Estado civil de convivente de acordo com o Código
de Processo Civil de 2015
Por Jones Figueirêdo Alves. Desembargador decano do
Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de
Direito de Família (IBDFAM), onde coordena a Comissão de Magistratura de
Família.
Tem sido bastante discutida na doutrina a
existência ou não de um estado civil de convivente, diante das relações
familiares subjacentes e em face de pessoa solteira ou viúva, que portando os
respectivos estados civis dito prevalecentes, mantenha um relacionamento
convivencial com outrem.
Agora, a exigência prevista no artigo 319, inciso
II, do novo Código de Processo Civil (CPC/2015), no sentido de a petição
inicial indicar a existência de união estável por quem demanda ou por quem seja
demandado, quando se refere à qualificação das partes, resgata o debate
doutrinário.
Lado outro, o parágrafo 3º do artigo 73 do CPC/2015
passa a exigir que o companheiro necessitará do consentimento do outro para
propor ação que verse dobre direito real imobiliário (artigo 1.647, II, CC).
Nessa esteira, também a confissão do companheiro não valerá sem a do outro
(artigo 391, parágrafo único, CPC/2015).
Bem de ver que a necessidade de vênia do(a)
companheiro(a) para as ações reais imobiliárias, significa, segundo Flávio
Tartuce, um novo instituto jurídico, o da “outorga convivencial”,
equipotente ao da “outorga conjugal”, este último constante do artigo 1.647,
II, do Código Civil e que silenciou sobre o companheiro.
Tem-se também por certo, que diante da exigência do
artigo 1.647, inciso I, do Código Civil para a validade de determinados
negócios jurídicos, a necessidade de “outorga convivencial” afigura-se
idêntica, aos atos de alienação de bens imóveis ou de gravames de ônus real
sobre eles. Assim, impõe-se à sua falta a anulabilidade deles (artigo 1.649,
CC).
Mais ainda. A inclusão expressa do companheiro nas
regras processuais do novo CPC figura em muitos outros dispositivos, a saber:
a) artigo 144, incisos III, IV e VIII (impedimento do juiz); b) artigo 145,
inciso III (suspeição do juiz); c) artigo 388, inciso III (depoimento
desonroso); d) artigo 447, parágrafo 2º, inciso II (impedimento testemunhal,
salvo determinadas hipóteses); e) artigo 616, inciso I (legitimidade
concorrente do companheiro supérstite, para a abertura de inventário; f) artigo
617, inciso I (nomeação como inventariante).
Pois bem. Estamos na direção certa de encontrarmos
um estado civil prevalecente e substitutivo de pessoas que, não casadas,
estejam em estado de casamento de fato, ou mais precisamente, convivencial, sob
as exatas regras que tutelam a união estável.
Ocorre, todavia, que malgrado esse avanço, o
sistema do novo CPC, ao tratar dos requisitos da petição inicial, antes de
mencionar, no corpo da norma, necessária a indicação da existência de união
estável, nela antecipa, por igual, o requisito da indicação do estado civil. Ou
seja, situando no rol dos requisitos, uma aparente distinção entre o estado
civil e o fato do companheirismo que, por si mesmo, apresenta consequências
jurídicas próprias.
De efeito, a necessária boa-fé de a parte expressar
uma união estável existente e o novo dever processual de sua identificação como
convivente, importam significar que essa identificação coincide com a
individualização que se extrai do próprio estado civil, no sentido de dispor e
representar como a pessoa natural se situa em suas atuais condições e
circunstâncias.
Bem é certo que o estado civil está a exigir, em
sua caracterização, a devida publicidade que o define, a exemplo do casamento,
por ato jurídico cartorário e solene. No ponto, retenha-se, de logo, o
entendimento jurisprudencial, no tema da união estável. Vejamos:
i) Diante de tal publicidade inerente, tem sido
entendido que “a exigência de outorga uxória a determinados negócios jurídicos
transita exatamente por este aspecto em que o tratamento diferenciado entre
casamento e união estável é justificável”, a tanto se considerar não ser nula
ou anulável a fiança prestada por fiador convivente em união estável sem a
outorga uxória do outro companheiro, não incidindo a Súmula 332 do Superior
Tribunal de Justiça à união estável (STJ – Resp. 1.299.866-DF, rel. min. Luis Felipe Salomão, julgado em
25/2/2014).
