E então o STF decidiu o
destino do artigo 1.790 do CC? (parte 2)
Fonte: CONJUR.
Por José Fernando Simão. Professor da Faculdade de
Direito da USP. Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito Civil pela USP.
Advogado e consultor jurídico.
“To be or not to be, that is the question”
Em nossa última coluna nesta ConJur,
analisava eu os argumentos contidos no voto do Ministro Barroso (RE 878.694/MG)
para reconhecer a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC.
O primeiro argumento foi que (a) não é legítimo
desequiparar casamento e união estável para fins sucessórios, pois a
hierarquização é incompatível com a Constituição Federal. Vamos ao segundo
argumento.
(b) “Diferenciação legítima ou arbitrária, eis a
questão”
O voto reconhece que a ampliação do conceito de
família não implicou equiparação absoluta entre casamento e união estável.
Diferenças existem quanto à criação, comprovação e extinção. Logo, é possível
que o legislador crie regimes diferentes para os institutos. A diferença não é,
por si, inconstitucional.
Contudo, a questão é saber se a diferenciação é legítima
ou arbitrária (item 42 do voto). Segundo o Ministro Barroso, são esses
adjetivos que caracterizarão a inconstitucionalidade: se a diferenciação for
legítima ela é constitucional, mas se arbitrária será inconstitucional. O
Ministro exemplifica como legítima a diferença quanto aos requisitos para
comprovação dos institutos (item 44).
Então vem a questão: como podemos saber se a
diferenciação feita pela lei é ou não arbitrária? A dúvida de Hamlet passa a
ser a dúvida de todos os juízes ao aplicarem o Código Civil e demais leis em
matéria de união estável.
Da leitura do voto do Ministro Barroso percebe-se
uma linha condutora. Só é constitucional a diferença quando da criação,
comprovação e extinção, logo, em termos de efeitos, união estável e
casamento não podem ser diferenciados, sob pena de arbitrariedade e consequente
inconstitucionalidade.
b.1) Diferenças na criação são legítimas, logo
constitucionais
O casamento passa pelo ritual de habilitação,
celebração e registro no livro B do Registro Civil e a união estável é um
simples fato da vida: união pública, contínua e duradoura com o objetivo de
constituir família. É legítima e constitucional a diferença.
Assim, não se exige “procedimento de habilitação”
para os companheiros iniciarem sua união estável, nem que ocorra “celebração da
união estável”, muito menos seu registro no livro E do do Registro Civil. A
criação da união estável prescinde de contrato escrito.
b.2) Diferenças na comprovação são legítimas, logo
constitucionais
O casamento se comprova pela certidão de casamento,
já que este é registrado no livro B do Registro Civil. A certidão é a prova
essencial de sua existência. Já a união estável pode ser comprovada por simples
prova testemunhal, por contrato escrito ou mesmo escritura pública.
É verdade que mesmo o casamento admite a prova do
estado de casado em casos de perda ou destruição do livro em que o casamento
está registrado. Nessa hipótese, os cônjuges conjunta ou isoladamente podem
promover uma ação para provarem a existência do casamento e seu início.
Também deve-se frisar que com os avanços
tecnológicos no sistema registral e notarial dificilmente essa situação se
verifica na atualidade, mormente para os casamentos mais recentes. Essas
diferenças são constitucionais.
b.3) Diferenças na extinção são legítimas, logo
constitucionais.
O casamento válido só termina pela morte de um do
cônjuges (velho adágio pelo qual mors omnia solvit), pela invalidade
(seja o casamento reconhecido como nulo ou anulável) ou pelo divórcio.
A separação de fato não põe fim ao casamento. Isso
não significa dizer que a separação de fato não produz qualquer efeito. O STJ
há algum tempo reconhece que a separação de fato põe fim ao regime de bens e
aos deveres dos cônjuges, mormente a fidelidade conjugal.
Aliás, o próprio CC reforça a importância da
separação de fato ao permitir a união estável de pessoas que se encontram nessa
situação (art. 1.723, p. único do CC).
Todavia, se divórcio não hover não será possível
novo casamento, sob pena de bigamia (art. 1.521, VI do CC). Assim, é a sentença
ou escritura pública de divórcio que põe fim ao casamento. Seus efeitos são ex
nunc, não retroativos.
