DEBATE COM FERNANDA TARTUCE. PRISÃO EM
ALIMENTOS INDENIZATÓRIOS. JORNAL CARTA FORENSE. JUNHO DE 2016. MATÉRIA DE CAPA.
Prisão civil em alimentos indenizatórios:
posição contrária
Flávio Tartuce. Doutor em Direito Civil pela USP.
Professor da FADISP e da Escola Paulista de Direito. Advogado.
Os alimentos indenizatórios, ressarcitórios,
indenitários ou de responsabilidade civil estão tratados pelo art. 948, II, do
Código Civil como hipótese de lucros cessantes. Tal preceito trata das
indenizações devidas em casos de homicídio, como ocorre em casos de
atropelamentos, acidentes de trânsito e acidentes de trabalho, entre as suas
principais hipóteses fáticas. De acordo com a norma, com destaque: “No caso de
homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I – no
pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da
família; II – na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia,
levando-se em conta a duração provável da vida da vítima”.
Como se pode perceber, como o caput do dispositivo menciona “sem
excluir outras indenizações”, os valores pagos não excluem os danos morais ou
extrapatrimoniais, cuja reparação é muito comum em situações tais. O inciso I
trata de danos emergentes, valores que são reembolsados aos familiares que
pagaram tais valores ou despesas.
No que concerne ao inciso II da norma civil,
doutrina e jurisprudência majoritárias têm entendido que se deve levar em conta
a vida provável daquele que faleceu com base na expectativa fixada pelo IBGE.
De qualquer forma, ressalve-se que para que os familiares tenham direito à
indenização, há necessidade de um vínculo de dependência econômica dos autores
da demanda em relação ao falecido. A título de exemplo, assim concluindo, a
ilustrar: “a estimativa de idade provável de vida para o recebimento da pensão
é feita quando a indenização é pedida, por exemplo, pelos pais, em face da
morte de algum filho, pois aí pode ser usada tabela do IBGE sobre qual seria a
idade provável de vida da vítima” (STJ, AgRg no Ag 1.294.592/SP, Rel. Ministro
ALDIR PASSARINHO JÚNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 23/11/2010, DJe 03/12/2010).
Tal conclusão é perfeita, pois procura
analisar o ato ilícito e a consequente responsabilidade civil de acordo com o
meio que os cerca. Sendo assim, pode-se denotar, em certo sentido, a finalidade
social da responsabilidade civil. Consigne-se que, atualmente e conforme as
últimas pesquisas realizadas pelo IBGE, a expectativa de vida no Brasil gira em
torno dos 74 anos.
No que concerne à forma de cálculo dessa
indenização, a mesma jurisprudência superior tem entendido que, em regra,
deve-se fixar a indenização em 2/3 do salário da vítima, que serão
multiplicados pelo número de meses até que seja atingida a mencionada idade
limite. Se o morto era registrado, tendo carteira de trabalho, devem ser
incluídos as férias, os valores correspondentes ao Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço (FGTS) e o décimo terceiro salário (ver, a ilustrar: STJ, AgRg no Ag
1.419.899/RJ, SEGUNDA TURMA, DJe 24.09.2012, citado em REsp 1.279.173/SP, Rel.
Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 04.04.2013, com o mesmo entendimento).
Isso, repita-se, sem excluir a indenização por danos morais decorrentes da morte
de pessoa da família.
Pois bem, questão que sempre foi debatida
entre os civilistas e processualistas diz respeito à possibilidade de se
pleitear a prisão civil do devedor desses alimentos indenizatórios, com fulcro
no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal de 1988. Nossa jurisprudência
superior vinha se posicionando de forma contrária à sua viabilidade, pois os
únicos alimentos que fundamentam a possibilidade de prisão civil são os
familiares, devidos nos casos de parentesco, casamento ou união estável (art.
1.694 do Código Civil), posição que é compartilhada por este autor.
Nessa esteira, concluiu o Tribunal da
Cidadania que, “segundo a pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça, é ilegal a prisão civil decretada por descumprimento de obrigação
alimentar em caso de pensão devida em razão de ato ilícito” (STJ, HC
182.228/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em
01/03/2011, DJe 11.03.2011). Em reforço, entre os primeiros precedentes,
colaciona-se: “a possibilidade de determinar-se a prisão, para forçar ao
cumprimento de obrigação alimentar, restringe-se a fundada no direito de
família. Não abrange a pensão devida em razão de ato ilícito” (STJ, REsp
93.948/SP, Rel. Min. EDUARDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 02.04.1998, DJ
01.06.1998, p. 79).
O Novo CPC supostamente reacendeu o debate
sobre a prisão civil em casos de não pagamento desses alimentos indenizatórios.