No referido julgado,
resultou assente que “ainda que a união estável esteja formalizada por meio de
escritura pública, é válida a fiança prestada por um dos conviventes sem a
autorização do outro”, dada a especial circunstancia de que “para que dela o contratante tivesse conhecimento,
ele teria que percorrer todos os cartórios de notas do Brasil, o que seria
inviável e inexigível”. Logo, no
seu entender, mesmo diante da celebração de escritura pública, como prova de
entidade familiar reconhecida em lei, tal fato jurídico de união estável não
estaria a alterar o estado civil dos conviventes.
ii) A seu turno, outro
julgado assinala que “a invalidação da alienação deimóvel comum, fundada na falta de consentimento do companheiro, dependerá
da publicidade conferida à união estável, mediante a averbaçãode contrato de convivência ou da decisão declaratória
da existência de união
estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou da demonstração de má-fé do adquirente”.
Pondera o julgador: “No casamento, ante a sua peculiar conformação
registral, até mesmo porque dele decorre a automática alteração de estado de
pessoa e, assim, dos documentos de identificação dos indivíduos, é ínsita essa
ampla e irrestrita publicidade. Projetando-se tal publicidade à união estável,
a anulação da alienação do imóvel dependerá da averbação do contrato de
convivência ou do ato decisório que declara a união no Registro Imobiliário em
que inscritos os imóveis adquiridos na constância da união”. (STJ – REsp.
1.424.275-MT, rel. min. Paulo de
Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014, DJe 16/12/2014).
Ora bem. É consabido que a Lei n 6.015/1973 (Lei
dos Registros Públicos) dispõe no seu artigo 33, parágrafo único, que “no cartório do 1º Ofício ou da 1ª subdivisão judiciária, em
cada comarca, haverá outro livro para inscrição dos demais atos relativos ao
estado civil, designado sob a letra "E" (redação dada pela Lei
6.216/1974).
Como se observa, cuidando-se de demais atos
relativos ao estado civil, no respectivo Livro “E”, do Registro Civil das
Pessoas Naturais, ali têm sido também apresentadas a registro as escrituras
públicas declaratórias de união estável. Neste sentido, o Provimento nº 37, da
Corregedoria Nacional de Justiça, de 07.07.2014, veio dispor, por facultativo o
registro, no local onde os companheiros têm ou tiveram seu último domicilio. No
caso, ambos os companheiros são legitimados, em conjunto ou isoladamente, para
pedir o registro da escritura ou sentença declaratória da união estável e/ou o
registro ou averbação de sua dissolução no Registro Civil, como aliás refere o
artigo 12 do Provimento nº 10/2014, de 03.09.2014, da Corregedoria Geral de
Justiça de Pernambuco.
De outra banda, a natureza pública das informações
de registro civil e os princípios da eficiência, facilidade de acesso ao
público e segurança dos registros públicos, a teor do que estabelece o artigo
167, inciso II, parágrafo 5º, da Lei 6015/77, recomendam, em bom rigor, que o
registro da união estável por meio de escrituras públicas ou de sentenças
declaratórias de reconhecimento, deveria ou deverá ter natureza cogente e não
facultativa.
No ponto, cabe uma imediata reflexão. Na hipótese do
registro, em Livro “E”, da escritura ou sentença declaratória da união estável,
o que implica em repercussões jurídicas bem definidas, tornar-se-á claro um
novo estado civil, o convivencial. Ficarão, porém, aqueles outros, também
companheiros, que não diligenciaram por iniciativa própria o respectivo
registro, afastados da configuração legal de um estado civil definido,
existente e que lhes pertencem; de interesse, ainda, em necessidade da
segurança jurídica, por parte de terceiros.
