ESTATUTO
DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA.
UMA
NOTA CRÍTICA.
Por Zeno Veloso.
Publicado no Jornal O Liberal.
Está
em vigor no País, desde 03 de janeiro de 2016, a Lei n. 13.146, de 06 de julho
de 2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência, que trouxe muitas e importantes
modificações no direito brasileiro. É uma lei cujo projeto não foi acompanhado,
como devia, pela comunidade jurídica, que, em geral, encontra-se perplexa e
preocupada com os rumos que a nova legislação determina.
Um
dos temas profundamente alterados pela Lei n. 13.146/2015 é o referente à
capacidade civil. Houve, aí, uma verdadeira revolução. Deu-se nova redação aos
arts. 3º e 4º do Código Civil, que tratam, respectivamente, dos absolutamente e
dos relativamente incapazes.
O
art. 3º, caput, agora afirma: "São absolutamente incapazes de exercer
pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos". O
inciso I passou para o caput. E os incisos II e III do art. 3º foram revogados
pela aludida Lei n. 13.146/2015. Assim, não mais são considerados absolutamente
incapazes os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o
necessário discernimento para a prática desses atos, e os que, mesmo por causa
transitória, não puderem exprimir sua vontade. Como exemplos do último caso,
aponta-se: embriaguez (eventual), hipnose, transtorno, estado de coma,
anestesia geral, efeito de drogas (psicotrópicos, estupefacientes), perda de
memória, contusão cerebral. O Código Civil português menciona a incapacidade
acidental, no art. 257,1.
O
art. 4º foi também substancialmente alterado pela citada Lei n. 13.146/2015 e
ficou assim: "São incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de os
exercer: I- os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II- os ébrios
habituais e os viciados em tóxico; III- aqueles que, por causa transitória ou
permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV- os pródigos".
Como
se vê, além dos menores de dezesseis anos não há outros absolutamente incapazes
no atual ordenamento jurídico brasileiro. A Lei n. 13.146/2015 veio quebrar um
antiquíssimo entendimento: o que relacionava e vinculava deficiência mental com
incapacidade jurídica. A partir dessa lei, a pessoa com deficiência - seja
física, mental, intelectual ou sensorial - tem de ser considerada plenamente
capaz, não pode sofrer qualquer restrição, preconceito ou discriminação por
isso. A não ser que não possa exprimir a sua vontade, e, então, é enquadrada
não mais como absolutamente incapaz, mas como relativamente incapaz, sendo-lhe
nomeado um curador num processo judicial, e esta medida é considerada
excepcional. Note-se: a incapacidade relativa não decorre, inexoravelmente, da
deficiência, em si e por si só, mas pela circunstância de o portador de
deficiência estar impossibilitado de manifestar a sua vontade. Mais: o ato
praticado pelo curatelado sem a assistência do curador não é nulo, mas anulável
(CC, art. 171, I).
“Muita
água vai ter de passar por debaixo da ponte” e algum tempo é preciso, para que
uma lei como esta (n. 13.146/2015), que determinou tantas e tão profundas
transformações, seja melhor entendida e aplicada. Vejam, por exemplo, as
dúvidas e questões que podem surgir diante da revogação dos incisos II e III do
art. 3º, que excluiu do rol dos absolutamente incapazes aquelas pessoas citadas
acima. O art. 4º, inciso III, do Código Civil, com a redação determinada pela
aludida Lei n. 13.146/2015, como vimos, inclui no elenco dos relativamente
incapazes, “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem
exprimir a sua vontade”.
Um
deficiente mental, que tem comprometido absolutamente o seu discernimento, o
que sofre de insanidade permanente, irreversível, é considerado relativamente
incapaz. Bem como o que manifestou a sua vontade quando estava em estado de
coma. Ou o que contratou, ou perfilhou, ou fez testamento, sendo portador do mal
de Alzheimer em grau extremo. São casos em que não me parece que essas pessoas
estejam sendo protegidas, mas, ao contrário, estão à mercê da sanha dos
malfeitores, podendo sofrer consideráveis e até irremediáveis prejuízos.
Se
o agente praticou um negócio, declarou a sua vontade, em alguma daquelas
situações, acima exemplificadas, não é lógico nem de boa política legislativa
considerar que tais negócios sejam apenas anuláveis, produzindo efeitos,
enquanto não anulados. Os atos anuláveis, relembre-se, não podem ser conhecidos
ex officio pelo juiz, nem podem ser
alegados pelo Ministério Público, e convalescem pelo decurso do tempo. Para o
problema gravíssimo que estou apontando, é uma consequência muito tímida,
carente.
O
que transmite a sua vontade tem de ter um mínimo de liberdade, compreensão,
discernimento. E se tiver sido nomeado curador ao deficiente, não há intervenção
do assistente que supra a questão principal de o agente não possuir vontade
consciente, de não ter a mínima compreensão a respeito do significado,
extensão, efeitos do negócio jurídico.
Na
falta de uma intervenção corretiva do legislador (que sempre é tardonha), minha
primeira impressão sobre a questão que estou apresentando, é de que, para
evitar graves distorções e evidentes injustiças, temos de invocar a teoria da
inexistência, e privar de qualquer efeito negócios jurídicos cuja vontade foi
extorquida e nem mesmo manifestada conscientemente.
Para
ser nulo ou anulável, é preciso que o negócio jurídico exista. A inexistência é
uma categoria jurídica autônoma. Como adverte o doutíssimo Pontes de Miranda, o
problema de ser ou não-ser, no direito como em todos os ramos do conhecimento,
é o problema liminar (Tratado de Direito Privado, tomo 4, § 358). A
inexistência não é um tertim genus,
ao lado da anulabilidade e da nulidade. O plano da inexistência não é o da
validade, mas o da existência dos negócios jurídicos. Sem que tenha havido
manifestação de vontade, o negócio não apresenta um requisito essencial,
inafastável para que tivesse ingresso no mundo jurídico. Era o nec ullus do direito romano clássico. Não
é nem que seja ruim ou péssimo o que se apresenta; é nada, nenhum. O negócio
inexistente não produz quaisquer efeitos – nem parciais, secundários -, não se
lhes aplicando as figuras da redução e da conversão.
Já
desenvolvi o tema em meu livro Invalidade
do Negócio Jurídico – nulidade e anulabilidade (2ª ed., 2005, Del Rey, Belo
Horizonte, n. 23, p. 133), e disse, ali, que negócio inexistente
é aquele em que falta elemento material, um requisito orgânico para a sua
própria constituição. Há déficit de elemento fundamental para a formação do
negócio. Não se trata de ele ter nascido com má formação; trata-se de ele não
se ter formado. Na inexistência – apesar da aparência material – o que falta é
um elemento vital, o próprio requisito essencial (objeto, forma, consentimento)
para a configuração do negócio.
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