2016: O ANO DA AFETIVIDADE NA
JURISPRUDÊNCIA SUPERIOR BRASILEIRA
Flávio Tartuce[1]
Não há dúvida de que 2016
foi o ano da afetividade na
jurisprudência superior brasileira. Nunca esteve ela tão em voga; nunca foi a
ideia tão aplicada pelos nossos Tribunais Superiores, especialmente pelo Supremo
Tribunal Federal. No plano da nossa Corte Máxima, dois julgados são decisivos
para essas afirmações, com influência para todos os Tribunais Nacionais.
Como primeiro deles, conforme aqui antes expusemos, em 31
de agosto de 2015, o STF iniciou o julgamento sobre a inconstitucionalidade do
art. 1.790 do Código Civil, que trata dos direitos sucessórios do companheiro (STF,
Recurso Extraordinário n. 878.694/MG). Sete
Ministros da Corte alinharam-se à tese do Relator, que tem o seguinte texto: “No
sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes
sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os
casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”. O Ministro Toffoli
pediu vista, o que não nos impede de afirmar que a questão está praticamente
consolidada, para os devidos fins de repercussão geral. É uma questão de tempo o
julgamento final que, para se tutelar a certeza e a segurança das relações
civis, deve ser encerrado o mais rápido possível; reitere-se e clama-se.
Pois bem, o Ministro Relator nesse julgamento construiu o
seu voto, entre outras premissas, destacando a importância da afetividade como
valor jurídico do nosso sistema. Conforme as palavras do Ministro Barroso, “se
o Estado tem como principal meta a promoção de uma vida digna a todos os
indivíduos, e se, para isso, depende da participação da família na formação de
seus membros, é lógico concluir que existe um dever estatal de proteger não
apenas as famílias constituídas pelo casamento, mas qualquer entidade familiar
que seja apta a contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes, pelo
amor, pelo afeto e pela vontade de viver junto. Não por outro motivo, a Carta
de 1988 expandiu a concepção jurídica de família, reconhecendo expressamente a
união estável e a família monoparental como entidades familiares que merecem
igual proteção do Estado. Pelas mesmas razões, esta Corte reconheceu que tal
dever de proteção estende-se ainda às uniões homoafetivas, a despeito da
omissão no texto constitucional” (com destaque).
A segunda decisão que merece relevo, igualmente do Supremo
Tribunal Federal, acabou por firmar a seguinte tese no julgamento da
repercussão geral sobre a paternidade socioafetiva: “a paternidade socioafetiva
declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de
filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos
próprios” (publicada no Informativo n.
840 do STF). Em resumo, destaco que a ementa final proposta pelo Ministro Luiz
Fux teve o apoio dos Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Gilmar
Mendes, Celso de Mello e Cármen Lúcia (oito votos). Foi vencido, em parte, o
Ministro Toffoli, que propunha outra afirmação, no sentido de que o
reconhecimento posterior do parentesco biológico não invalidaria,
necessariamente, o registro do parentesco socioafetivo; admitindo-se, nesses casos,
o registro concomitante da dupla paternidade, inclusive para fins sucessórios. Também
foi vencido o Ministro Marco Aurélio, que se posicionou contra o registro
concomitante.
Apesar da crítica de alguns juristas, vemos a afirmação
de resumo sobre a parentalidade socioafetiva como um grande avanço, como bem
salientado pelo Professor Ricardo Calderón, que sustentou oralmente no feito,
representando o Instituto Brasileiro de Direito de Família como amicus curiae. Aliás, pontue-se que o Professor Calderón escreveu
um dos melhores trabalhos acadêmicos que constroem a afetividade como valor e
princípio do Direito de Família brasileiro (O
princípio da afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar,
2013).
Três aspectos desse último acórdão merecem ser elogiados.
O primeiro deles é justamente o reconhecimento, por vários ministros, de que a
afetividade tem valor jurídico, sendo princípio inerente e imanente à ordem
civil-constitucional brasileira. Nessa esteira, merece destaque trecho do voto
do Ministro Luiz Fux, citando Fachin: “Se o conceito de família não pode ser
reduzido a modelos padronizados, nem é lícita a hierarquização entre as
diversas formas de filiação, afigura-se necessário contemplar sob o âmbito
jurídico todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber:
(i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais (como a
fecundação artificial homóloga ou a inseminação artificial heteróloga – art.
