As
uniões septuagenárias e a separação absoluta de bens por pacto antenupcial com
superação da Súmula 377 do STF.
Jones
Figueirêdo Alves
01. Quando a cláusula geral de “comunhão
plena de vida”, como norma-principio, remete as relações conjugais a seus valores
éticos e afetivos (artigo 1.511 do Código Civil), sob o pressuposto lógico de o
casamento estabelecê-la, com base na igualdade dos direitos e deveres dos
cônjuges, não há confundir a comunhão em ordem constituída como fato e valor de
fenômeno familiar, com a da disciplina patrimonial dos bens do casal.
Os regimes de bens contemplam o casal
apenas formado por unidades econômicas próprias, onde as suas especificidades
determinantes não influem ou demarcam aquela outra comunhão, a da plenitude de
vida em comum, como cláusula diretiva existencial.
Em outras palavras: enquanto a cláusula
de comunhão de vida representa um conceito ético e operativo, contribuindo para
o aperfeiçoamento das relações familiares, a tanto que a impossibilidade da
comunhão será causa motivadora para a dissolução do vínculo conjugal (art.
1.573, CC), retenha-se, antes de mais, que os nubentes, no processo de
habilitação ao casamento, poderão optar, para efeito de comunhão ou não dos
bens entre os cônjuges, por qualquer dos regimes que o Código Civil regula
(art. 1640, parágrafo único, CC), fazendo-se o pacto antenupcial por escritura
pública, nas opções diferenciadas ao do regime básico de comunhão parcial,
previsto pelo art. 1.640, CC.
A questão ganha agora maior relevo
jurídico a saber de três premissas de base:
(i) Os nubentes referidos pelo artigo
1.641, inciso II, do Código Civil, com a redação dada pela Lei n 12.344/2010, ou
seja, as pessoas maiores de setenta anos, obrigam-se ao regime de separação
legal de bens.
(ii) O mencionado regime tem o seu conteúdo
interpretado desde a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal (de 1964), até a
jurisprudência mais recente, no sentido de “no regime de separação obrigatória,
comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, sendo
presumido o esforço comum” (STJ – 3ª Turma, AgRg no AREsp. nº 650.390-SP, Rel.
Min. João Otávio de Noronha, j. em 27.10.2015, DJe de 03.11.2015); importando
concluir, portanto, apresentar-se esse regime equipotente ao próprio regime de
comunhão parcial de bens (artigo 1.658 do Código Civil).
(iii) Recente Provimento nº 08/2016, da
Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco, de 30.05.2016 (DJe. de 01.06.2016,
pp. 68-69), de nossa autoria, enquanto Corregedor Geral de Justiça estadual,
dispõe sobre o afastamento da reportada Súmula 377 do STF, quando se determina:
a) “no regime de separação
legal ou obrigatória de bens, na hipótese do artigo 1.641, inciso II, do Código
Civil, deverá o oficial do registro civil cientificar os nubentes da possibilidade
de afastamento da incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, por
meio de pacto antenupcial” e; b) “o oficial do registro esclarecerá sobre os
exatos limites dos efeitos do regime de separação obrigatória de bens, onde comunicam-se
os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento” (Artigo 1º).
É que, iniludivelmente, o regime patrimonial da separação obrigatória de
bens imposto aos nubentes de maior faixa etária, por expressa disposição do
legislador, não inibe ou afasta o interesse
dos consortes pelos bens adquiridos onerosamente ao longo do
casamento sob o regime de
separação legal; razão
pela qual, obrigados a este regime, cumpre-lhes, assim querendo, certificar,
por convenção de interesse mútuo, sobre a hipótese de “separação absoluta” dos
bens futuros, que se contém no regime de separação convencional de bens.
Anote-se
que, quando preferido este regime, através de pacto antenupcial, o casamento
não repercute na esfera patrimonial dos consortes, implicando dizer que os cônjuges
preservam o domínio e a administração de seus bens presentes e futuros, como
também, diferentemente do art. 276 do Código Civil/1916, “estipulada a
separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um
dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real” (artigo
1.687 do Código Civil/2002).
Em
tais latitudes, como se observa, o regime de separação convencional e
voluntária, apresenta uma separação absoluta ou total de bens, o que não é
alcançada, expressamente, pelos que são submetidos ao regime de separação legal
ou obrigatória. No caso, estes últimos nubentes
estariam desprovidos da capacidade de convencionar pela separação plena e
absoluta, aparentemente reservada aos nubentes com idade inferior aos setenta
anos.
