Reflexos da decisão do STF
de acolher socioafetividade e multiparentalidade
Por Ricardo Calderon. Mestre em Direito Civil pela UFPR.
Coordenador e Professor da Pós-Graduação em Direito de Família e das Sucessões
da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST). Diretor Nacional
do IBDFAM.
Às portas da primavera, o Supremo Tribunal Federal
aprovou uma relevante tese sobre direito de família, delineando alguns
contornos da parentalidade no atual cenário jurídico brasileiro. A manifestação
do STF contribui para a tradução contemporânea das categorias da filiação
e parentesco, sendo um paradigmático leading case na temática.
O tema de Repercussão Geral 622[1], de Relatoria do Ministro Luiz Fux,
envolvia a análise de uma eventual “prevalência da paternidade
socioafetiva em detrimento da paternidade biológica”[2]. Ao deliberar sobre o mérito da questão,
o STF optou por não afirmar nenhuma prevalência entre as referidas modalidades
de vínculo parental, apontando para a possibilidade de coexistência de ambas as
paternidades.
Esses noveis conflitos familiares refletem alguns
dos desafios que as múltiplas relações interpessoais apresentam aos juristas.
No complexo, fragmentado e líquido cenário da atualidade, a possibilidade de
pluralidade de vínculos parentais é uma realidade fática que exige uma
acomodação jurídica.
Tese aprovada em repercussão geral
Ao apreciar a temática subjacente à referida
repercussão geral o plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, houve
por bem em aprovar uma diretriz que servirá de parâmetro para casos
semelhantes.
A tese aprovada tem o seguinte teor: “A
paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o
reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica,
com os efeitos jurídicos próprios".
O texto foi proposto pelo ministro Luiz Fux,
relator, tendo sido aprovado por ampla maioria, restando vencidos apenas os
ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio, que discordavam parcialmente da redação
final sugerida.
A tese é explícita em afirmar a possibilidade de
cumulação de uma paternidade socioafetiva concomitantemente com uma paternidade
biológica, mantendo-se ambas em determinado caso concreto, admitindo, com isso,
a possibilidade da existência jurídica de dois pais.
Ao prever expressamente a possibilidade jurídica da
pluralidade de vínculos familiares nossa Corte Suprema consagra um importante
avanço: o reconhecimento da multiparentalidade, um dos novíssimos temas do
direito de família.
Principais reflexos da decisão do STF
A tese estabelecida na repercussão geral 622
permite destacar três aspectos principais.
i) O reconhecimento jurídico da afetividade
Resta consagrada a leitura jurídica da afetividade,
tendo ela perfilado de forma expressa na manifestação de diversos Ministros. No
julgamento da repercussão geral 622 houve ampla aceitação do reconhecimento
jurídico da afetividade pelo colegiado, o que resta patente pela paternidade
socioafetiva referendada na tese final aprovada. A afetividade inclusive foi
citada expressamente como princípio na manifestação do Ministro Celso de Mello,
na esteira do que defende ampla doutrina do direito de família. Não houve
objeção alguma ao reconhecimento da socioafetividade pelos ministros, o que
indica a sua tranquila assimilação naquele tribunal.
A necessidade do Direito contemporâneo passar a
acolher as manifestações afetivas que se apresentam na sociedade está sendo
cada vez mais destacada, inclusive no direito comparado, como na recente obra
de Stefano Rodotà, lançada em 2015, denominada Diritto D’amore[3]. Em suas afirmações, o professor italiano
sustenta que um novo cogito poderia ser escrito na atualidade,
com o seguinte teor: “amo, ergo sum”, ou seja, amo, logo existo,
tamanha a atual centralidade conferida para a dimensão afetiva nos
relacionamentos interpessoais deste início de século.
Na esteira disso, a necessidade da compreensão e de
um tratamento jurídico escorreito da afetividade se impõe, conforme já
sustentamos em obra sobre o tema[4]. Cabe avançar nos contornos da
afetividade a partir das balizas conferidas pelo direito brasileiro. Nesse
sentido, a tese aprovada pelo Supremo Tribunal Federal parece, de alguma forma,
contribuir para uma adequada significação jurídica da afetividade e dos seus
consectários.
ii) Vínculo socioafetivo e biológico em igual grau
de hierarquia jurídica
O segundo aspecto que merece destaque foi o
reconhecimento da presença no cenário brasileiro de ambas as paternidades,
socioafetiva e biológica, em condições de igualdade jurídica. Ou seja, ambas as
modalidades de vínculo parental foram reconhecidas com o mesmo status,
sem qualquer hierarquia apriorística (em abstrato).
