bens, por
força de pacto antenupcial, seria viável, juridicamente, que alguns bens fossem
partilhados, pela prova e efetiva de uma sociedade de fato?
Nunca é demais esclarecer, como já fizemos neste canal, que o
regime da separação convencional de bens, no Brasil, pode ter duas origens: a
lei ou a vontade das partes. No primeiro caso, há o regime da separação legal
ou obrigatória de bens, estabelecido nas hipóteses descritas no art. 1.641 do
Código Civil Brasileiro, a saber: a) se presente uma das causas suspensivas do
casamento, descritas no art. 1.523 do Código Civil[2];
b) em situações envolvendo cônjuges com idade superior a setenta anos; e c)
para os que dependem de suprimento judicial para casar, caso dos menores de 16
anos (art. 1.520 do Código Civil). O regime da separação convencional de bens,
por seu turno, é aquele que decorre da autonomia privada dos cônjuges,
escolhido por meio de um pacto antenupcial, conforme autoriza o art. 1.640 da
codificação material brasileira.
Nas hipóteses envolvendo o regime da separação legal ou
obrigatória de bens, como também neste canal antes pontuamos, a jurisprudência
brasileira reconhece claramente a possibilidade de existência de uma sociedade
de fato, diante da previsão da Súmula 377 do Supremo Tribunal de Justiça brasileiro,
do ano de 1964, com a seguinte redação: “No regime de separação legal de bens,
comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. Reafirme-se que depois
de muito debate, especialmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça,
prevalece nas Cortes brasileiras a conclusão de incidência dessa súmula, sem a
necessidade de prova do esforço comum para que exista a partilha. Assim
concluindo, por exemplo, repise-se: “a partilha dos bens adquiridos na
constância da sociedade conjugal, erigida sob a forma de separação legal de
bens, não exige a comprovação ou demonstração de comunhão de esforços na
formação desse patrimônio, a qual é presumida, à luz do entendimento
cristalizado na Súmula n. 377/STF. Precedentes do STJ” (AgRg no REsp
1008684/RJ, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em
24/04/2012, DJe 02/05/2012).
Quanto ao regime da separação convencional de bens, o tema sobre a
viabilidade ou não de uma sociedade de fato é de grande debate nas Cortes
Superiores brasileiras, existindo decisões nos dois sentidos no mesmo Superior
Tribunal de Justiça. Entendendo pela não comunicação de bens, com um voto
vencido: “A cláusula do pacto antenupcial que exclui a comunicação dos aquestos
impede o reconhecimento de uma sociedade de fato entre marido e mulher para o
efeito de dividir os bens adquiridos depois do casamento. Precedentes” (STJ,
REsp 404.088/RS, Rel. Ministro CASTRO FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO
GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/04/2007, DJ 28/05/2007, p. 320).
Porém, em sentido contrário, colaciona-se: “O regime jurídico da
separação de bens voluntariamente estabelecido é imutável e deve ser observado,
admitindo-se, todavia, excepcionalmente, a participação patrimonial de um
cônjuge sobre bem do outro, se efetivamente demonstrada, de modo concreto, a
aquisição patrimonial pelo esforço comum, caso dos autos, em que uma das
fazendas foi comprada mediante permuta com cabeças de gado que pertenciam ao
casal” (STJ, REsp 286.514/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA
TURMA, julgado em 02/08/2007, DJ
22/10/2007, p. 276).
Como se constata, os julgamentos que admitem a divisão de alguns bens
entendem que essa é possível desde que seja provado o efetivo esforço
patrimonial comum, ao contrário da interpretação que tem sido dada à Súmula 377
do STF, para o regime da separação legal de bens. Assim, se seguida a última
interpretação, que conta com o meu apoio, o cônjuge deve provar que o bem foi
adquirido por sua contribuição patrimonial concreta e efetiva, ônus que lhe
cabe.
Prevalecendo a última solução, os bens e rendimentos que devem
compor a sociedade de fato são aqueles que foram adquiridos pelo esforço de
ambos os cônjuges, cabendo a prova por quem alega o direito no caso concreto.
Não há uma simples meação, pois a solução se dá no campo do Direito das
Obrigações, especialmente com a regra que veda o enriquecimento sem causa
prevista no art. 884 do Código Civil: “Aquele que, sem justa causa, se
enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente
auferido, feita a atualização dos valores monetários. Parágrafo único. Se o
enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a
restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor
do bem na época em que foi exigido”. Reafirme-se, pois esse é um ponto
fundamental, que cabe ao cônjuge que pretende a divisão o ônus de provar quais
bens e rendimentos foram adquiridos com a sua ajuda efetiva.
Os bens que compõem esta sociedade de
fato devem ser divididos de acordo com os esforços e contribuições patrimoniais
de cada um dos cônjuges. A título de ilustração, se um imóvel foi adquirido com
70% de contribuição de uma parte e 30% de contribuição da outra, assim deve ser
partilhado. Frise-se que não se trata propriamente de uma meação, regida pelo
Direito de Família, mas de divisão de acordo com o que cada uma das partes
efetivamente auxiliou na aquisição onerosa.
Outras regras e princípios servem
como amparo para a conclusão seguida. Além da vedação do enriquecimento sem
causa podem ser mencionadas as disposições relacionadas à sociedade em comum.
Conforme o art. 986 do Código Civil, “enquanto não inscritos os atos
constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em organização, pelo
disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem
compatíveis, as normas da sociedade simples”. Em complemento, estabelece o art.
988 da mesma Lei Geral Privada que “os bens e dívidas sociais constituem
patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum”. Mais uma vez, deve
ser firmada a premissa segundo a qual essa titularidade depende de prova de
contribuição ou esforço para a aquisição dos bens.
Em complemento, a existência de uma
sociedade de fato no regime da separação convencional de bens também decorre do
princípio da boa-fé, retirado do art. 113 do Código Civil Brasileiro, aplicável
ao pacto antenupcial, in verbis: “Os
negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar
de sua celebração”. Penso que um cônjuge que nega a divisão de bens adquiridos
pela outra parte viola a cláusula geral de boa-fé objetiva, especialmente a
confiança depositada pelo outro (Treu und
Glauben).
Por fim, serve como argumento a
proteção do direito de propriedade do cônjuge, sendo esse direito reconhecido
pela Constituição Federal Brasileira como um direito e garantia fundamental,
conforma previsão constante do seu art. 5º, inciso XXII. Nesse contexto de
proteção do direito de propriedade, deve ser reconhecida a existência de um
condomínio de fato entre os cônjuges, nos termos do que estabelece os arts.
1.314 a 1.322 do Código Civil Brasileiro.
Negar a partilha dos bens adquiridos
pelo esforço patrimonial de um dos cônjuges, mesmo no regime da separação convencional
de bens, viola o mandamento superior, que protege o direito subjetivo em
questão. Concluindo, existem muitos argumentos jurídicos para sustentar a
possibilidade de existência de uma sociedade de fato dentro do regime da
separação convencional de bens.
[1]
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP.
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu da EPD, sendo coordenador dos últimos. Diretor do IBDFAM
– Nacional e IBDFAM/SP. Advogado e consultor jurídico.
[2] “Art.
1.523. Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido,
enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II
- a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido
anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da
sociedade conjugal; III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou
decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor ou o curador e os seus
descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada
ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem
saldadas as respectivas contas.”
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