A responsabilidade civil no transporte de cortesia
(carona)
Marco Aurélio Bezerra de Melo é Mestre em Direito pela Universidade
Estácio de Sá. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro. Professor Adjunto de Direito Civil e do Consumidor da Escola da
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro..
O transporte de
cortesia é um fato social que integra o cotidiano das cidades e dos campos.
Quantas vezes assistimos uma pessoa, dirigindo seu veículo automotor conduzir
gratuitamente o carona, a pedido ou mediante oferecimento, até
determinado local que, muitas vezes, nem é o seu destino final.
Há em determinadas
universidades o incentivo a tal prática, existindo pontos específicos de
carona, assim como revezamento entre colegas de trabalho que moram na mesma
localidade, dentre outros diversos exemplos, inclusive, ocasionais entre pessoas
que sequer se conhecem. Importa apenas que seja efetivamente gratuito, ou seja,
sem remuneração direta ou indireta como, por exemplo, o custeio do combustível.
O direito sempre
teve dificuldade em categorizar essa situação, utilizando-se, em um primeiro
momento, da ideia de que haveria um tipo de transporte gratuito a atrair a
norma jurídica contida no artigo 392 do Código Civil[1], sendo essa orientação defendida, dentre
outros, por Wilson Melo da Silva[2].
Por esse ângulo de
visada, o contrato de transporte seria, em regra, oneroso, admitindo-se a
unilateralidade e gratuidade se assim fosse o querer dos contratantes.
O verbete 145 da
súmula de jurisprudência predominante no Superior Tribunal de Justiça, aprovada
em período anterior ao Código Civil de 2002, adotou essa linha de pensamento ao
dizer que “no transporte desinteressado, de simples cortesia, o
transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado
quando incorrer em dolo ou culpa grave”. Orlando Gomes[3], em época bem anterior à atual
codificação, entendia ser justo proporcionar à pessoa que faz um favor a
proteção de somente responder por dolo ou culpa grave.
Adepto dessa tese,
José Fernando Simão[4] lança interessante fundamento no sentido
de que a permanência dessa ótica pode produzir o efeito de fomentar a salutar
prática da carona, uma vez que quem a oferecer somente responderá pelo dano se
ficar provado que o causou por dolo ou culpa grave. Diz o ilustre civilista que
“a carona deve ser estimulada e não punida. Já que o transporte público é
ineficiente, a carona é uma das formas de reduzir o número de carros nas ruas,
e com isso, reduzir o trânsito e melhorar o meio ambiente, sem poluição. É ato de
solidariedade e que faz bem ao meio ambiente”.
Passados mais de
quinze anos de vigência da atual Codificação e a perspectiva de apenas
responsabilizar o motorista que dá carona quando agir com dolo ou culpa grave,
aplicando-se o artigo 392 do Código Civil que dispõe sobre os efeitos dos
contratos gratuitos, continua sendo prestigiada pela jurisprudência pátria no
Superior Tribunal de Justiça[5] e nos Tribunais Estaduais[6].
Com o devido
respeito às opiniões em contrário, o entendimento supra não nos parece o mais
adequado e nem se afina com a orientação da atual codificação. O caput do
artigo 736 do Código Civil coloca a questão no seu devido lugar quando diz que “não
se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por
amizade ou cortesia”.
Se não há
subordinação é porque não se trata de contrato de transporte e sim um fato
social que apenas receberá a incidência de alguma norma jurídica se o motorista
causar dano ao carona pelo cometimento de ato ilícito culposo, ou seja,
se proceder com negligência ou imprudência ao dirigir o veículo automotor,
sendo tal comportamento a causa do dano[7].
Mesmo antes da
vigência do atual Código Civil, Mário Moacyr Porto[8] demonstrara que a doutrina e
jurisprudência francesa já tinham abandonado a contratualização do transporte
de favor ou cortesia e se posicionava por entender artificioso e forçado
“pretender que os gestos de pura cortesia possam ser catalogados como autênticos
contratos”. Em adendo a tal assertiva, traz instigante ilustração,
reflexionando que se um amigo é convidado para jantar e aceita, há um acordo de
vontades para determinado fim, “mas nunca um contrato para … jantar”.