Já a união estável, como simples relação de fato,
começa e termina de maneira informal. A separação de fato põe fim à união
estável e se decisão judicial houver, apenas declara um fato já ocorrido. Seus
efeitos são ex tunc, logo retroativos. Essas diferenças são
constitucionais.
b.4) Diferenças quanto aos efeitos são ilegítimas,
logo inconstitucionais
A aparente simplicidade da questão até o momento
não deve iludir o leitor. A partir de agora, vem um cipoal, uma emaranhado de
problemas que decorrem do voto do Ministro Barroso.
Em matéria de efeitos, o CC desiguala em diversos
dispositivos a união estável do casamento, o que então conduziria à
inconstitucionalidade dos dispositivos a saber:
i) Todas as regras sucessórias aplicáveis aos
cônjuge se aplicam aos companheiros.
Assim, na redação do artigo 1.829, onde se lê
atualmente “cônjuge” se lerá “cônjuge ou companheiro”. Essa leitura se espraia
por todo o livro de Sucessões.
Dúvida não há que cônjuge e companheiro terão
direito real de habitação em caso de falecimento do outro (art. 1.831 do CC).
Todos os dispositivos de concorrência sucessória se
aplicam igualmente aos companheiros: art. 1.832 (concorrência com descedentes)
e art. 1837 (concorência com ascendentes). O companheiro exclui o colateral da
sucessão (art. 1.838). Assim, o cônjuge e o companheiro são herdeiros
necessários fazendo jus à legítima (art. 1.845 do CC).
O companheiro retorna à situação sucessória
existente antes da vigência do CC/02 em que tinha idênticos direitos
sucessórios se comparados aos cônjuges.
ii) A presunção pater is est do artigo 1.597 se
aplica à união estável. O filho da mulher casada ou da companheira se presume
filho de seu marido ou companheiro a partir da decisão do STF.
Assim, basta que a companheira leve ao Registro
Civil seu contrato de união estável, por instrumento público ou particular,
para que a presunção se aplique.
O leitor, já em pânico, pode se perguntar: e se a
união estável já tiver sido dissolvida, ou se o contrato for falso, como fica a
paternidade? Caberá ao pai impugná-la, pois se trata de presunção simples.
Aliás, mesmo problema ocorre com o casamento. Se os
cônjuges estiverem separados de fato a presunção relativa poderá ser afastada
pelo marido em ação própria.
iii) A outorga conjugal se aplica também à união
estável, pois seria arbitrária a sua exigência apenas para o casamento
Como a união estável pode nascer sem qualquer
instrumento que a comprove, temos que distinguir as situações fáticas. Se as
pessoas se declaram eum união estável, as regras da outorga uxória e marital se
aplicam in totum a elas, nos exatos termos do art. 1.647 do
CC. É o caso de uma aquisição de imóvel em que o vendedor se declara “solteiro
em união estável”.
Se houver um contrato de união estável ou sentença
registrados no 1º Registro Civil de Pessoas Natural, em seu livro E, os efeitos
são idênticos[1].
Se a união estável não contar com essa comprovação
documental, se for simplesmente um fato da vida, haverá sim a incidência das
regras referentes à outorga conjugal, mas não perante terceiros de boa-fé, que
desconheçam a existência de união estável. Seus efeitos se limitam à relação
entre os companheiros.
iv) Quanto ao contrato de união estável temos a
regra do art. 1.725 pela qual as partes devem convencioná-lo por escrito, seja
por escritura pública, seja por instrumento particular. Para o casamento, o
pacto antenupcial terá sempre a forma pública (art. 1.653).
Com a decisão do STF sobre diferenças legítimas e
arbitrárias, não há razão para se permitir uma forma menos rígida (instrumento
particular) para a união estável e outra mais rígida (escritura pública) para o
casamento.
O contrato de união estável necessitaria da forma
pública para ter validade, já que a diferença é arbitrária, logo inconstitucional.
Resta uma questão: a mudança de regime de bens no
casamento exige um procedimento judicial e determinados requisitos (art. 1639,
par. 2º do CC). O mesmo se aplicaria aos companheiros que pretendessem alterar
seu regime de bens? A questão exigirá reflexão mais profunda que será feita em
momento futuro.
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