Padrastio: de uma
construção afetiva para um Estatuto jurídico
Jones Figueirêdo Alves
01. O afeto de uma relação é construído
na medida da sua inteira disponibilidade. “Valor, respeito e apego”, diria
Joseph Raz, filósofo do Direito no Balliol College, de Oxford, diante da
universalidade do tema e em experiência de singularidades. Quando, porém, a
construção afetiva sujeita-se a determinados efeitos jurídicos, cumpre
verificar em quais medidas há de ser compreendido esse afeto, espontâneo e
construído na relação existente. É o caso do padrastio, onde a figura do
padrasto não implica na consequente figura de pai socioafetivo do seu enteado e
em não ser assim também não implica na inexorável ausência de afeição na
relação com aquele.
Padrasto ordinariamente representa o pai
substituto, no contexto familiar, quando quem não sendo o pai biológico, presume-se
receptor de responsabilidades paternais, em face de união existente com
aquela(e) que já tenha filhos, havidos de união pretérita. Ou seja, perante os
enteados. Mais precisamente, enteados aqueles “nascidos antes” (natus) do relacionamento então vigente.
Poderá ocorrer, na hipótese, uma
paternidade por opção, em manifestação espontânea de uma relação paterno-filial
quando o padrasto exercita o papel do pai como guardião e protetor, nos plano
afetivo-emocional e socio-jurídico, a tanto admitir possa ele se contrapor à
figura do pai biológico. Essa ocupação de papéis (pai-filho x filho-pai)
fundados no afeto existente entre eles, como se pai e filho fossem por vínculo
genético, edifica uma realidade que tem sido interpretada juridicamente, como a
socioafetividade levada ao status de uma paternidade manifesta, aquela que mais
se identifica em sua substância, porque consolidada e reconhecida pela afeição
subjacente que a caracteriza.
Em situação adversa, poderá ocorrer,
todavia, uma relação incolor, inodora e inerte, onde o vínculo existente será
apenas o vínculo civil, ou conforme a leitura do art. 1.595 do Código Civil,
por mera ficção jurídica, um vínculo por afinidade, sem implicações maiores de
relações de afeto. O padrasto não
declina de sua condição de terceiro, não pretendendo assumir a qualidade
substituta de pai, colocando-se apenas expectador de um núcleo familiar contido
na relação originária.
No ponto, bem de ver que o artigo 1.636
do Código Civil contribui (infelizmente), nessa linha, ao afasta-lo de qualquer
interferência sobre o exercício do poder familiar, cuja regência continua
exclusivamente pertencente aos pais, nada obstante esteja ou possa estar o
padrasto, em boa medida, a prestar apoio à formação adequada dos enteados. Ou
seja, falta-lhe o devido papel jurídico diante da realidade jurígena das
famílias reconstituídas (reconstitutedfamily)
ou chamadas famílias recompostas (blendedfamily),
quando os recasamentos o colocam em cena diante da nova família, protagonista
que nele se presta a um desempenho efetivo.
Com efeito, acentua-se, de saída, que as
novas configurações familiares estão a exigir, inevitavelmente, inegável moldura
jurídica que sustente os vínculos afetivos ou meramente civis existentes entre
padrastos e enteados, a se entender, de um lado, que (i) o padrastio não
constitui, em modo, uma “paternidade instantânea”, com deveres e direitos
próprios e de outro (ii) está a exigir, sempre, uma “dinâmica de recomposição
da linha de substituição utilizada: integração ou exclusão” (QUEIROZ ROSALINO,
2013).
Dentro do novo sistema familiar, importa, antes, a
definição do padrasto como elemento e pressuposto de uma multiparentalidade
exsurgente, para o efeito jurídico do seu reconhecimento adequado, a tempo de
não negando a paternidade biológica precedente estabelecer, em urgente
conveniência, o aprendizado do seu papel jurídico.
Lado outro, significativos julgados estão a editar
indicadores iniciais para um Estatuto Jurídico do Padrastio, quando,
exemplificativamente, admitem:
(i) a legitimidade ativa do padrasto para o pleito
de destituição do poder familiar em procedimento contraditório, diante do seu
legitimo interesse de adotar o filho do outro cônjuge ou companheiro em
modalidade da adoção unilateral prevista no parágrafo único do artigo 1.626 do
CC (STJ – Terceira Turma, REsp. nº 1.106.637-SP, Rel. min. Nancy Andrighi, j.
em 01.06.2010);
(ii) a legitimidade ativa de enteado, diante do
reconhecimento da filiação socioafetiva entre vitima e aquele, para o pagamento
de seguro DPVAT (TJMG, 3ª Câm,. Cível, Apel. Cível nº
1.0384.08.071230-8/001, Rel. Des. Albegaria Costa, j. em 09.02.2012);
(iii) a prevalência do caráter socioafetivo da convivência
do falecido (pai registral) com o filho da companheira, a elidir falsidade
ideológica do registro de nascimento e tornar incabível pretensão anulatória do
ato pretendida por herdeiros (STJ – 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio de
Noronha).
