quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

COLUNA MIGALHAS. FEVEREIRO. DA AÇÃO DE ALTERAÇÃO DE REGIME DE BENS NO NOVO CPC. PRIMEIRA PARTE.

DA AÇÃO DE ALTERAÇÃO DE REGIME DE BENS NO NOVO CPC.
PRIMEIRA PARTE

Flávio Tartuce[1]


O Novo CPC, ao lado do tratamento das ações de família e da regulamentação do divórcio, traz um dispositivo relativo à ação de alteração de regime de bens (art. 734). A regulamentação instrumental dessa demanda é novidade no sistema processual brasileiro.
Como é cediço, a possibilidade jurídica dessa ação de modificação do regime de bens foi criada pelo Código Civil de 2002, especialmente pelo seu art. 1.639, § 2º, segundo o qual: “É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. A regra foi praticamente repetida pelo caput do art. 734 do Novo Código de Processo Civil, in verbis: “A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros”.
Cumpre destacar que as normas são claras no sentido de somente admitirem a alteração do regime mediante pedido judicial de ambos os cônjuges, em havendo uma ação de jurisdição voluntária, que corre na Vara da Família, se houver. Em projeções legislativas, existe a tentativa de se criar a possibilidade de alteração administrativa do regime de bens, por meio de escritura pública, conforme o PLS 470/2013, conhecido como Estatuto das Famílias do IBDFAM, que conta com o apoio deste autor. Na verdade, a reafirmação da necessidade de uma demanda judicial no Novo Código de Processo Civil já nasce desatualizada diante de outras projeções mais avançadas.
A alteração somente é possível, nos termos literais das normas, se for fundada em pedido motivado, desde que apurada a procedência das razões invocadas. Esse justo motivo constitui uma cláusula geral, a ser preenchida pelo juiz caso a caso, à luz da operabilidade e do sistema aberto adotado tanto pelo CC/2002 quanto pelo CPC/2015.
Como primeiro exemplo, pode ser citado o desaparecimento de causa suspensiva do casamento (art. 1.523 do Código Civil), sendo possível alterar o regime da separação obrigatória de bens para outro, na linha do que consta do Enunciado n. 262 do CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil. A jurisprudência superior já conclui desse modo, cabendo trazer à colação: “por elementar questão de razoabilidade e justiça, o desaparecimento da causa suspensiva durante o casamento e a ausência de qualquer prejuízo ao cônjuge ou a terceiro, permite a alteração do regime de bens, antes obrigatório, para o eleito pelo casal, notadamente porque cessada a causa que exigia regime específico. Os fatos anteriores e os efeitos pretéritos do regime anterior permanecem sob a regência da lei antiga. Os fatos posteriores, todavia, serão regulados pelo CC/2002, isto é, a partir da alteração do regime de bens, passa o CC/2002 a reger a nova relação do casal. Por isso, não há se falar em retroatividade da lei, vedada pelo art. 5º, inc. XXXVI, da CF/1988, e sim em aplicação de norma geral com efeitos imediatos” (STJ, REsp 821.807/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19.10.2006, DJ 13.11.2006, p. 261).