02. Eis então que surge o problema:
(i) septuagenários que casam sob o
regime impositivo da separação obrigatória, supõem sempre que esse regime em
razão da faixa etária superior tem a sua extensão também destinada aos bens
futuros, grassando diversas controvérsias diante da aplicação da Súmula 377 do
STF que os mantém, nesse ponto, sob um regime similar ao da comunhão parcial. É
uma lógica de fórmula individualista, onde a cada um pertence o que é seu, com
o isolamento total do patrimônio de ambos os cônjuges, sintetizado pela suposta
decorrência da imposição legal da separação dos bens, o que, a rigor, não ganha
conformidade diante da reportada Súmula.
(ii) O entendimento pretoriano, a seu
turno, busca relativizar a separação absoluta, admitindo que os bens futuros se
comuniquem, dentro da constância do casamento, em prol das finalidades da união
pelo casamento e em prestigio da presunção do esforço comum ali dispendido.
O tema ganhou nova atualidade com artigo
de Zeno Veloso “Casal quer afastar a Súmula 377”, publicado em maio passado, no
jornal “O Liberal”, de Belém do Pará, onde o consagrado civilista coloca, a
estilete, a questão:
“Há
cerca de um ano João Carlos e Matilde estão namorando. Ele é divorciado, ela é
viúva. João fez 71 anos de idade e Matilde tem 60 anos. Resolveram casar-se e
procuraram um cartório de registro civil para promover o processo de
habilitação. Queriam que o regime de bens do casamento fosse o da separação
convencional, pelo qual cada cônjuge é proprietário dos bens que estão no seu
nome, tantos dos que já tenha adquirido antes, como dos que vier a adquirir, a
qualquer título, na constância da sociedade conjugal, não havendo, assim sendo,
comunicação de bens com o outro cônjuge.
Mas
o funcionário do cartório explicou que, dado o fato de João Carlos ter mais de
70 anos, o regime do casamento tinha de ser o obrigatório, da separação de
bens, conforme o art. 1.641, inciso II, do Código Civil (...).
(...) João
Carlos é investidor, atua no mercado imobiliário, adquire bens imóveis,
frequentemente, para revendê-los. E Matilde é corretora, de vez em quando
compra um bem com a mesma finalidade. Seria um desastre econômico, para ambos,
que os bens que fossem adquiridos por cada um depois de seu casamento se
comunicassem, isto é, fossem de ambos os cônjuges, por força da Súmula 377/STF.
No final das contas, o regime da separação obrigatória, temperado pela referida
Súmula, funciona, na prática, como o regime da comunhão parcial de bens.
Foi,
então, que me procuraram, pedindo meu parecer. Querem lavrar uma escritura -
pacto antenupcial, mencionando que vão casar-se, e o casamento seguirá o regime
obrigatório da separação de bens, por força do art. 1.641, inciso II, do Código
Civil. Até aí, nada de novo: só estão repetindo o que a lei já diz. Todavia,
não querem que, em nenhuma hipótese, haja comunicação de bens, mantendo-se a
separação de bens de forma absoluta, em todos e quaisquer casos, sem limitação
ou ressalva alguma, excluindo, portanto, expressamente, a aplicação da Súmula
377 do STF. Já dei ao casal a minha opinião: não acho que o enunciado da Súmula
seja matéria de ordem pública, represente direito indisponível, e tenha de ser
seguida a qualquer custo, irremediavelmente”.
E arremata, indagando:
“Mas
há um grupo de jovens e competentes professores brasileiros, que integram a
Confraria de Civilistas Contemporâneos, formada por mais de 30 mestres
(Tartuce, Mário Delgado, Simão, Toscano, Catalan, Pablo Malheiros, Stolze, para
citar alguns), a quem peço um parecer sobre o tema acima exposto. Afinal, podem
ou não os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil,
afastar, por escritura pública, a incidência da Súmula 377?
03. Pois bem. A doutrina publicada a
seguir, na primazia de artigo de Flávio Tartuce (25.05.16), tem oferecido uma
resposta positiva. E, decisivamente, o Provimento nº 08/2016, da Corregedoria
Geral da Justiça de Pernambuco, de 30.05.2016, soma-se a esse entendimento,
cumprindo o papel proativo de orientação, a dizer mais que a própria Súmula 377
não implica efeito legislador, a tanto possa obstar convenção em contrário.