02. Juridicidades. Às relações afetivas
exige-se que sejam escritas com história própria e pessoal, suficientes ao seu efetivo
reconhecimento e em obtenção dos efeitos jurídicos pertinentes; por isso que,
“nas questões em que presente a dissociação entre os vínculos familiares
biológico e socio-afetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se
posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as
peculiaridades do processo, cujos desdobramento devem pautar as decisões (STJ -
Terceira Turma; REsp. nº 2006/0070609-4-SP, Rel. min. Nancy
Andrighi, j. em 17.05.2007). Induvidosamente que sim.
Nesse conduto, o protagonismo do padrasto nas
famílias recompostas constitui situação jurídica indeclinável, porquanto ele e
enteado colocam-se integrantes das mesmas relações familiares, nomeadamente
vivenciadas por ambos e entre si. Designadamente, em contexto da vida em comum,
é o terceiro que se coloca em convivência diante da autoridade parental
originária.
Mais ainda se acentua o protagonismo quando o
padrasto assume uma paternidade fática sobre o filho da companheira, de pai
ignorado ou não figurante do registro civil. Todas as peculiaridades de caso
revelam, portanto, um universo normativo que se exige mais dinâmico, a observar
as situações especificadas.
Não há negar que o direito carece contextualizar,
no plano jurídico, as famílias recompostas (stepfamilies),
sempre mais numerosas, para assinalar, com as devidas adequações, a figura do
padrastio. Primeiros ensaios nessa ordem ocorreram com a lei francesa de 04 de
março de 2002, contemplando a intervenção de terceiros na vida das crianças, e
com maior destaque, o ordenamento jurídico inglês, que disciplinou com
exaustividade a questão, institucionalizando o papel do padrasto.
Interessante observar a tendência de uma repartição
de responsabilidades parentais, entre pais e padrastos que conduzem, com boa
nota, à pluriparentalidade. Significativa, nesse alcance, a Civil Partnership Bill, lei de parceria
civil de 2004, do Parlamento do Reino Unido, que entre diversas disposições,
estabelece a “responsabilidade de razoável manutenção de um parceiro e seus
filhos”.
As relações presentes de conjugalidade ou de
convívio do terceiro com o genitor dos filhos havidos anteriormente, cominam
com uma inexorável responsabilidade daquele, em padrastio, com os filhos do
outro parceiro, notadamente no plano das obrigações alimentares quando esses se
achem inseridos no núcleo familiar superveniente e durante o período de
convívio.
Ou seja, as obrigações alimentares são inerentes no
curso de tempo da união e cessam com a sua dissolução, como, exemplificativamente,
restringe o direito argentino em seu novo Código Civil (Lei 26.994/20 14),
vigendo desde 01.08.2015:
“Art. 676.
Alimentos. La obligación alimentaria del cónyuge o conviviente respecto de los
hijos del otro, tine caráter subsidiario. Cesa este deber em los casos de
disolución del vínculo conyugal o ruptura de la convivencia. (...)”
As responsabilidades parentais do padrastio ganham,
todavia, maior relevo, quando os enteados perdem o genitor com o qual convivia
o padrasto, impondo, com efeito, a assunção da responsabilidade plena, mais
ainda a saber da inexistência de outros familiares diretos e/ou do próprio pai
biológico.
Anota-se que o artigo 2.009, 1., “f”, do Código
Civil português ao referir sobre pessoas obrigadas a alimentos, colocam
vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada, “o padrasto e a
madrasta, relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no
momento da morte do cônjuge, a cargo deste”.
Aspectos relevantes ganham lugar no trato da
repartição de responsabilidades parentais para incluir o terceiro, como o
padrasto quase-parente, pai-substituto (de ocasião ou não), tudo a exigir
latitudes maiores de previsão legislativa.
