NÉVOA MORAL SOBRE O JUDICIÁRIA.
Os desembargadores e juízes acusados de vender sentenças para beneficiar bingueiros, caso sejam condenados, deverão retirar de suas mesas a estátua de Themis, a deusa da Justiça, cujos olhos cobertos por uma faixa simbolizam a imparcialidade no julgamento de ricos e pobres, poderosos e humildes, grandes e pequenos.
Os ilícitos cometidos por quem exerce a sagrada missão de aplicar as leis constituem uma violência inominável contra a sociedade, pois induzem à desconfiança na capacidade do Estado em fazer justiça e engrossam a espiral de criminalidade que sobe vertiginosamente ao topo da pirâmide social. Se representantes do mais respeitado entre os Poderes agem como criminosos, esboroa-se a fé na instituição encarregada de assegurar justiça.
O mal que uns poucos são capazes de produzir afeta o corpo do qual fazem parte. As pessoas passam a se interrogar: “Se eles podem praticar tramóias, por que devemos cumprir a lei?”
A crise do Judiciário nasce na fonte patrimonialista em que se batizou o Estado brasileiro. Nessas terras tupiniquins, “onde se plantando, tudo dá”, a semente dos interesses privados foi plantada na roça da res pública, desde a alvorada civilizatória, quando se praticaram os primeiros atos da ladroagem que fincou pé no chão da administração pública. Generoso, d. João III doou, entre 1534 e 1536, 15 capitanias hereditárias aos amigos da Corte.
As seqüelas geradas por esse donativo persistem até hoje, podendo-se, a partir daí, explicar a razão pela qual no Brasil o detentor do poder do Estado – políticos e juízes, por exemplo – não tem escrúpulos para enfiar no bolso privilégios, benefícios e direitos inerentes aos cargos que exercem. Quando um cidadão usa o poder que detém sobre outros em seu próprio favor, pactua com a corrupção. E, se considerarmos que o poder político tende a multiplicar sementes corrosivas, principalmente em culturas cartoriais, criam-se condições para o alastramento da “cleptocracia”, ou seja, da roubalheira do Estado.
Portando os vícios da origem do Estado, a crise do Judiciário adquire contornos definidos quando junta os adjetivos que marcam sua ação: lento, formalista e inacessível. Sua estrutura tem sido incapaz de administrar a explosão dos novos e complexos conflitos de uma sociedade em mutação e propiciar tutela jurisdicional tempestiva aos litígios clássicos. A excessiva demora do processo traz insegurança e o acúmulo de demandas gera colapso no sistema. Num período de dez anos, de 1988 a 1998, o número de feitos aumentou 25 vezes. Em 1990, recebia o Judiciário, na primeira instância, um processo para 40 habitantes.
Em 2000, um para 20 habitantes. O cipoal legislativo – 188 mil leis, das quais menos de um terço em vigor – atrapalha o ordenamento jurídico, provocando interpretações contraditórias, controvérsias e aumento progressivo dos recursos. Apesar de termos um modelo federalista, copiado do norte-americano, a esfera federal é quem legisla nos campos do direito material e processual, gerando excesso de centralização. Os tribunais superiores, por seu lado, mais atendem às demandas dos Poderes Executivo e Legislativo do que às lides oriundas do povo.
Os instrumentos criados para assegurar celeridade à Justiça – juizados especiais de pequenas causas cíveis e criminais, rito sumaríssimo na Justiça do Trabalho, súmula vinculante, súmula impeditiva de recursos, tutela antecipada – são uma gota d’água no oceano dos processos. A transparência deixa a desejar, reforçando o conceito de que o Judiciário possui “caixas-pretas”, que escondem gastos com estruturas, a liturgia dos julgamentos e os modos de pensar e agir dos juízes. O próprio Estado é quem mais entope as veias do Judiciário.
O “circo dos horrores” se completa com a dança para ingresso na magistratura. Com todo o respeito que o Poder merece, carrega-se a impressão de que os quadros precisam atravessar um corredor moral e ético mais longo que o atual. Significa defender para os magistrados sólida base psicológica e densa preparação, seja nos campos específicos do Direito, seja em áreas mais abrangentes do conhecimento e nos campos da ética pessoal e profissional, do relacionamento humano, da hermenêutica, da liderança, do raciocínio lógico e dos ensinamentos práticos.
É mais que compreensível o processo de juvenilização do corpo Judiciário, com o ingresso de jovens sem muito conhecimento e experiência numa folha que conta com cerca de 14 mil juízes, 1 para 13 mil habitantes. Houve, urge reconhecer, um rebaixamento dos níveis. Não é de admirar que, no meio da borrasca, respingos de lama caiam sobre o altar da Justiça.
por Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político.
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