A
MOÇA TEM DUAS MÃES
Por
Zeno Veloso. Jornal "O Liberal".
O casamento de Lucimar com Theodoro durou cinco anos. E
foram anos de alegria, entendimento, felicidade, que culminou com o nascimento
de Ana Júlia. Passados mais dois anos, vitimada por doença cruel e incurável,
Lucimar faleceu, deixando orfã a filhinha.
Theodoro contratou uma babá experiente e passou, sozinho, a
criar Ana Júlia. Algum tempo depois, a menina já tinha completado quatro anos,
o viúvo conheceu Palmira, que passou a namorar. O romance evoluiu e os dois se
casaram. O primitivo lar foi recomposto, e sob o mesmo teto passaram a viver
Theodoro, Palmira e a criança, tudo na maior paz e harmonia.
Passou-se o tempo, consolidando aquela situação familiar.
Ana Júlia cresceu, está uma moça saudável, estudiosa, vai prestar exame
Vestibular para o curso de medicina, e nutre um grande amor pela mulher de seu
pai, sua madrasta, Palmira, que reputa e ama como verdadeira mãe, e esta, por
sua vez, a quer como se fosse filha, e assim a considera.
Não há dúvida que, entre Palmira e Ana Júlia, embora
inexistente o vínculo biológico, estabeleceu-se uma relação de amor,
intimidade, afetividade, um parentesco, uma filiação socioafetiva. A moça tem a
posse do estado de filha, e Palmira apresenta a posse de estado de mãe. "Tá
tranquilo, tá favorável", para usar o jargão da moda, mas falta algo para
completar a felicidade das duas: um papel, um documento, que oficialize aquela
situação que já existe, na prática da vida, e é reconhecida no meio social. Em
suma: Palmira quer que fique constando no registro civil de Ana Júlia que esta
é sua filha. Mas, ao mesmo tempo, ninguém deseja excluir desse registro o nome
de Lucimar, a saudosa mãe biológica, que amou a filha com grande intensidade, e
por esta foi amada, nos poucos anos em que conviveram, e amada continua sendo.
Realmente, não institutos do moderno Direito das Famílias,
que tem evoluído mais rapidamente do que o legislador vem conseguindo
acompanhar: a filiação socioafetiva e a multiparentalidade. Assim, é possível
que uma pessoa tenha dois pais: um pai biológico, que a registrou, e um pai
socioafetivo, que a criou.
No caso acima narrado, o desejo de Palmira é justo, merece
ser acolhido, até considerando que não se quer excluir do registro da filha o
nome da falecida mãe biológica. O fato é que Ana Júlia, pelas circunstâncias da
vida, e afinal das contas, tem duas mães, a primeira que a gerou, pariu e, por
alguns anos, criou, e a outra, que a recebeu e assumiu como filha,
conferindo-lhe amor e afeto, sendo esse sentimento recíproco.
O jovem e vitorioso jurista Flávio Tartuce, um dos mais
importantes civilistas de nosso país, aborda esta matéria de que estou tratando
("Direito Civil, v.5 - Direito de Família", 10ª ed., 2015, página
398), observando que o tema ganha relevo na questão relativa aos direitos e
deveres dos padrastos e madrastas, com grande repercussão prática no meio
social, ensinando: "Se a sociedade pós-moderna é pluralista, a família
também o deve ser e para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios",
e destaca, na linha do exposto, o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, que determinou o registro de madrasta como mãe civil de enteado,
mantendo-se a mãe biológica, que havia falecido quando do parto (cf. Apelação
0006422-26.2011.8.26.0286, 1ª câmara de Direito Privado, Itu, Relator
Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior, julgamento ocorrido em
14.08.2012).
Com a orientação de um bom advogado, tendo a sorte de
encontrar um membro do Ministério Público estudioso e atento à evolução do
Direito, e de um Juiz humano e culto, respeitada a memória da mãe biológica,
prematuramente desaparecida deste mundo terreno, a filiação socioafetiva que
foi estabelecida pode ser reconhecida e levada a registro. Ana Júlia constará
como filha das duas mães, a biológica e a socioafetiva, que a criou com o afeto
e o desvelo de uma verdadeira mãe. Constará também no registro que ela tem seis
avós: os pais de seu pai, os pais de sua mãe biológica e os pais de sua mãe
socioafetiva.
zenoveloso@hotmail.com
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