Breves reflexões sobre o efeito do suicídio no seguro de vida
Marco Aurélio Bezerra de Melo. Mestre em Direito pela Universidade Estácio
de Sá. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Professor Adjunto de Direito Civil e do Consumidor da Escola da Magistratura do
Estado do Rio de Janeiro.
Segundo estudos da
Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio (sui– si mesmo + caederes – ato de matar) é apontado como
um caso de saúde pública que em 2012 ceifou 804 mil vidas no mundo, sendo o 15º
gênero de óbito mais importante e entre as mortes violentas, é responsável por
56% dos casos. Estima-se que são 2200 por dia e a cada quarenta segundos uma
pessoa se suicida. No ano da pesquisa, em números absolutos, o Brasil ocupou a
oitava posição com 11.821 óbitos[1], sendo de lamentar o pouco caso que as
autoridades destinam a tão delicado tema, merecendo destaque o excelente
trabalho dos Centros de Valorização da Vida (CVV), instituição desvinculada de
religião ou governo que conta exclusivamente com voluntários para, com métodos
científicos de persuasão, tentar evitar essa lamentável forma de se despedir da
existência física por meio da autoeliminação.
Pode ser identificado como uma doença da alma, na situação
segundo a qual uma pessoa imagina que o próprio extermínio é a única forma de
fazer cessar a dor que o acomete. Pode ter como estopim uma doença física, mas
será sempre um mal psíquico como, por exemplo, a depressão, mal extremamente
perigoso e que pode estar por trás desse ato brutal de aniquilamento da vida.
Na seara jurídica, sempre existiu discussão se diante do
suicídio, a seguradora deveria ser obrigada a pagar o capital estipulado para o
beneficiário pelo segurado suicida ou apenas a reserva técnica formada com os
depósitos do segurado a fim de evitar o enriquecimento sem causa.
A indagação, sinteticamente, é a seguinte: será justo a
pessoa fazer um seguro de vida, atentar definitivamente contra a sua vida e
mesmo assim, o contrato produzir os seus efeitos e obrigar a seguradora a
realizar o pagamento do capital estipulado na apólice em favor do beneficiário?
Ora, não seria o suicídio um meio de retirar a álea do incertus quam que marca o termo da morte,
desvirtuando dos fins do contrato de seguro? O acaso ou casualidade do sinistro
não estará descaracterizado por um ato próprio do segurado, responsável único
pela sua ocorrência?
O artigo 1440 do Código Civil de 1916 entendia pela
possibilidade de que a vida e as faculdades humanas fossem objeto segurável
para o caso demorte involuntária, estabelecendo, por outro lado, que
se consideravamorte voluntária aquela
que decorresse de duelo, assim como a que decorresse de suicídio premeditado.
Em que pese a equivocidade que pode trazer, o
entendimento jurídico da expressão “suicídio premeditado” gira em torno da
ideia de afastar o dever de pagar o capital estipulado ao beneficiário quando
ficar patente que o segurado agiu dolosamente ao contratar um seguro de vida,
já trazendo previamente em sua mente que após o aperfeiçoamento do contrato,
iria dar fim à sua existência, tomando de surpresa o mutualismo e a análise do
risco que fora realizado pela seguradora, a partir do perfil do segurado. De fato,
o suicídio rompe qualquer possível expectativa da seguradora e desequilibra, de
certa forma, a economia do contrato.
Ao tempo da vigência do Código Civil de 1916, as cortes
superiores do Supremo Tribunal Federal pelo verbete sumular nº 105[2] (1963)
e do Superior Tribunal de Justiça pelo de nº 61[3] (1992)
estavam em harmonia no sentido da defesa de que a seguradora estaria obrigada a
cobrir o suicídio não premeditado e que a prova da premeditação incumbia a ela.
O Código Civil atual seguiu a concepção do Código Civil
Italiano que em seu artigo 1723 fixa um critério temporal de dois anos para
dizer que se o segurado se suicidar nesse lapso de tempo a contar da celebração
do contrato, o suicídio foi premeditado, desobrigando a seguradora do
pagamento. Nessa esteira, o artigo 798 do Código Civil brasileiro reza que o
beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida
nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução
depois de suspenso, ao passo que afirma a nulidade textual de cláusula
contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado após o
referido período.
A entrada em vigor desse dispositivo tem desafiado a
doutrina e a jurisprudência, sendo possível detectar três linhas de defesa
sobre a melhor interpretação do dispositivo.
A primeira e mais óbvia é a de simplesmente entender que
o direito brasileiro cria um critério objetivo temporal, qual seja, dois anos
para fixar quando há premeditação. Se o suicídio se der antes desse tempo, significa,
pela dogmatismo frio da lei que houve premeditação e não haverá o dever de
pagar o capital estipulado, apenas a reserva matemática que, porventura,
exista. Por outro lado, se o suicídio ocorrer após esse prazo, não houve
premeditação e o beneficiário terá direito ao capital segurado, sendo nula de
pleno direito a estipulação contratual que afaste o direito ao seguro nesse
caso[4]. Esse raciocínio é extraído da
interpretação literal da norma jurídica que seria cogente e não permitiria ao
intérprete diferente compreensão.