Nessa toada, desponta agora o artigo 319, inciso
II, do novo Código de Processo Civil, no tocante à qualificação completa das
partes, nomeadamente sobre a união estável.
Não há negar a manifesta opção do legislador de
valorar essa realidade fenomênica da vida pessoal da parte, o que interimplica,
de forma iniludível, o seu estado de pessoa. Isto para a mais segura
individualização das partes no interesse substancial do processo, ao seu
resultado útil e à própria segurança da prestação jurisdicional. Precisamente,
do mesmo modo que o estado civil há de ser declarado, a preservar situações
onde a participação processual do cônjuge se torna imprescindível, obrigatória
também será a da indicação do convivente, para idênticos fins e, nessa
latitude, tem-se a configuração do estado civil convivencial.
A inovação significativa da norma é bem
recepcionada pela doutrina, apontando Misael Montenegro Filho que essa
exigência adicional se justifica, “na medida em que o § 3º do artigo 73
estabelece que, se a união estável for comprovada nos autos, ambos os
companheiros deverão ser necessariamente citados para as ações listas nos
incisos I, II, III e IV do mesmo dispositivo” (in “Novo Código de Processo
Civil Comentado” – GEN/Atlas, 2016, p. 338).
Exatamente. Esse tratamento processual novo no elenco
dos requisitos da inicial traz consigo um apontamento induvidoso. As relações
convivenciais não são menos importantes que as conjugais; cumprem as funções
constitucionais de família, figurando a união estável como entidade familiar
tipificada em seus elementos, diante dos diversos modelos de família.
De tal magnitude, bem por isso cuida ainda a novel
disposição do artigo 319, em seu parágrafo 1º, do CPC/2015, de determinar
diligências judiciais necessárias, por requerimento da parte autora, à obtenção
dos dados de qualificação da parte adversa, de forma a demonstrar o seu atual
estado civil, ou mais designadamente, se achar constituída ou não uma união
estável. Na hipótese, requisições, a respeito, ao Registro Civil de Pessoas
Naturais.
Posto isso, impende considerar, para os fins do
artigo 319, II, do novo CPC, que as pessoas que vivem em união estável, sejam
elas solteiras, separadas de fato ou judicialmente, viúvas ou, ainda,
divorciadas, não guardam o seu estado civil anterior; muito ao revés, situam-se
em nova entidade familiar, a da união estável. Essa condição, tem o pressuposto
lógico de um novo estado civil, a saber tratar-se de “uma qualidade de pessoa”
condizente com suas atuais relações de união, de onde se extraem, por ditado da
própria lei, direitos e deveres. Sergio Gischkow Pereira (2007) bem o
demonstra, sempre atual, doutrinando:
“Quem era viúvo, por exemplo, e estabeleceu
convivência com outrem, como se casado fosse, deixa de ser viúvo e passa a ser
companheiro. Terminada a união de fato, volta a ser viúvo, já que não é
nominada a condição de ex-companheiro”.
A jurisprudência constrói um idêntico entendimento:
“A existência de união estável implica alteração do
estado civil, pois esta figura jurídica, ao lado do casamento, é constitucionalmente
considerada uma entidade familiar protegida pelo Estado” (TJRS – 7ª Câmara
Cível - Apelação Cível n° 70010045045, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos).
Suficiente observar que o permissivo da adição do
patronímico do companheiro no registro civil tornou inconteste a ocorrência de
um estado civil de companheiro.
Por fim, o Projeto de Lei nº 1779/2003 na Câmara
Federal, dispondo sobre o estado civil dos companheiros na união estável,
alterando o Código Civil, e que tramitou por mais de dez anos, foi desarquivado
(19.02.2015). Fica agora ao legislador dizer, com maior exatidão, que o estado
de convivente é um estado civil, na dignidade de ser um direito de
personalidade reconhecido ao companheiro.
O novo processo civil começa, portanto, a ser
determinante no sentido de a existência de união estável configurar, com exatidão,
um estado civil da parte. A experimentação judiciária, no cumprimento do
processo civil justo, de modo a efetivar o artigo 319, II, do novo CPC,
afirma positivamente.
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