Enfim, a nosso
sentir, não há necessidade de prova de culpa grave ou dolo para o fim de
responsabilização civil do motorista, na forma como o artigo 736 do Código
Civil tratou a questão. A culpa, em qualquer de seus graus, será o suficiente,
devendo ser aplicada a regra geral da responsabilidade civil aquiliana com a
combinação dos artigos 186 e 927, caput, do Código Civil[9], aplicando-se a vetusta regra cunhada por
Ulpiano do in lege aquilia et levissima culpa venit (a lei aquilia
aplica-se até na culpa levíssima), máxima a que Pontes de Miranda[10] com a argúcia costumeira denominou de
“princípio da suficiência de qualquer culpa”.
Sob o ponto de
vista da vítima do dano, esse último entendimento parece mais justo e
consentâneo com a ordem legal e constitucional que asseguram ao cidadão
ofendido a reparação do dano que aqui se fará sem as incertezas e inseguranças
da demonstração do grau de culpa exacerbado do motorista.
[1] Art. 392. Nos contratos
benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato
aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos,
responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei.
[4] José Fernando Simão. Quem
tem medo de dar carona? Mobilidade urbana e o transporte gratuito. Disponível
em http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/quem-tem-medo-de-dar-carona-mobilidade-urbana-e-o-transporte-gratuito/14373.
[5] Informativo nº
423/2010. Terceira Turma Responsabilidade Civil. Cortesia.
Transporte. A Turma decidiu que, no caso de transporte desinteressado, de
simples cortesia, só haverá possibilidade de condenação do transportador
mediante a prova de dolo ou culpa grave (Súm. n. 145-STJ). Outrossim, responde
por culpa grave o condutor de veículo que transporta passageiro gratuitamente,
de forma irregular, em carroceria aberta de caminhão, em que é previsível a
ocorrência de graves danos, mesmo crendo que não acontecerão. No caso, não cabe
a pretendida redução da condenação, por não ter sido apontada a lei vulnerada
pelo acórdão recorrido, razão pela qual incide a Súm. n. 284-STF por analogia. REsp 685.791-MG, Rel. Min. Vasco Della Giustina
(Desembargador convocado do TJ-RS), julgado em 18/2/2010.
[6] Responsabilidade civil.
Acidente fatal de trânsito. Transporte gratuito ou de cortesia (carona), em
automóvel GM Corsa, de propriedade do primeiro réu, conduzido, por ocasião do
sinistro, pelo segundo. Ação de indenização por danos materiais e morais.
Sentença de improcedência, com apelo só dos dois autores (pais). Intelecção
da Súmula 145, do C. STJ. Só se poderia condenar os réus ao pagamento das
indenizações pleiteadas, caso comprovada a existência de dolo ou culpa grave. Aplicação
do art. 333, I, do CPC. Mantida a r. decisão monocrática, por seus próprios
fundamentos. Nega-se provimento ao apelo dos demandantes. (TJSP, 27ª Câmara de
Direito Privado, Apelação nº 0001896-84.2013.8.26.0370, Rel. Des. Campos
Petroni, julg. em 26/01/2016).
[9] No mesmo sentido: Pontes
de Miranda. Tratado de Direito Privado, Vol. 45. 1954, p. 23/24; Renan
Lotufo. O Contrato de Transporte de Pessoas no Novo Código Civil. in
Revista de Direito do Consumidor, vol. 43, 2002, p. 205/214; Flávio
Tartuce. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. 10ª ed.
2015, p. 618; Em sentido contrário, prestigiando a súmula 145 do STJ e o artigo
392, do Código Civil para o caso: Gustavo Tepedino. Comentarios ao
Código Civil. Vol. X. 2008, p. 527/528; José Maria Trepat Cases. Código
Civil Comentado. Vol. VIII. 2003, p. 164; Paulo Jorge Scartezzini
Guimarães. Dos Contratos de Hospedagem, De Transporte de Passageiros e
de turismo. 2ª ed. 2010, p. 88/89; Araken de Assis. Obra citada, p.
359; Humberto Theodoro Júnior. Humberto Theodoro Júnior. Do
transporte de pessoas no novo Código Civil. in Revista Forense, Vol. 367,
2003, p. 103. Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado.
Parte Geral. Vol. 2. 1954, p. 263. Cláudia Lima Marques;
Antônio Herman V. Benjamin; Bruno Miragem. Comentários ao Código de
Defesa do Consumidor. 3ª ed. 2010, p. 158.
Nenhum comentário:
Postar um comentário