Isso pelo fato de seu art. 533 estar inserido no mesmo capítulo que trata do
cumprimento da sentença que reconhece a exigibilidade da obrigação alimentar,
prevendo o art. 528 do próprio Estatuto Processual a possibilidade de prisão
civil em caso de alimentos familiares.
Em verdade, o teor do art. 533 do CPC/2015 repete o
que constava do art. 475-Q do CPC/1973, com algumas alterações. De acordo com o
caput da nova lei, quando a
indenização por ato ilícito incluir prestação de alimentos, caberá ao
executado, a requerimento do exequente, constituir capital cuja renda assegure
o pagamento do valor mensal da pensão. Além de previsão na lei anterior, a
formação desse capital já era reconhecida pela Súmula 313 do STJ.
Nos termos do seu 1º, esse capital, representado
por imóveis ou por direitos reais sobre imóveis suscetíveis de alienação,
títulos da dívida pública ou aplicações financeiras em banco oficial, será
inalienável e impenhorável enquanto durar a obrigação do executado. Ademais,
constitui patrimônio de afetação, vinculado para o pagamento dos citados
alimentos, o que constitui novidade frente ao sistema anterior.
Em complemento, está previsto que o juiz poderá
substituir a constituição desse capital pela inclusão do exequente em folha de
pagamento de pessoa jurídica de notória capacidade econômica ou, a requerimento
do executado, por fiança bancária ou garantia real, em valor a ser arbitrado de
imediato pelo juiz (art. 533, § 2º, do CPC/2015, correspondente ao mesmo
parágrafo do art. 475-Q do CPC/1973). Igualmente sem qualquer alteração, se
sobrevier modificação nas condições econômicas, poderá a parte requerer,
conforme as circunstâncias, redução ou aumento da prestação, o que para muitos
representa ser a sentença sujeita à cláusula rebus sic stantibus (art. 533, §
3º, do CPC/2015 e art. 475-Q, § 3º, do CPC/1973).
Também, sem qualquer mudança frente ao
sistema processual anterior, está previsto que a prestação alimentícia poderá
ser fixada tomando por base o salário-mínimo (art. 533, § 4º, do CPC/2015,
equivalente ao art. 475-Q, § 4º, do CPC/1973). Por derradeiro, finda a
obrigação de prestar alimentos, o juiz mandará liberar o capital, cessar o
desconto em folha ou cancelar as garantias prestadas (art. 533, § 5º, do
CPC/2015 e art. 475-Q, § 5º, do CPC/1973).
Essas são as regras e sanções previstas para os
alimentos indenizatórios, decorrentes do ato ilícito, sem qualquer menção à
prisão civil. Sendo assim, não cabe ao julgador fazer interpretações extensivas
para cercear a liberdade da pessoa humana, ainda mais em uma realidade em que
defende um Direito Civil Constitucionalizado e Humanizado. Reitere-se a posição
anterior, consolidada no sentido de que prisão civil somente é possível nas
situações de inadimplemento da obrigação relativa aos alimentos familiares.
Esperamos que essa conclusão continue sendo o posicionamento da nossa
jurisprudência superior.
prisão Civil em Alimentos indenizatórios:
Posição Favorável
Fernanda Tartuce. Doutora em Direito Processual
Civil pela USP. Professora da FADISP e da EPD. Advogada.
A questão em análise pode ser apresentada de forma
singela: a proteção máxima conferida aos alimentos (com possível execução sob
pena de prisão) é pertinente apenas ante a inadimplência de alimentos baseados
em vínculos familiares ou incide também sobre a falta de pagamento de pensões
decorrentes de ato ilícito fixadas em demandas indenizatórias?
Embora perguntas simples possam inspirar respostas
do mesmo tipo, é interessante lembrar que nem sempre todos os pontos relevantes
do questionamento são considerados em abordagens singelas. Uma forma que pode
contribuir para uma análise mais elaborada é contextualizar a dúvida à luz de
certo caso; tal perspectiva é valiosa por concretizar a hipótese e permitir uma
apreciação humanizada da situação. Considere que Jodeilde, aos 8 anos de idade,
restou órfã após seus pais falecerem no acidente de veículos causado por
Lupércio; este foi posteriormente condenado, em demanda indenizatória, a pagar
alimentos de dois salários mínimos mensais à criança com base no art. 948, II
do Código Civil (“no caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir
outras reparações: II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os
devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima”). Não tendo
havido o voluntário pagamento do valor devido a Jodeílde a título de obrigação
alimentar, cabe executar Lupércio sob pena de prisão?
A Constituição Federal prevê, no art. 5º LXVII, que
não haverá prisão civil por dívida - salvo a do responsável pelo inadimplemento
voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.
A regra se justifica porque o instituto dos
alimentos tem por base valores importantes: dignidade, urgência e solidariedade
humana são vetores interpretativos primordiais para o adequado delineamento de
respostas a eventuais dúvidas surgidas na aplicação das normas sobre o tema.