Como segundo exemplo de um justo motivo, a jurisprudência paulista deferiu a alteração, diante de dificuldades contratuais encontradas por um dos consortes. Assim julgando, por todos: “Regime de Bens. Pedido de alteração do regime de comunhão parcial de bens para o de separação total. Alegação de dificuldade de contratação de financiamento para aquisição de imóvel residencial, por força das dívidas contraídas pelo cônjuge varão. Preenchimento dos requisitos previstos no art. 1.639, § 2º, do Código Civil verificado. Ausência de óbice à alteração do regime de bens do casamento. Medida que não acarretará prejuízo algum aos cônjuges ou aos filhos. Terceiros que não serão atingidos pela alteração, que gerará efeitos apenas ‘ex nunc’. Alteração determinada. Recurso provido” (TJSP, Apelação com Revisão 600.593.4/4, Acórdão 4048973, São Paulo, Primeira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Luiz Antonio de Godoy, j. 08.09.2009, DJESP 06.11.2009).
De toda sorte, há quem entenda pela desnecessidade de motivação para que o regime de bens seja alterado judicialmente, eis que se trata de uma exigência excessiva constante da lei. Em suma, haveria uma intervenção dispensável do Estado nas questões familiares, o que feriria o princípio da não intervenção, previsto no art. 1.513 do CC/2002 e de outros regramentos do Direito de Família. Com esse sentir, decisão do Tribunal Gaúcho, de relatoria do Des. Luiz Felipe Brasil Santos, que conta com o nosso apoio:
“Apelação cível. Regime de bens. Modificação. Inteligência do art. 1.639, § 2º, do Código Civil. Dispensa de consistente motivação. 1. Estando expressamente ressalvados os interesses de terceiros (art. 1.639, § 2º, do CCB), em relação aos quais será ineficaz a alteração de regime, não vejo motivo para o Estado-Juiz negar a modificação pretendida. Trata-se de indevida e injustificada ingerência na autonomia de vontade das partes. Basta que os requerentes afirmem que o novo regime escolhido melhor atende seus anseios pessoais que se terá por preenchida a exigência legal, ressalvando-se, é claro, a suspeita de eventual má-fé de um dos cônjuges em relação ao outro. Três argumentos principais militam em prol dessa exegese liberalizante, a saber: 1) não há qualquer exigência de apontar motivos para a escolha original do regime de bens quando do casamento; 2) nada obstaria que os cônjuges, vendo negada sua pretensão, simulem um divórcio e contraiam novo casamento, com opção por regime de bens diverso; 3) sendo atualmente possível o desfazimento extrajudicial do próprio casamento, sem necessidade de submeter ao Poder Judiciário as causas para tal, é ilógica essa exigência quanto à singela alteração do regime de bens. 2. Não há qualquer óbice a que a modificação do regime de bens se dê com efeito retroativo à data do casamento, pois, como já dito, ressalvados estão os direitos de terceiros. E, sendo retroativos os efeitos, na medida em que os requerentes pretendem adotar o regime da separação total de bens, nada mais natural (e até exigível, pode-se dizer) que realizem a partilha do patrimônio comum de que são titulares. 3. Em se tratando de feito de jurisdição voluntária, invocável a regra do art. 1.109 do CPC, para afastar o critério de legalidade estrita, decidindo-se o processo de acordo com o que se repute mais conveniente ou oportuno (critério de equidade). Deram provimento. Unânime” (TJRS, Apelação Cível 172902-66.2011.8.21.7000, Marcelino Ramos, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 28.07.2011, DJERS 04.08.2011).