Esta equiparação é importante e se constitui em um
grande avanço para o direito de família. A partir disso, não resta possível
afirmar aprioristicamente que uma modalidade prevalece sobre a outra, de modo
que apenas o caso concreto apontará a melhor solução para a situação fática que
esteja em análise.
Havia dissenso sobre isso, até então imperava a
posição do Superior Tribunal de Justiça, que indicava uma prevalência do
vínculo biológico sobre o socioafetivo nos casos de pedido judicial de
reconhecimento de paternidade apresentados pelo filhos[5].
A decisão do STF acolhe a equiparação dentre as
modalidades de vínculos, o que merece elogios[6]. A manifestação do Ministro relator, ao
julgar o caso concreto que balizou a repercussão geral, não deixa dúvidas
quanto a essa igualação: “Se o conceito de família não pode ser reduzido a
modelos padronizados, nem é lícita a hierarquização entre as diversas formas de
filiação, afigura-se necessário contemplar sob o âmbito jurídico todas as
formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela
presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais (como a fecundação
artificial homóloga ou a inseminação artificial heteróloga – art. 1.597, III a
V do Código Civil de 2002); (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela
afetividade.”[7]
Com isso, resta consolidado o status da
parentalidade socioafetiva como suficiente vínculo parental, categoria
edificada pelo professor Guilherme de Oliveira, em Portugal, e, no Brasil,
corroborada pelos professores João Baptista Vilella, Zeno Veloso, Luiz Edson
Fachin e Paulo Lôbo, dentre outros.
Esta equiparação prestigia o princípio da igualdade
entre os filhos, previsto no art. 227, parágrafo 6º, CF, e reiterado no art.
1.596 do Código Civil e art. 20 do ECA, mostrando-se adequada e merecedora de
elogios.
iii) Possibilidade jurídica da multiparentalidade
Um dos maiores avanços alcançados com a tese
aprovada pelo STF certamente foi o acolhimento expresso da possibilidade
jurídica de pluriparentalidade. Este é um dos novos temas do direito de
família, que vem sendo objeto de debate em diversos países[8].
Esta aceitação da possibilidade de concomitância de
dois pais foi objeto de intenso debate na sessão plenária que cuidou do tema,
face uma divergência do Min. Marco Aurélio, mas restou aprovada por ampla
maioria. Com isso, inequívoco que a tese aprovada acolhe a possibilidade
jurídica da multiparentalidade.
O voto do ministro Luiz Fux é firme no sentido do
reconhecimento da pluriparentalidade, com um amplo estudo a partir do direito
comparado. Em um dado momento, afirma: “Da mesma forma, nos tempos
atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando
o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os
vínculos.(...) Por isso, é de rigor o reconhecimento da dupla parentalidade[9]”.
Essas situações de manutenção de dois pais ou duas
mães já vinham sendo objeto de algumas decisões judiciais e estavam figurando
com intensidade na doutrina. Há inclusive um enunciado do IBDFAM aprovado sobre
o assunto: enunciado nº 09 – “A multiparentalidade gera efeitos jurídicos”,
do X Congresso Brasileiro de Direito de Família.
O acolhimento da possibilidade dessa multiplicidade
de vínculos familiares, exclusivamente pela via de uma decisão da nossa Corte
Constitucional, coloca — mais uma vez — o Supremo Tribunal Federal na vanguarda
do direito de família
Projeções a partir da tese fixada
Muitas são as análises possíveis a partir da
paradigmática decisão proferida nessa repercussão geral. Nesse momento,
registram-se apenas as primeiras impressões, com o intuito de destacar os
principais avanços e conquistas advindos da referida tese aprovada.
Inegável que houve significativo progresso com a
referida decisão, conforme também entendem Flávio Tartuce[10] e Rodrigo da Cunha Pereira[11]. Não se nega que alguns pontos não
restaram acolhidos, como a distinção entre o papel de genitor e pai, bem
destacado no voto divergente do Min. Edson Fachin ao deliberar sobre o caso
concreto, mas que não teve aprovação do plenário. Esta é uma questão que
seguirá em pauta para ser melhor esclarecida, sendo que caberá a doutrina
digerir o resultado do julgamento a partir de então.
Merecem ouvidos os alertas de José Fernando Simão,
a respeito do risco de se abrir a porta para demandas frívolas, que visem
puramente o patrimônio contra os pais biológicos. Essa possibilidade deverá
merecer atenção especial por parte dos operadores do direito, mas não parece
alarmante e, muito menos, intransponível.
