O
BEM DE FAMÍLIA VAZIO[1]
Flávio
Tartuce[2]
A Lei n. 8.009/1990 representa
uma das normas jurídicas de maior relevo prático na realidade jurídica
brasileira. Baseada no trabalho acadêmico do Professor Álvaro Villaça Azevedo,
dispõe ela sobre a impenhorabilidade do bem de família legal, que passou
a ser o imóvel residencial, rural ou urbano, próprio do casal ou da entidade
familiar, protegido pela impenhorabilidade, independentemente de inscrição no
Registro de Imóveis. Originariamente, ensina o Professor do Largo de São
Francisco que “pode-se dizer, seguramente, que o bem de família nasceu com
tratamento jurídico específico, na República do Texas, sendo certo que, no
Direito Americano, desponta ele como sendo uma pequena propriedade agrícola,
residencial, da família, consagrada à proteção desta” (AZEVEDO, Álvaro Villaça.
Bem de família. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 19). Assim, o
embrião desse amparo é relacionado à tutela do homestead, o que
significa local do lar.
Nos termos do art. 1º dessa
lei, “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é
impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial,
fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos
pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses
previstas na lei”. Trata-se de importante norma de ordem pública que protege
tanto a família quanto a pessoa humana, especialmente o direito à moradia,
previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988.
Isso justifica, de início,
a edição da Súmula n. 364 pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual o
manto da impenhorabilidade também atinge o imóvel onde reside pessoa solteira,
separada ou viúva. Nos termos dos precedentes que geraram a ementa, o fim
teleológico da Lei n. 8.009/1990 não é proteger um grupo de pessoas, mas a
pessoa, em especial o citado direito social e fundamental à moradia. Sem
dúvida, trata-se de uma interpretação extensiva dada à lei, pois, expressamente,
a proteção alcança apenas aqueles que vivem em família. Não só nessa hipótese,
mas também em outras, a jurisprudência superior tem concluído desse modo, ampliando
o sentido da norma, em sadio diálogo com
o Texto Maior.
Cite-se, em complemento,
que o mesmo Tribunal da Cidadania tem entendimento consolidado no sentido de
que, em caso de locação do bem, utilizada a renda do imóvel para a mantença da
entidade familiar, a proteção permanece. Nesse contexto, “a orientação
predominante no STJ é no sentido de que a impenhorabilidade prevista na Lei
8.009/1990 se estende ao único imóvel do devedor, ainda que este se ache locado
a terceiros, por gerar frutos que possibilitam à família constituir moradia em
outro bem alugado” (STJ, AgRg 385.692/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir
Passarinho Junior, julgado em 09.04.2002, DJ
19.08.2002). A questão se consolidou de tal forma que, em 2012, foi editada a
Súmula n. 486 dessa Corte Superior, in
verbis: “é impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja
locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para
a subsistência ou a moradia da sua família”.
Trata-se do que denominamos
bem de família indireto, pois a
tutela da moradia é dada de forma mediata ou reflexa. A propósito, entende-se,
ainda, que a afirmação igualmente vale para o caso de único imóvel do devedor
que esteja em usufruto, para destino de moradia de sua mãe, pessoa idosa (STJ,
REsp 950.663/SC, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.04.2012). No
último decisum, além da proteção da
moradia, julgou-se com base no sistema de tutela constante do Estatuto do
Idoso.
Tal tendência de ampliação
da tutela da moradia também pode ser retirada de aresto mais recente, publicado
no Informativo n. 543 do STJ, ao julgar
que “constitui bem de família, insuscetível de penhora, o único imóvel
residencial do devedor em que resida seu familiar, ainda que o proprietário
nele não habite”. Nos termos da publicação, que mais uma vez conta com o nosso total
apoio, “deve ser dada a maior amplitude possível à proteção consignada na lei
que dispõe sobre o bem de família (Lei 8.009/1990), que decorre do direito
constitucional à moradia estabelecido no caput
do art. 6.º da CF, para concluir que a ocupação do imóvel por qualquer
integrante da entidade familiar não descaracteriza a natureza jurídica do bem
de família” (STJ, EREsp 1.216.187/SC, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j.
14.05.2014).