Consigne-se que, em sentido muito próximo, o Tribunal Paulista entendeu que não há necessidade de detalhamento das razões, ou seja, pela “desnecessidade de apresentação muito pormenorizada de razão” para a alteração do regime (TJSP, Apelação 0018358-39.2009.8.26.0344, Acórdão 5185207, Marília, Sétima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Gilberto de Souza Moreira, j. 01.06.2011, DJESP 09.08.2011).
Mais recentemente, pronunciou-se da mesma maneira o Superior Tribunal de Justiça, conforme publicação que consta do seu Informativo n. 518, com o seguinte tom:
“Nesse contexto, admitida a possibilidade de aplicação do art. 1.639, § 2º, do CC/2002 aos matrimônios celebrados na vigência do CC/1916, é importante que se interprete a sua parte final – referente ao ‘pedido motivado de ambos os cônjuges’ e à ‘procedência das razões invocadas’ para a modificação do regime de bens do casamento – sob a perspectiva de que o direito de família deve ocupar, no ordenamento jurídico, papel coerente com as possibilidades e limites estruturados pela própria CF, defensora de bens como a intimidade e a vida privada. Nessa linha de raciocínio, o casamento há de ser visto como uma manifestação de liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, no interior de espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de ‘asilo inviolável’. Sendo assim, deve-se observar uma principiologia de ‘intervenção mínima’, não podendo a legislação infraconstitucional avançar em espaços tidos pela própria CF como invioláveis. Deve-se disciplinar, portanto, tão somente o necessário e o suficiente para a realização não de uma vontade estatal, mas dos próprios integrantes da família. Desse modo, a melhor interpretação que se deve conferir ao art. 1.639, § 2º, do CC/2002 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada dos consortes. Nesse sentido, a constituição de uma sociedade por um dos cônjuges poderá impactar o patrimônio comum do casal. Assim, existindo divergência conjugal quanto à condução da vida financeira da família, haveria justificativa, em tese, plausível à alteração do regime de bens. Isso porque se mostra razoável que um dos cônjuges prefira que os patrimônios estejam bem delimitados, para que somente o do cônjuge empreendedor possa vir a sofrer as consequências por eventual fracasso no empreendimento” (STJ, REsp 1.119.462/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 26.02.2013).
Em suma, tem-se mitigado jurisprudencialmente a estrita exigência normativa do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, o que vem em boa hora, pois são os cônjuges aqueles que têm a melhor consciência sobre os embaraços que o regime de bens adotado pode gerar em sua vida cotidiana.
A interpretação deve ser a mesma no que diz respeito ao Novo Código de Processo Civil que, mais uma vez, parece estar na contramão da jurisprudência, ao exigir expressamente a motivação para a mudança do regime.  
Ainda nos termos da literalidade dos dois comandos, material e processual, a alteração do regime de bens não poderá prejudicar os direitos de terceiros, presente uma intenção legislativa de se proteger a boa-fé objetiva e de desprestigiar a má-fé. De modo algum essa alteração do regime poderá ser utilizada com intuito de fraude, inclusive tributária. A jurisprudência tem exigido cabalmente a prova de ausência de prejuízos a terceiros (TJSP, Apelação 644.416.4/0, Acórdão 4168081, Boituva, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 29.10.2009, DJESP 10.12.2009). Na mesma linha, o Enunciado n. 113 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil: “É admissível a alteração do regime de bens entre os cônjuges, quando então o pedido, devidamente motivado e assinado por ambos os cônjuges, será objeto de autorização judicial, com ressalva dos direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade”.
De qualquer forma, destaque-se que, em havendo prejuízo para terceiros de boa-fé, a alteração do regime deve ser reconhecida como meramente ineficaz em relação a esses, o que não prejudica a sua validade e eficácia entre as partes. Como bem explica Débora Brandão, “o resguardo dos direitos de terceiros por si só não tem o condão de obstar a mutabilidade do regime de bens. Aponta-se como solução para ele a elaboração de um sistema registral eficiente, tanto do pacto antenupcial como de suas posteriores modificações, para devida publicidade nas relações entre os cônjuges a terceiros e a produção de efeitos, ou seja, a alteração só produziria efeitos em relação a terceiros após a devida publicidade da sentença, cuja natureza é constitutiva, restando inalterados todos os negócios posteriormente praticados. Respeita-se, dessa forma, o ato jurídico perfeito” (BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Regime de Bens no Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 103).