O parecer do Ministério Público Federal apresentado
no caso concreto que balizou a repercussão geral também traz esses alertas, mas
confia na existência de salvaguardas dentro do próprio sistema: “De todo modo,
os riscos de indolência e excesso nas questões alimentícias são controlados
pelo binômio necessidade-possibilidade, que obsta o enriquecimento ilícito dos
envolvidos na multiparentalidade. (...) Eventuais abusos podem e devem ser
controlados no caso concreto. Porém, esperar que a realidade familiar se amolde
aos desejos de um ideário familiar não é só ingênuo, é inconstitucional.”
Entre limites e possibilidades importa louvar a
decisão do STF e destacar a participação do Instituto Brasileiro de Direito de
Família como Amicus Curiae nesse emblemático caso.
Por tudo isso, parece que os ganhos foram muitos,
de modo que merecem destaque para que reverberem de forma adequada na avançada
doutrina jusfamiliarista brasileira. É alvissareira a decisão do Supremo
Tribunal Federal, que certamente remete a outras questões e a novos desafios,
mas nos traz a esperança de uma nova primavera para o direito de família
brasileiro. Esse movimento faz lembrar o poema de Clarice Lispector: “Sejamos
como a primavera que renasce cada dia mais bela… Exatamente porque nunca são as
mesmas flores.”
[1] A sessão que fixou a tese foi realizada no
dia 21/09/2016, em deliberação do pleno do STF. O caso que balizou a apreciação
do tema foi o RE 898060/SC, no qual o Instituto Brasileiro de Direito de
Família-IBDFAM atuou como Amicus Curiae.
[2] Esse trecho constava no acórdão do plenário virtual que reconheceu a repercussão geral do tema.
[3] RODOTÁ, Stefano. Diritto D’amore. Bari: Laterza, 2015.
[4] CALDERON, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família.Rio de Janeiro: Renovar, 2013.
[5] Conforme demonstra: CARDOSO, Simone Tassinari. Notas sobre parentalidade socioafetiva. Trabalho aprovado e apresentado no II Congresso Brasileiro de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Civil-IBDCIVIL. Evento realizado em Curitiba, em 2014.
[6] O que já é adotado expressamente no direito belga, conforme informa Rui Portanova na sua recente obra: Ações de Filiação e Paternidade Socioafetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
[7] Trecho do voto do Min. Relator Luiz Fux, ao julgar o RE 898060/SC, p. 14.
[8] Para ler mais sobre Multiparentalidade consulte a coluna de Maria Berenice Dias, Proibição das famílias multiparentais só prejudica os filhos.
[9] Trecho do voto do Min. Relator Luiz Fux, ao julgar o RE 898060/SC, p. 17-19.
[10] Tartuce, Flávio. Breves e iniciais reflexões sobre o julgamento do STF sobre parentalidade socioafetiva. Blog oficial. Disponível em:.
Acesso em: 23.09.2016.
[11] Disponível em :http://www.ibdfam.org.br/noticias/6119/Tese+anunciada+pela+ministra+C%C3%A1rmen+L%C3%BAcia+reconhece+
[2] Esse trecho constava no acórdão do plenário virtual que reconheceu a repercussão geral do tema.
[3] RODOTÁ, Stefano. Diritto D’amore. Bari: Laterza, 2015.
[4] CALDERON, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família.Rio de Janeiro: Renovar, 2013.
[5] Conforme demonstra: CARDOSO, Simone Tassinari. Notas sobre parentalidade socioafetiva. Trabalho aprovado e apresentado no II Congresso Brasileiro de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Civil-IBDCIVIL. Evento realizado em Curitiba, em 2014.
[6] O que já é adotado expressamente no direito belga, conforme informa Rui Portanova na sua recente obra: Ações de Filiação e Paternidade Socioafetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
[7] Trecho do voto do Min. Relator Luiz Fux, ao julgar o RE 898060/SC, p. 14.
[8] Para ler mais sobre Multiparentalidade consulte a coluna de Maria Berenice Dias, Proibição das famílias multiparentais só prejudica os filhos.
[9] Trecho do voto do Min. Relator Luiz Fux, ao julgar o RE 898060/SC, p. 17-19.
[10] Tartuce, Flávio. Breves e iniciais reflexões sobre o julgamento do STF sobre parentalidade socioafetiva. Blog oficial. Disponível em:
[11] Disponível em :http://www.ibdfam.org.br/noticias/6119/Tese+anunciada+pela+ministra+C%C3%A1rmen+L%C3%BAcia+reconhece+
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