O instrumento normativo veiculado pela
CGJ-PE, tem seus fundamentos (“considerandos”) bem pontuados, a exemplo:
(i)
que ‘é possível, por convenção dos nubentes e em escritura pública, o
afastamento da aplicação da Súmula 377 do STF, “por não ser o seu conteúdo de
ordem pública mas, sim, de matéria afeita à disponibilidade de direitos” (ZENO
VELOSO)”;
(ii) que “enquanto a imposição do regime de
separação obrigatória de bens, para os nubentes maiores de setenta anos, é
norma de ordem pública (artigo 1.641, II, do Código Civil), não podendo ser
afastada por pacto antenupcial que contravenha a disposição de lei (art. 1.655
do Código Civil); poderão eles, todavia, por convenção, ampliar os efeitos do
referido regime de separação obrigatória, “passando esse a ser uma verdadeira
separação absoluta, onde nada se comunica” (JOSÉ FERNANDO SIMÃO)”;
(iii) que “podem os nubentes, atingidos pelo artigo
1.641, inciso II do Código Civil, afastar por escritura pública, a incidência
da Súmula 377 do STF, estipulando nesse ponto e na forma do que dispõe o artigo
1.639, caput, do Código Civil, quanto aos seus bens futuros o que melhor lhes
aprouver (MÁRIO LUIZ DELGADO)”; e
(iv) que “o afastamento da Súmula 377 do STF,
constitui um correto exercício de autonomia privada, admitido pelo nosso
Direito, que conduz a um eficaz mecanismo de planejamento familiar,
perfeitamente exercitável por força de ato público, no caso de um pacto
antenupcial (artigo 1.653 do Código Civil)”, conforme a melhor doutrina
pontificada por FLÁVIO TARTUCE”.
Finalmente um
Provimento que, em prestígio da doutrina e dos melhores doutrinadores, a tanto
fazendo-lhes menções nominais, torna-se editado para melhor servir como
instrumento efetivo e eficiente a esse tema de tamanha relevância jurídica,
cooperando para a melhor compreensão dos nubentes, a uma livre escolha, com a
opção pela separação total dos bens, mediante o afastamento da Súmula por pacto
antenupcial. No ponto, bem de ver que é dever do oficial do registro esclarecer
os nubentes sobre os diversos regimes de bens (artigo 1.528 do Código Civil).
No mais, o normativo
também deixa evidenciado, no atinente ao regime de bens, o entendimento prevalecente
no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o regime aplicável
à união estável entre septuagenários é o da separação obrigatória (REsp. nº
646.259-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão). E em ser assim, dispõe o Provimento
que “observar-se-á o regime da
separação obrigatória de bens somente nas hipóteses em que na data do termo
inicial da existência da união estável, um ou ambos os conviventes contavam com
mais de setenta anos, constando, caso haja interesse, o afastamento da
incidência da Súmula 377 do STF. (Artigo 2º)”.
Realmente. "(...) a não
extensão do regime da separação obrigatória de bens, (..), à união estável
equivaleria, em tais situações, ao desestímulo ao casamento, o que, certamente,
discrepa da finalidade arraigada no ordenamento jurídico nacional, o qual se
propõe a facilitar a convolação da união estável em casamento, e não o
contrário" (STJ – REsp. nº 1.090.722).
04. Com efeito, o
estatuto patrimonial dos cônjuges deve atender ao que eles, livremente, possam
estipular quanto aos seus bens e no caso das uniões septuagenárias, mesmo com
as limitações impostas, cumpre-lhes estabelecer os exatos limites (irrestritos
ou não) da separação dos bens.
Afinal, uma instituição
familiar enquanto arrimada na comunhão plena de vida, cuja existência
substancial constitui, a toda evidência, o dever-ser do direito de família,
independe dos reflexos da atipicidade ou tipicidade dos regimes de bens.
Comunhão perfeita e
plena de vida, por integração de afetos, destinada a formar a comunidade do
casal, independe, por óbvio, da comunhão perfeita ou imperfeita dos bens.
Convincentemente, as uniões septuagenárias instigam e reclamam essa premissa.
Na melhor expressão de
Carbonnier, “para os espíritos avançados, a separação de bens; para aqueles que
tem predisposições matemáticas, o regime de participação nos adquiridos; para
os sentimentais, a cláusula de mão comum...(...)”.
O autor é Mestre em Ciências Jurídicas e
Especialista em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade
Clássica de Lisboa (FDUL); Desembargador Decano do Tribunal de Justiça de
Pernambuco (TJPE).
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