COBRANÇA PELO DESPACHO DA BAGAGEM
EM VOOS É CLARAMENTE ABUSIVA
Flávio Tartuce[1]
A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) aprovou, no
último dia 13 de dezembro de 2016, nova norma que regula as condições gerais do
transporte aéreo. Trata-se da Resolução n. 400, que traz em seu conteúdo a
permissão para que as companhias aéreas cobrem, separadamente, pelo despacho da
bagagem dos passageiros, regra que passa a valer para as passagens vendidas a
partir de 14 de março de 2017. Segundo a Agência, as novas regras visam a
adequar o País às principais normas internacionais, bem como almejam a redução
dos preços das passagens.
Apesar do último argumento, o próprio superintendente
para serviços aéreos da ANAC declarou à imprensa que não existem garantias para
que os preços sejam reduzidos, diante da existência de outros fatores, como a grave
crise econômica que atinge o Brasil e a alta do dólar frente ao Real.
Pois bem, acreditamos que existem argumentos jurídicos sólidos
e consistentes para que a medida seja imediatamente afastada por decisões
judiciais, com o manejo de ações coletivas pelos órgãos competentes, ou por
outros mecanismos legítimos.
O primeiro argumento é que a norma afasta as regras de tráfego, consolidadas no meio
social e jurídico brasileiro e que geraram, durantes anos, justas e plausíveis
expectativas aos passageiros. Não se olvide, nesse contexto, que os negócios
jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da
celebração, conforme está expresso no art. 113 do Código Civil, preceito que
incide não só na ausência de regras específicas, mas também quando estas
existem. Não cabe, entre nós, o argumento de que o País deve se adequar à
realidade internacional, pois o Brasil tem a sua própria realidade social e
jurídica. Ademais, a "tese" de adequação internacional diz respeito às viagens de baixo custo (low cost), em que as bagagens são
cobradas em separado, o que, definitivamente, não se aplica às companhias áreas
brasileiras. Na Europa, uma viagem nesse padrão custa, em média, 30 euros,
enquanto uma ponte aérea entre o Rio de Janeiro e São Paulo tem o valor médio
de 300 reais.
Como segundo argumento, é da essência do transporte de
pessoas que as bagagens estejam incluídas no valor total do contrato,
aplicando-se o princípio da gravitação
jurídica, segundo o qual o acessório segue o principal. A propósito, ao
definir o negócio, estabelece o art. 730 do Código Civil que pelo contrato de
transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar
para outro, pessoas ou coisas. Em complemento, quanto à responsabilidade do
transportador, esta inclui não só a integridade do passageiro, mas também da
sua bagagem, conclusão retirada do art. 734 da mesma codificação privada, in verbis: “O transportador responde
pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de
força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade”. Fica
claro, portanto e pela nossa legislação, o sentido da inclusão dos bens móveis
que acompanham o passageiro, o que também é retirado da afirmação constante na
doutrina e na jurisprudência nacionais quanto a ter o transportador uma
obrigação de resultado, de levar o passageiro e suas bagagens, conjuntamente, ao
destino com segurança.
O art. 13 da Resolução n. 400 traz um conteúdo que quebra
com essa estrutura única contratual, consolidada em anos de nossa tradição
jurídica. Conforme o diploma, "o transporte de bagagem despachada
configurará contrato acessório oferecido pelo transportador". Ora, não
existem dois contratos, o que pode ser claramente notado pelos dispositivos do
Código Civil aludidos. Há um único negócio jurídico, qual seja o de transporte
de pessoas, sendo a obrigação de também transportar as bagagens uma prestação
acessória do mesmo contrato. Não poderia uma mera resolução alterar uma
estrutura criada pelos usos e costumes, e adotada expressamente pela lei.
Além disso, a cobrança em separado viola a função social
do contrato, princípio de ordem pública expresso nos arts. 421 e 2.035,
parágrafo único, do Código Civil. Nota-se que a malfadada norma da ANAC ampliou
o limite da bagagem de mão para 10 kg, sem que os aviões e as companhias
aéreas, especialmente nos voos nacionais, tenham estrutura para acomodar as
malas de todos os passageiro na parte superior. Por certo, haverá um movimento natural
de não se despachar mais as bagagens, acomodando-as nos bagageiros superiores das
aeronaves. Quem tem o costume de viajar internamente já pode prever o caos que se
aproxima! Assim, pensamos que, socialmente, a norma representa um desserviço
para a coletividade, podendo inclusive comprometer a segurança dos passageiros.
Como quarto argumento, a cobrança em separado das
passagens gera enriquecimento sem causa das companhias aéreas, ato unilateral
vedado expressamente pelo art. 884 do Código Civil. Tal cobrança, salvo melhor
juízo, somente seria possível se houvesse, já
de antemão, um amplo compromisso das companhias áreas — com atuação dos
órgãos competentes, especialmente do Ministério Público Federal — de redução
dos valores. E, como se vê, tal compromisso prévio não existe.
O quinto e principal argumento diz respeito à violação de
preceitos do Código de Defesa do Consumidor, norma de ordem pública e interesse
social, com fundamento no art. 5º, inciso XXII, da Constituição Federal. De
início, cite-se o desrespeito ao art. 4º, inciso III, da Lei n. 8.078/1990, que
estabelece como um dos fundamentos da Política Nacional das Relações de Consumo
o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores, o que está sendo
claramente quebrado, pois os primeiros estão sendo colocados em situação de
onerosidade excessiva.
Sem prejuízo dessa norma, a ANAC está desrespeitando o
disposto no art. 39, inciso V, do CDC, que veda, como prática abusiva, a
conduta de exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva. As passagens
áreas no Brasil já têm valores excessivos, com serviços que são notoriamente
conhecidos como ruins. Cobrar o despacho da bagagem fará com que aquilo que já
pode ser considerado abusivo passe a ser extorsivo. Sem prejuízo dessas normas,
com a resolução da ANAC, os contratos de transporte aéreo passam a ter, por
imposição estatal e dirigista, cláusulas abusivas, em violação a vários incisos
do art. 51 do mesmo Código Consumerista. Cite-se, somente a ilustrar, o inciso
IV (que veda a cláusula-lesão, que
coloca o consumidor em situação de desvantagem exagerada) e o inciso X (que
proíbe a imposição de preço aos consumidores de forma unilateral).
Como palavras finais, acreditamos que a ANAC não está
cumprindo a sua função institucional, que é de harmonizar o sistema social e
econômico, buscando o equilíbrio entre a tutela do mercado e dos consumidores.
Há, assim, claro desrespeito ao mandamento previsto no art. 170
do Texto Maior. A Constituição Federal de 1988 visa, nesse comando, a proteção
da ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa,
tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social e observados os princípios da livre concorrência e da defesa do
consumidor. Entendemos que houve uma preocupação com o primeiro princípio, mas
não com o segundo. Imperioso, assim, que a infeliz norma não tenha aplicação em
nosso País.
[1]
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP
(Faculdade Autônoma de Direito, em São Paulo). Professor e coordenador dos
cursos de pós-graduação lato sensu da
Escola Paulista de Direito. Professor da Rede LFG. Advogado em São Paulo,
parecerista e consultor jurídico. Autor, entre outras obras, da coleção Direito Civil, sem seis volumes, e do Manual de Direito do Consumidor, pela
Editora GEN.
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