Há vários precedentes jurisprudenciais[5], inclusive proferido, ainda que não
unânime, pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça em Embargos de
Divergência[6] nessa
linha, além de importante apoio doutrinário[7]. Pontes de Miranda[8], ainda que tenha escrito o seu Tratado de
Direito Privado antes do Código Civil de 2002, parece se afinar a essa linha de
raciocínio, pois ao comentar o direito italiano, no qual o nosso seguiu à
risca, declara que se o suicídio ocorrer no que chama de “período de carência”
de dois anos previsto no artigo 1927 do Código Civil italiano a seguradora não
ficará obrigada ao pagamento. Essa parece ser a posição predominante.
A segunda orientação entende que a lei mais não fez do
que estabelecer o prazo de dois anos para que houvesse uma presunção relativa
de premeditação do suicídio. Se o suicídio acontecer antes do referido lapso
temporal, caberá ao beneficiário o ônus de provar que o suicídio não foi
premeditado a fim de ter direito ao recebimento do seguro[9]. O enunciado nº 187 da III Jornada de
Direito Civil[10] adotou
esse posicionamento. Após o prazo de dois anos a seguradora sempre estaria
obrigada ao pagamento.
A terceira corrente continua prestigiando as antigas
súmulas de jurisprudência dos tribunais superiores, entendendo que o Código
Civil prevê o prazo de dois anos para que a seguradora possa provar que o
suicídio foi premeditado, ou seja, cabe a ela esse ônus, pois há em favor do
segurado, ainda que tenha suicidado dentro do aludido lapso temporal, presunção
de boa fé[11].
Caio Mário da Silva Pereira[12] que
já trilhara esse caminho em seu anteprojeto de obrigações apresentado em 1963,
diante da norma jurídica posta teve oportunidade de se posicionar no sentido de
que a prova da premeditação por parte da seguradora é “imprescindível, sob pena
de o segurador obter enriquecimento sem causa, diante das pesquisas da ciência no
campo da medicina envolvendo a patologia da depressão.”.
Essa interpretação do artigo 798 do Código Civil se funda
nos princípios da função social do contrato, da boa fé que se presume e com as
diretrizes protetivas de índole constitucional prevista no Código de Defesa do
Consumidor e ao mesmo tempo possibilita a que a seguradora prove a premeditação
se o suicídio se der no prazo de dois anos a contar da celebração do contrato,
respeitando a força obrigatória dos contratos e preservando a legítima expectativa
do falecido contratante e do beneficiário. Assim, a possibilidade de não
conseguir provar a premeditação dolosa se o suicídio ocorrer no prazo de dois
anos é uma álea que deve ser considerada como tantas outras doenças que podem
acometer o segurado dentro desse período de tempo, posto que o suicídio, antes
de ser um ato doloso e de má fé, se apresenta como uma doença grave que
culminou nesse ato absolutamente insano que há de encontrar uma causa
patológica de ordem psíquica que o justifique.
Com todas as vênias, o critério objetivo temporal não nos
parece adequado e o artigo 798 do Código Civil merece uma interpretação mais
humanizada pelos princípios do direito das obrigações e menos literal, pois
nada obsta que a pessoa faça um seguro de vida sem imaginar o suicídio, mas
diante de uma prova severa imposta pela vida como desilusão amorosa,
desemprego, perda de ente querido, drogadição, alcoolismo, depressão ou outro
fato grave, resolva pôr fim à sua vida sem que se possa apontar nenhuma má fé.
Admitindo-se a judicialização da questão e diante da
premissa hermenêutica da presunção relativa de boa fé do segurado, a má fé,
isto é, a premeditação configura um fato extintivo do direito do autor e, sendo
assim, ao menos como regra, tal prova competirá ao réu (art. 373, CPC), salvo
se o magistrado, em decisão fundamentada, entender que diante das
peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou excessiva dificuldade
de cumprir o encargo, promova a inversão de tal ônus em homenagem à teoria da
carga dinâmica da prova (art. 373, § 1º, CPC).
Em suma, a nosso viso, em regra, o ônus de provar a má fé
do segurado, no prazo legal, com a premeditação dolosa de contratar o seguro
para em seguida, promover o autoextermínio, é da seguradora, mas a dinâmica do
caso concreto pode levar a que, na forma da lei processual, seja de competência
do beneficiário provar que não houve premeditação do suicídio por parte do
segurado.
[1] Maiores dados da OMS e do Ministério
da Saúde podem ser colhidos no excelente livro de André Trigueiro: Viver é a melhor opção. A
prevenção do suicídio no Brasil e no mundo. 2015, p. 17/39.
[2] Súmula 105 – Salvo se tiver havido
premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não
exime o segurador do pagamento do seguro.
[4] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. Contratos. 6ª ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 395/396.
[5] Ação de cobrança – Seguro de vida em
grupo – Suicídio do segurado – Contrato firmado na vigência do Código Civil de
2002 – Suicídio cometido
dentro do lapso temporal de dois anos de vigência do seguro – incidência do
art. 798 do CCB/2002 – Beneficiários que não têm direito ao recebimento da
indenização – Norma cogente e inafastável – Sentença reformada. A nova disciplina
dos contratos de seguro trazida pelo Código Civil de 2002 deve, sim, ser
aplicada em consonância com os princípios e com as normas do CDC, para que se
evitem abusos, mas isso não significa que possa o direito consumerista ser
deturpado a fim de aniquilar artigo de lei também de finalidade pública e fito
garantidor. Recurso provido. (TJPR, 9ª Câm. Cív., Ac. 9155, Rel. Des. Eugenio
Achille Grandinetti, DJ: 20/06/2008).
Nenhum comentário:
Postar um comentário