E então o STF decidiu o
destino do artigo 1790 do CC? - Parte 1.
Artigo de José Fernando Simão.
Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito Civil pela USP. Professor da
Faculdade de Direito da USP. Advogado e consultor jurídico.
Quousque tandem Catilina abutere patientia nostra?
I – “Prossiga-se o julgamento!”. The show must go on.
Quando Cícero desferiu seus severos e eficazes
ataques contra Lucio Sérgio Catilina, que para ele representava o que a
República romana tinha de pior, sua peroração junto ao Senado se iniciava com
uma pergunta: “até quando Catilina abusarás de nossa paciência?”
A condenação de Catilina representava uma tentativa
de salvar a República de uma crise política sem precedentes. Os destinos de
Roma seriam traçados pelo julgamento, segundo Cícero.
No presente momento histórico, a
constitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil é que está em jogo. O
Supremo Tribunal Federal está prestes a mudar o destino de milhares de famílias
formadas por uniões estáveis em que um dos companheiros faleceu e os bens foram
transmitidos pelo princípio da saisine [1].
Já e chegada a hora de o ministro Dias Tofolli
permitir o prosseguimento do julgamento do Recurso Extraordinário 8.786.94-MG
em que sete ministros já manifestaram seu entendimento pela
inconstitucionalidade do dispositivo.
O povo brasileiro clama pela celeridade do ministro
Tofolli neste momento. Prioridade à finalização do julgamento é que se quer!
II – Uma breve nota histórica: desequiparou-se o
que estava equiparado.
Antes da vigência do atual CC, duas leis regulamentavam
a união estável no Brasil: Lei 8.971/94 e 9.278/96. As leis surgem para
regulamentar o artigo 226, parágrafo 3º da CF pelo qual a família
decorrente da união estável passou a ser protegida.
É importante frisar que por opção do legislador da
década de 1990, os efeitos sucessórios do casamento (artigo 1611 do CC/16) e da
união estável (artigo 2º da Lei 8.971/94 e artigo 7º da Lei 9.278/96)
eram idênticos. Para fins sucessórios, casar ou se unir estavelmente produziam
iguais efeitos.
Assim:
a) deixando o falecido descendentes, o cônjuge ou
companheiro supérstite tinha apenas o usufruto de ¼ dos bens (artigo 1611,
§1º do CC/16 e artigo 2º, I da Lei 8.971/94);
b) deixando o falecido ascendentes, o cônjuge ou
companheiro supérstite tinha apenas o usufruto de 1/2 dos bens
(artigo 1611, §1º do CC/16 e artigo 2º, II da Lei 8.971/94);
c) se o falecido não tivesse descendentes, nem
ascendentes, o cônjuge ou companheiro do falecido herdava a totalidade dos bens
(artigo 1603, III do CC/16 e artigo 2º, III da Lei 8.971/94);
d) o direito real de habitação em favor do cônjuge
do falecido quando casado por comunhão universal de bens decorria da previsão
do artigo 1611, §2º do CC/16 e em favor do companheiro decorria do parágrafo
único do artigo 7º da Lei 9.278/96.
Com o CC de 2002, a igualdade sucessória foi
perdida por força do artigo 1790 do CC. O sistema harmônico e socialmente
aceito passou por um abalo que, conforme reflexões várias que fiz anteriormente
[2], gerou desconforto ao julgador e à
sociedade. Assim:
a) enquanto o cônjuge concorre com os descendentes
em regra, salvo em certos regimes de bens (artigo 1829, I); o companheiro
só concorre quanto aos bens onerosamente adquiridos no curso da união estável
(artigo 1790, caput);
b) o cônjuge tem a reserva da quarta parte se for
ascendente dos herdeiros com quem concorrer [3] (artigo 1832); já o companheiro
terá quinhão igual se for ascendente dos herdeiros [4] ou meio quinhão se não o for
(artigo 1790, I e II);
c) o cônjuge sempre concorre com os ascendentes do
falecido e receberá 1/3 da herança se concorrer com o pai e mãe do morto, ou
1/2 se concorrer com os demais ascendentes (artigo 1.837 do CC); já o
companheiro sempre receberá 1/3 da herança (artigo 1790, III);
d) o cônjuge exclui os colaterais da sucessão recebendo
a totalidade da herança caso não haja descendentes, nem ascendentes
(artigo 1829, III e 1838 do CC); já o companheiro concorre com os
colaterais e recebe 1/3 da herança (artigo 1790, III);
e) o cônjuge tem direito real de habitação
garantido em caso de morte do marido ou da mulher (artigo 1.831 do CC); já
o companheiro não por ausência de menção legal [5].
Nesse sentido, iniciou-se verdadeira batalha pela
declaração de inconstitucionalidade do dispositivo. Em razão da reserva de
plenário, vários tribunais se manifestaram quanto o tema e suas decisões
revelam o desconforto gerado pelo desarmônico artigo 1790.
Enquanto os tribunais de Justiça do Rio Grande do
Sul, São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais e Distrito Federal declararam o dispositivo
constitucional, os tribunais de Justiça do Paraná e do Rio de Janeiro o
declararam inconstitucional.
Então, após quase 14 anos de vigência do CC, o STF
iniciou o julgamento do Século em matéria de sucessões: o artigo 1790 é
efetivamente inconstitucional?
III – Voto do ministro Barroso — fundamento da
inconstitucionalidade
Os fundamentos do voto foram vários e dois merecem
nota.
(a) Não é legítimo desequiparar casamento e união
estável para fins sucessórios, pois a hierarquização é incompatível com a
Constituição Federal.
(b) a diferenciação entre casamento e união estável
pode ser legítima ou arbitrária.
A equivocada hierarquização.
A parte final do artigo 226, § 3º da CF prevê
“devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Essa locução levou alguns
autores e o próprio STJ em diversas decisões a um equívoco na interpretação do
dispositivo. Não criou a CF uma hierarquia entre as formas de família:
casamento não é melhor, nem pior que união estável.
Assim, argumentos utilizados em profusão pelas
decisões do STJ tais como o regime de separação obrigatória deve ser imposto
aos septuagenários em união estável, sob pena de o casamento ser pior que a
união estável, demonstram que há um equívoco interpretativo grave do texto
constitucional.
Na realidade, a Constituição apenas determina ao
legislador que não dificulte a conversão da união estável em casamento, mas não
determina ao cidadão que se case. E nem poderia fazê-lo, pois é vedada a
interferência do Estado nas decisões quanto ao planejamento familiar.
União estável e casamento são formar distintas de
constituição de família, mas não há hierarquia entre elas: não há uma melhor,
nem uma pior.
O fato de não haver hierarquia, conforme leciona
Barroso em seu voto, implica igualdade de tratamento? É isso que responderemos
em nossa próxima coluna da ConJur.
1 At. 1784. Le mort saisit le vif. O morto se prende ao vivo ou em linguagem com certa
dose de ironia: o último suspiro do morto é o primeiro sorriso do vivo.
2 Por todas, “em busca da harmonia perdida”
publicada na obra “Decisões e julgamentos emblemáticos” da Atlas.
3 Segundo orientação da doutrina majoritária,
apenas se for ascendente de todos os herdeiros com quem
concorrer (Enunciado 527 do CJF).
4 Também segundo doutrina majoritária, apenas
se for ascendente de todosos herdeiros com quem concorrer
5 A doutrina salvou o dispositivo por meio de
interpretação sistemática e teleológica para garantir tal direito aos
companheiros no que foi amplamente seguida pelos Tribunais, inclusive pelo STJ.
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