Pois bem, além de todas
essas hipóteses, de interpretações extensivas da norma jurídica em prol da
moradia, direito fundamental e social indeclinável, o Superior Tribunal de
Justiça também tem entendido que “o fato do terreno encontrar-se desocupado ou
não edificado são circunstâncias que sozinhas não obstam a qualificação do
imóvel como bem de família, devendo ser perquirida, caso a caso, a finalidade a
este atribuída” (tese número 10, publicada na Ferramenta Jurisprudência em Teses, Edição n. 44). Trata-se do que se pode
denominar bem de família vazio.
A análise de um dos acórdãos
que gerou a afirmação jurisprudencial resumida merece análise depurada. Nos
termos do julgamento constante do Recurso Especial n. 825.660/SP, de relatoria
do Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 1º de dezembro de 2009, “ocorreram
danos no imóvel causados pelo transbordamento das águas da rede de águas
pluviais. A referida ação foi julgada procedente, e a Prefeitura Municipal de
Osasco foi condenada: a) a providenciar o desvio da rede canalizada e a reparar
o imóvel; b) a reembolsar despesas com correspondências e aluguéis; e c) a
pagar danos morais. A impenhorabilidade do bem de família serve para assegurar
a propriedade da residência da entidade familiar de modo a assegurar-lhe uma
existência digna. Verifica-se, no caso, que os devedores tiveram que desocupar
o imóvel em razão do dano causado por fato de terceiro que tornou-o inabitável.
Ora, não se pode afastar a impenhorabilidade do imóvel em razão de os devedores
nele não residirem por absoluta ausência de condições de moradia. A parte
recorrida não teve opção. A desocupação do imóvel era medida que se impunha. Não
pode agora os devedores sofrerem a perda de seu único imóvel residencial, quando
já estão sendo privados de utilizá-lo em razão de fato de terceiro. Assim,
incabível a penhorabilidade de imóvel, quando os devedores, por fato alheio a
sua vontade, deixam de nele residir em razão da falta de serviço estatal”.
De fato, não se pode impor
a impenhorabilidade em casos semelhantes ou próximos, pois o fato de o imóvel
encontrar-se vazio, desocupado, inabitado, não é imputável à conduta do
devedor, mas a ato ou omissão da administração pública. Sendo assim, a
impenhorabilidade é medida que se impõe, com vistas à proteção de um direito à moradia potencial, que se
encontra dormente no momento da discussão da penhora, mas que pode voltar a ter
incidência concreta a qualquer momento.
Em verdade, todas essas
interpretações extensivas do texto legal mantêm relação direta com a
metodologia do Direito Civil Constitucional, segundo a qual se deve analisar os
institutos privados de acordo com os direitos fundamentais e os princípios
constitucionais, encartados na CF/1988. Muito ao contrário do que sustentam
alguns, tal metodologia não se encontra esgotada em nosso País. Tanto isso é
verdade que acabou por ser expressamente positivada, indiretamente, pelo art.
1º do Novo Código de Processo Civil, eis que “o processo civil será ordenado,
disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos
na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições
deste Código”. Diz-se indiretamente
diante do fato de se atingir primeiramente os institutos processuais; e depois
os materiais. Sendo assim, acreditamos que essa visão unitária do sistema jurídico seja incrementada nos próximos
anos. Como bem demonstram Anderson Schreiber, Carlos Nelson Konder e outros
juristas em obra coletiva recentemente lançada, o Direito Civil Constitucional ainda tem pela frente muitos desafios
a superar (Editora GEN/Atlas, 2016).
[1] Artigo publicado na coluna Família
e Sucessões do Migalhas, em abril de 2016. Agradeço à Defensora Pública do
Estado do Amazonas e mestranda pela FADISP Melissa Credie, que trouxe a questão
para debate em exposição realizada na nossa disciplina de mestrado naquela
Faculdade, no último dia 18 de março de 2016.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Professor do
programa de mestrado e doutorado da FADISP – Faculdade Especializada em
Direito. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD – Escola Paulista de Direito,
sendo coordenador dos últimos. Professor da Rede LFG. Diretor nacional e
estadual do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado e
consultor jurídico em São Paulo.
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