A dignidade é contemplada porque, sem condições
de contar com um patrimônio mínimo que assegure o acesso a bens essenciais, não
há como exercer de modo eficiente o direito à autodeterminação. A urgência é
evidente, já que o pagamento da pensão alimentícia serve para suprir as
necessidades cotidianas da pessoa dependente. A solidariedade humana, enquanto
amparo e dever assistencial, é uma exigência do sistema jurídico porque,
infelizmente, nem sempre há espontaneidade no devotamento de cuidado aos
necessitados. Se o ordenamento jurídico reforça a solidariedade em relação a
parentes (em relação a quem, por haver vínculo, existe maior chance de
prestação de auxilio mutuo), obviamente deve haver ainda maior estímulo quando
não há proximidade que anime o devedor a auxiliar o credor da obrigação alimentar.
À luz de tais considerações, pergunta-se:
Jodeílde precisa que a norma constitucional incida em seu favor? Para atender à
sua dignidade com urgência, considerando que é remota a chance de Lupércio
mostrar solidariedade em relação a uma órfã com quem não tem liame parental, a
resposta é evidentemente positiva.
Quando a Constituição Federal menciona a
possibilidade de prisão em virtude do inadimplemento voluntário e inescusável
da obrigação alimentar, não faz distinção quanto à fonte; revela-se essencial,
portanto, considerar o conteúdo (obrigação alimentar inadimplida voluntária e
sem escusas) e não a origem (relação familiar ou ato ilícito).
No plano infraconstitucional, os dispositivos
que preveem prisão por inadimplemento de pensões alimentícias não apresentam
restrições à incidência do encarceramento; não há expressa diferenciação em
relação aos casos ligados à seara familiar.
O Código de Processo Civil não tem tradição
de limitar a incidência da prisão à execução de alimentos referentes a
contextos familiares. Confirmando tal tendência, o Novo Código de Processo
Civil refere-se hipóteses ligadas a pensão alimentícia como sendo referentes à
exigibilidade da obrigação de prestar alimentos; a expressão, que é ampla, não
expressa qualquer distinção em relação à fonte da obrigação.
O Novo Código traz ainda mais um ponto em
favor da posição aqui defendida: o art. 533, ao mencionar a possibilidade de
constituição de capital em demandas reparatórias que preveem alimentos
indenizatórios, foi inserido no capítulo regente da execução de prestações
alimentares em geral; percebe-se, portanto, que o legislador, longe diferenciar
pensões alimentícias, atuou no sentido de aproximar seus regimes executivos.
Vale também destacar que o Novo Código buscou
incrementar ainda mais a efetividade da execução alimentícia ao prever o
protesto do nome do executado e afirmar que a justificativa do executado
precisa expor a comprovação de fato gerador da impossibilidade absoluta de
pagar a pensão devida (Lei 13.105/2015, art. 528 §§ 1º e 2º).
Não há no ordenamento, portanto, norma que
justifique a diferenciação apta a excluir a possibilidade de prisão no
inadimplemento de obrigações alimentares fixadas a título de reparação por ato
ilícito; interpretação diversa prejudica indevidamente as vítimas de atos
ilícitos ao retirar a eficácia potencializada pela coerção inerente à execução
sob pena de prisão.
A execução de alimentos engendrada no sistema
jurídico brasileiro, como autêntica tutela diferenciada, visa propiciar maior
efetividade à proteção de um direito considerado especial pelo ordenamento.
Apesar disso, há quem responda negativamente
à pergunta, afirmando haver restrições à incidência da prisão. Há diversas
decisões nesse sentido; muitas delas, porém, não enfrentam os argumentos
expostos, limitando-se a afirmar, sem maiores digressões, que a possibilidade
de requerer a execução sob pena de prisão deve ser considerada em perspectiva
restritiva, sendo pertinente apenas em casos de inadimplemento verificados em
contextos familiares. É possível crer, porém, em mudança no cenário
jurisprudencial: cada vez mais há entendimentos prestigiando a concretização de
compreensões que conduzam a um “processo civil de resultados”.
O posicionamento pela impossibilidade de
execução sob pena de prisão no caso de alimentos decorrentes de ato ilícito
distancia o intérprete da missão protetora do processo; a tutela jurisdicional
precisa funcionar bem, incidindo seus ditames de modo eficiente em prol de quem
vive a árdua situação de precisar exigir alimentos em juízo.
Espera-se que a triste situação de vítimas
como Jodeílde - que precisará recompor sua vida em um cenário marcado por
significativas restrições - não seja piorada pela falta de efetividade da
execução alimentícia que precisará promover em face do devedor que, de modo
voluntário e inescusável, restar inadimplente.
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