Em sua obra “Direito Civil. Famílias”, PAULO LOBO
(2011), refere ao artigo 1.687, “b” do Código Civil Alemão (BGB - Bürgerliches Gesetzbuch),
onde permitido ao padrasto e à madrasta, o “direito de codecisão com seu
cônjuge nas questões da vida diária do filho, se aquele(a) detiver a guarda
unilateral”, a depender do comum acordo com o outro genitor. Ele cita a
doutrina de WILFRIED SCHLUTER que denominou situações que tais como o exercício
de um “pequeno direito de guarda”.
3. Conclusões. Pois bem. Malgrado o que
dita o artigo 1.636 do nosso Código Civil, urge que seja estimulada, diante de
famílias recompostas, a aplicação de planos de multiparentalidade, com a
homologação judicial, ao tempo da formação ou da consolidação do padrastio.
Para além disso, por principal, um
estatuto jurídico se faz necessário e exigível para dimensionar todos os níveis
de relações do padrastio, contemplando, no mais elevado espectro e na melhor
forma possível, a exemplo do direito britânico, as situações vivenciais e de convivências,
a definir responsabilidades parentais e socioafetividades subjacentes.
A obra de SILVIA TAMAYO HAYA (Editorial
Reus, Madrid. 2009) sob o título “El estatuto jurídico de los padrastros.
Nuevas perspectivas jurídicas” trouxe expressiva contribuição ao tema, ao
defender a elaboração de ordenamentos próprios.
Lado outro, significativo Acórdão do STJ
em ilustrando determinada situação fática, serve também a cogitar um
ordenamento adequado, com o proveito importante da jurisprudência que tem sido
construída. Vejamos:
“(...) 6.
As peculiaridades do caso, que revelaram a ausência de comprovação da
existência de relação afetiva entre o falecido e seu padrasto e o curto tempo
de convivência familiar entre ambos, justificam a fixação de verba
indenizatória em favor deste último em montante substancialmente inferior ao
arbitrado para a genitora do menor, sendo obstada sua revisão, na estreita via
do recurso especial, em virtude da inafastável incidência da Súmula nº 7/STJ.” (STJ – 3ª Turma, REsp. nº 1201244, Rel. Min.
Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 05.05.2015).
As
dimensões da afetividade no padrastio colocam-se como outro capítulo a merecer
doutrina e legislação pertinentes. O padrasto vezes outras não pretende
substituir o pai genético do enteado ou caracterizar com largueza vínculos paternais
socioafetivos marcantes. Mas tais circunstancias não o eximem de determinados
deveres jurídicos.
Com
pertinência, SILVIO ROMERO BELTRÃO (2015) tem lecionado que o padrasto, mesmo não
detendo maiores vínculos de afeto, não poderia, para eximir-se de uma suposta
sociopaternidade, atuar sem exação dos deveres mínimos de apego e de proteção,
sob pena de obrigar-se a posições de manifesta desafeição, o que não se coaduna
com os princípios de respeito e de solidariedade aos enteados. Ele indica a
alternativa do reconhecimento espontâneo da paternidade socioafetiva,
oportunizado e incentivado desde a edição do Provimento nº 09/2013, de 02.12.2013,
da Corregedoria Geral de Justiça de Pernambuco, de nossa autoria enquanto ali
no exercício interino, e seguido por outras Corregedorias. O normativo
destina-se à admissão administrativa da declaração da paternidade socioafetiva,
em registro civil, independente de processo judicial, sobre pessoas (enteados,
principalmente) que se achem registradas sem a paternidade estabelecida. Diz
ele, então: quem não exercitar a faculdade, não poderá ser havido como pai
socioafetivo.
Aliás,
mesmo o emprego da Lei nº 11.924, de 17.04.2009, que altera o art. 57 da Lei nº
6.015, de 31.12.1973 (Lei de Registros Públicos), para autorizar o enteado ou a
enteada a adotar o nome da família do padrasto ou da madrasta, não implica em
efeitos jurídicos extensivos à instituição automática da paternidade
socioafetiva.
Certo é
que a aceitação fática do encargo de uma família recomposta, com filhos do
companheiro ou do cônjuge, importa ao padrasto responsabilidades consentâneas
com a moderna doutrina do child of the
family, ou seja, a criança da família deverá estar, sempre, no centro das
afetividades que devem presidir as relações da nova família.
Em ser
assim, o padrastio tem o seu protagonismo certo. Uma razão a mais para a edição
de um estatuto jurídico sobre ele.
_____
O autor é Mestre em Ciências Jurídicas e
Especialista em Direito Civil pela Universidade Clássica de Lisboa (FDUL);
Desembargador Decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE);
Membro-convidado do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e do Instituto
dos Advogados de Pernambuco (IAPE); Membro da Academia de Letras Jurídicas de
Pernambuco (APLJ).
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