quarta-feira, 11 de maio de 2016

FRAUDE À EXECUÇÃO. ARTIGO DE ALEXANDO GOMIDE E ROBERTA RESENDE.

Fraude à execução: Lei 13.097/2015 versus novo Código de Processo Civil. Retrocessos na defesa do terceiro adquirente de boa-fé?
Alexandre Junqueira Gomide[1]
Roberta Resende[2]
Pode-se facilmente dividir a sistemática da fraude de execução no Brasil em dois períodos nitidamente distintos: antes e depois da Lei 13.097/2015.
Antes do advento de referido diploma o tema era regido unicamente pelas disposições contidas no artigo 593 do CPC/73, cujo caput e inciso II assim dispunham: “Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: (...) II. quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência.”
Por essa regra, recaía sobre o adquirente um ônus pesado, incongruente, tal a insegurança jurídica em que era lançado. Isso porque, conforme alertávamos em artigo de 2010[3], ainda que o comprador tomasse todas as cautelas necessárias no local da situação do imóvel, da residência do devedor e do trabalho do devedor, ainda assim poderia ser surpreendido “com demandas contra o devedor acerca das quais nem mesmo os documentos indispensáveis seriam capazes de alertá-lo”. E citávamos o caso de ação de execução em trâmite contra o vendedor no estado do Acre, enquanto imóvel, residência e domicílio do mesmo vendedor localizavam-se no estado de São Paulo. Fundamentando-nos em doutrina e jurisprudência majoritárias, destacávamos não ser minimamente razoável um sistema cujo pressuposto fosse a obtenção de certidões dos distribuidores de todas as comarcas do país; batíamo-nos, por fim, pela necessidade de proteção ao terceiro de boa-fé – assim reputado aquele que mesmo tendo tomado as cautelas necessárias no local da situação do imóvel e na residência e domicílio do devedor, ainda assim não tenha conhecido a existência da demanda capaz de levar o devedor à insolvência. Depois do advento do Código Civil de 2002, em cujo substrato se encontra a boa-fé, não era possível proceder de outra forma.
Desde o ano de 2006 até mesmo o legislador já havia começado a trabalhar pela mitigação de tal insegurança. Por meio da Lei 11.382/2006, alterações significativas foram introduzidas no texto do CPC/73, dentre as quais, o oferecimento ao exequente da faculdade de obter certidão da execução a fim de averbá-la no registro de imóveis ou veículos (art. 615-A, caput). Vieram no mesmo sentido as disposições do § 3°, do art. 615, segundo a qual “Presume-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bens efetuada após a averbação (art. 593)”; e a do § 4° do art. 659: “A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de penhora, cabendo ao exeqüente, sem prejuízo da imediata intimação do executado (art. 669), providenciar, para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, o respectivo registro no ofício imobiliário, mediante apresentação de certidão de inteiro teor do ato e independentemente de mandado judicial.” (todos grifos nossos)
Os tribunais brasileiros também já haviam começado a prestigiar em suas decisões a boa-fé do terceiro adquirente, o que culminaria em 2009 com a edição da súmula 375 do e. STJ, em cuja ementa se lê: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.”
Em progressiva depuração do tema, o passo seguinte foi a consolidação do entendimento em lei, o que se deu com a edição da Lei 13.097/2015, cujos artigos 54 e 55 assim dispõem:
Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:
I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;
II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil;
III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e
IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil.
Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.
Art. 55. A alienação ou oneração de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio edilício, devidamente registrada, não poderá ser objeto de evicção ou de decretação de ineficácia, mas eventuais credores do alienante ficam sub-rogados no preço ou no eventual crédito imobiliário, sem prejuízo das perdas e danos imputáveis ao incorporador ou empreendedor, decorrentes de seu dolo ou culpa, bem como da aplicação das disposições constantes da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. (grifos nossos)
A Lei 13.097/2016 é fruto da conversão da MP 656/2014, diploma gestado para alcançar “quatro grandes objetivos”, dentre os quais “aprimorar a legislação de registros públicos de imóveis”, “retomando, assim, o espírito de certas alterações promovidas na Lei n. 5.869 de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil – CPC), pela Lei 11.382, de 6 de dezembro de 2006”, conforme se lê no relatório produzido pelo Senado Federal para justificar sua elaboração.
Compulsando esse mesmo relatório, pode-se verificar o espírito que moveu o legislador, coincidente com os argumentos que já impulsionavam doutrina e jurisprudência:
“A ideia, portanto, é a de que, doravante, não se possam opor a terceiro adquirente de boa-fé, atos jurídicos não consignados na matrícula do imóvel, mesmo para fins de evicção, e inclusive na hipótese de alienação ou oneração de unidades autônomas integrantes de incorporação, imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio de lotes de terreno urbano, sendo que nesse caso, eventuais credores do alienante ficam sub-rogados no preço ou no eventual crédito imobiliário.”
(...)
Igualmente como consequência dos novos procedimentos registrais trazidos pela MPV, será doravante dispensada, para a lavratura de atos notariais relativos a imóveis (a exemplo de escrituras de compra e venda ou de inventário e partilha), a apresentação da certidão de feitos ajuizados, devendo, em razão disso, ser exibida a certidão de propriedade do bem (...).”
O inciso IV, do artigo 792 do novo CPC
Pois bem. Com a entrada em vigor do texto do novo Código de Processo Civil, Lei 13.105/2015, voltou a pairar sobre o tema danosa controvérsia. Da leitura do artigo 792 do novo Código, vê-se que os incisos I, II e III estão rigorosamente dentro da sistemática consolidada pela Lei 13.097/2015, na medida em que se referem expressamente à necessidade de averbação para a caracterização da fraude:
Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;
II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;
III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; (...)
A dificuldade encontra-se no inciso IV, que recupera a ideia de que caracteriza a fraude à execução a alienação ou oneração ocorrida quando “tramitava contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência”.
Ora, o que pretendeu com esse inciso IV o legislador? Pôr a perder um sistema coeso, lenta e cuidadosamente construído conjuntamente por doutrinadores, julgadores e legisladores, desde o advento do Código Civil até a promulgação da Lei 13.097/2015? Um sistema corroborado pelo próprio artigo 792 do novo CPC, em seus incisos I, II e III?
Não parece haver justificativa para tal interpretação, ainda que à primeira vista, exsurja tal temor. O entendimento acerca da fraude à execução consolidado na Lei 13.097/2015, repita-se, não foi fruto do acaso, tampouco do açodamento; pelo contrário, nasceu do trabalho diuturno dos operadores do Direito, de lento amadurecimento do tema no seio da comunidade jurídica, e tramitou paralelamente ao novo CPC – notem a proximidade da data de suas publicações, quase contemporâneas. Nesse cenário, não se poderia admitir um retorno ao status quo ante, sem justificativa; as discussões que fundamentaram a redação dos artigos 54 e 55 da Lei 13.097/2015 são recentes, expressam entendimento amplamente debatido, e como tal, merecem ser prestigiadas.
Teria ocorrido um “cochilo” do legislador, que por tradição teria repetido no inciso IV do artigo 792 do novo CPC a vetusta fórmula pela qual se caracterizou outrora a fraude à execução no direito brasileiro?
Para alguns intérpretes, lidas em conjunto, as disposições do novo CPC e da Lei 13.097/2015 permitem sustentar que o artigo 54 da Lei 13.097/2015 liga-se ao inciso IV do artigo 792 do novo CPC “não para reforçá-lo, mas para excepcioná-lo”[4]. Em outras palavras, o inciso IV do artigo 792 do novo CPC estaria se referindo apenas a bens não sujeitos a registros públicos, situação que poderia ser corroborada pelo parágrafo segundo do mesmo artigo, mantendo-se intacta a sistemática consolidada pela lei 13.097/2015 para os bens imóveis.  
Ainda assim, estaríamos diante de um problema.
De fato, o parágrafo segundo do artigo 792, do novo Código de Processo Civil determina que “no caso de bem não sujeito a registro o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para aquisição mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem”.
Isso significa que na aquisição de bem sujeito a registro (bens imóveis) o adquirente fica livre de solicitar tais certidões pessoais dos vendedores, bastando obter a certidão de matrícula, mas para a aquisição de bens móveis a prova de sua boa-fé estaria subordinada a essa condição? A lei não é clara.
Tomando-se essa interpretação como correta, assistiríamos a situação curiosa, em que eventual adquirente, digamos, de uma coleção de livros usados, precisaria obter certidões dos distribuidores da Justiça Estadual, Federal e do Trabalho, além da Junta Comercial, do local onde se encontra o bem e do domicílio do vendedor, e para o caso de descobrir ser o vendedor integrante de sociedade empresarial, todas essas mesmas certidões para a pessoa jurídica, a fim de se pôr a resguardo de eventuais ações executivas contra o vendedor. Somente a adoção de tais cautelas comprovaria sua boa-fé.  
Faria sentido impor ao adquirente de bem móvel um ônus em tudo superior àquele que recai sobre o adquirente de bem imóvel?
Haveria viabilidade em tal sistema, que para dizer o mínimo, engessaria as relações comerciais e semearia a desconfiança no mercado? Não seria mais fácil, simplesmente, a presunção de boa-fé do terceiro adquirente, criteriosamente trabalhada pela sistemática anterior?
Em recente entrevista sobre o tema para o boletim da AASP, Flávio Tartuce[5] lembra que com o advento do novo Código de Processo, o jurisdicionado brasileiro passa a estar adstrito não mais apenas à lei, mas também à jurisprudência dos tribunais superiores, em razão sobretudo dos comandos do artigo 928. Sob esse ponto de vista, adverte que toda a legislação acerca da fraude à execução deve ser interpretada de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, contexto em que ganha relevo o enunciado de Súmula 375, já comentado acima, bem como as teses firmadas no julgamento do REsp 956.943-PR, em incidente de recursos repetitivos, em 2014. Em outras palavras, o próprio novo Código de Processo Civil está assentado sobre a premissa da importância da exegese lentamente construída, dia a dia, julgamento por julgamento.
Crentes no Direito, seguiremos trabalhando pelos esforços hermenêuticos capazes de proteger um sistema que, como dito acima, foi lenta e cuidadosamente construído, e por seus benefícios jurídicos, dentre os quais a estabilidade das relações e a credibilidade do comércio, é digno de ser preservado.



[1] Alexandre Junqueira Gomide é mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor da Escola Paulista de Direito e demais cursos jurídicos. Advogado e colaborador do Blog Civil & Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br)
[2] Roberta Resende é formada pela faculdade de Direito do Largo de São Francisco/USP (Turma de 1995) e pós-graduada em Língua Portuguesa, com ênfase em Literatura.
[3] GOMIDE, Alexandre Junqueira. A proteção do terceiro adquirente na fraude de execução e a edição da Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça. Revista do IASP. Ano 13, n. 25, janeiro/junho 2010, p. 11-41.
[4] AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. Problemas de Direito Intertemporal na Nova Disciplina da Fraude à Execução no Ordenamento Jurídico Brasileiro. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PESSOA, Fabio Guidi Tabosa (coords.). Direito Intertemporal. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 439.
[5] TARTUCE, Flavio. O Novo CPC e as Ações Imobiliárias. Boletim da AASP. março 2016.

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