Concluindo, nessa esteira, no âmbito jurisprudencial: “a alteração do regime de bens não tem efeito em relação aos credores de boa-fé, cujos créditos foram constituídos à época do regime de bens anterior” (TJRS, Agravo de Instrumento 70038227633, Porto Alegre, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, j. 24.08.2010, DJERS 30.08.2010). O acórdão julgou pela desnecessidade de prova, pelos cônjuges, da inexistência de ações judiciais ou de dívidas, pois isso não prejudica a eficácia da alteração do regime entre os cônjuges. Em síntese, não se seguiu a linha do citado Enunciado n. 113 do CJF/STJ, pois a perquirição da existência de dívidas ou demandas não seria uma exigência para a modificação do regime. Houve, nesse contexto, um abrandamento do texto do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, servindo a mesma conclusão para o art. 734, caput, do CPC/2015.
Cumpre ressaltar que outras decisões exigem tal prova, para que a alteração patrimonial seja considerada idônea e, então, deferida pelo juiz da causa (por todos: TJDF, Recurso 2006.01.1.036489-5, Acórdão 386.017, Sexta Turma Cível, Rel. Des. Luis Gustavo B. de Oliveira, DJDFTE 12.11.2009, p. 121; e TJSP, Apelação 644.416.4/0, Acórdão 4168081, Boituva, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 29.10.2009, DJESP 10.12.2009). A questão, como se vê, é polêmica, devendo ser aprofundada com a emergência do novel Estatuto Processual.
Aliás, expressa o § 1º do art. 734 do CPC/2015 que, ao receber a petição inicial da ação de alteração de regime de bens, o juiz determinará a intimação do Ministério Público e a publicação de edital que divulgue a pretendida modificação, somente podendo decidir o juiz depois de decorrido o prazo de 30 dias da publicação do edital. Como se vê, o Novo Estatuto Processual aprofunda a preocupação com a possibilidade de fraudes, determinando a atuação do MP, mesmo não havendo interesses de incapazes. Por todos os argumentos antes expostos, a preocupação parece excessiva e desatualizada ante a doutrina e jurisprudência consolidadas diante do Código Civil Brasileiro de 2002.
No que concerne à publicidade da modificação do regime patrimonial, no ano de 2012, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o mero registro da sentença transitada em julgado tem o condão de dar publicidade à alteração do regime de bens, não devendo prevalecer norma da Corregedoria do Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, que apontava a necessidade de publicação de editais dessa alteração. Assim, em certo sentido, não se adotou, por igual, a parte final do citado Enunciado n. 113, que determina a necessidade de ampla publicidade na modificação do regime. Vejamos a ementa do decisum:
“Civil. Família. Matrimônio. Alteração do regime de bens do casamento (CC/2002, art. 1.639, § 2º). Expressa ressalva legal dos direitos de terceiros. Publicação de edital para conhecimento de eventuais interessados, no órgão oficial e na imprensa local. Provimento 24/2003 da Corregedoria do Tribunal Estadual. Formalidade dispensável, ausente base legal. Recurso especial conhecido e provido. 1. Nos termos do art. 1.639, § 2º, do Código Civil de 2002, a alteração do regime jurídico de bens do casamento é admitida, quando procedentes as razões invocadas no pedido de ambos os cônjuges, mediante autorização judicial, sempre com ressalva dos direitos de terceiros. 2. Mostra-se, assim, dispensável a formalidade emanada de Provimento do Tribunal de Justiça de publicação de editais acerca da alteração do regime de bens, mormente pelo fato de se tratar de providência da qual não cogita a legislação aplicável. 3. O princípio da publicidade, em tal hipótese, é atendido pela publicação da sentença que defere o pedido e pelas anotações e alterações procedidas nos registros próprios, com averbação no registro civil de pessoas naturais e, sendo o caso, no registro de imóveis. 4. Recurso Especial provido para dispensar a publicação de editais determinada pelas instâncias ordinárias” (STJ, REsp 776.455/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 17.04.2012, DJE 26.04.2012).
Feitas tais considerações a respeito do tema, em um próximo texto, complementar ao presente, analisaremos os efeitos da ação de alteração do regime de bens, uma importante questão de direito intertemporal, bem como outras regras que foram introduzidas pelo Novo Código de Processo Civil.






[1] Doutor em Direito Civil pela USP. Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP – Faculdade Especializada em Direito. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD – Escola Paulista de Direito, sendo coordenador dos últimos. Professor da Rede LFG. Diretor nacional e estadual do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.

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