1.597, III a V do Código Civil de 2002); (ii) pela descendência biológica; ou
(iii) pela afetividade. O Código Civil de 2002 promoveu alguns passos à frente
nessa concepção cosmopolita do Direito de Família. Conforme observa o Ministro
Luiz Edson Fachin, o diploma inovou ao reconhecer o direito fundamental à paternidade,
independentemente do estado civil dos pais; a possibilidade de declaração de
paternidade sem que haja ascendência genética; o reconhecimento de filho
extramatrimonial; a igualdade material entre os filhos; a presunção de
paternidade na fecundação artificial, seja ela homóloga ou heteróloga; e a
abertura de espaço jurídico para a construção do conceito de paternidade socioafetiva”.
O segundo aspecto a ser destacado é que o julgamento
consolidou a parentalidade socioafetiva como forma de parentesco civil, nos
termos do art. 1.593 do CC/2002 e do que se retira do último trecho destacado.
Assim, está em situação de igualdade com a paternidade biológica. Ademais, não
há hierarquia entre uma ou outra modalidade de filiação, o que representa um razoável
e correto equilíbrio.
O terceiro e último aspecto de destaque do decisum diz respeito à mutiparentalidade, pois a possibilidade
de múltiplos vínculos de filiação passou a ser admitida pelo Direito
Brasileiro, mesmo contra a vontade do pai biológico ou do pai socioafetivo.
Ficou claro, pelo julgamento, que o reconhecimento do vínculo concomitante é
para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios. Teremos, assim, grandes
desafios com essa premissa, mas é tarefa da doutrina, da jurisprudência e dos
aplicadores do Direito resolver os problemas que surgirem, de acordo com os
casos concretos que se sucedem.
Nota-se que tal decisão do STF supera posição anterior do
STJ, manifestada ao final de 2015, no sentido de não ser possível a imposição
da multiparentalidade, contra a vontade dos envolvidos. Conforme consta da
publicação da ementa do julgado que assim considerou o tema, “cinge-se a
controvérsia a verificar a possibilidade de registro de dupla paternidade,
requerido unicamente pelo Ministério Público estadual, na certidão de
nascimento do menor para assegurar direito futuro de escolha do infante. Esta
Corte tem entendimento no sentido de ser possível o duplo registro na certidão
de nascimento do filho nos casos de adoção por homoafetivos. Precedente. Infere-se
dos autos que o pai socioafetivo não tem interesse em figurar também na
certidão de nascimento da criança. Ele poderá, a qualquer tempo, dispor do seu
patrimônio, na forma da lei, por testamento ou doação em favor do menor. Não se
justifica o pedido do Parquet para
registro de dupla paternidade quando não demonstrado prejuízo evidente ao
interesse do menor” (STJ, REsp 1.333.086/RO, Terceira Turma, Rel. Min. Ricardo
Villas Bôas Cueva, j. 06.10.2015, DJe
15.10.2015).
Entendemos que essa posição anterior do Tribunal da
Cidadania está superada pelo julgamento do STF de setembro de 2016. Resta
claro, pela tese da repercussão geral e pelo voto do Ministro Fux, que é
possível reconhecer o duplo vínculo parental mesmo contra a vontade das partes
envolvidas. Sem dúvida, há um novo paradigma para a matéria, baseado na
afetividade, o que deve influenciar todas as decisões judiciais que surgirem.
Vejamos como a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se comportará a
partir de agora sobre a temática. Passos importantes foram dados.
De toda sorte, não se pode negar que a decisão do STF
também gerou problemas. Dentre esses, destacamos a questão levantada por alguns
juristas a respeito da possibilidade de demandas
frívolas, buscando puramente o patrimônio, contra pais biológicos. Tal
medida passa a ser juridicamente possível, sob o argumento de que a
paternidade, inclusive a biológica, não pode ser irresponsável. Tal aspecto foi bem destacado pelo Ministro Gilmar
Mendes em seu voto, que apontou a existência de um argumento cínico de afastamento do vínculo parental, em hipóteses
tais.
Também nos preocupa a aplicação da tese para a reprodução
assistida heteróloga, o que poderá fazer com que ela se torne inviável, pelo
temor de os doadores de material genético ter o vínculo de parentalidade
reconhecido. Vale lembrar que o Provimento n. 52 do CNJ quebrou o sigilo
relativo aos doadores do material genético na reprodução assistida. Nesse
sentido, o seu art. 2º enuncia que é indispensável, para fins de registro e da
emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos seguintes documentos: a) declaração de nascido vivo – DNV; b) declaração, com firma reconhecida, do
diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi
realizada a reprodução assistida, indicando a técnica adotada, o nome do doador
ou da doadora, com registro de seus dados clínicos de caráter geral e
características fenotípicas, assim como o nome dos seus beneficiários; e c) certidão de casamento, certidão de
conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou
sentença em que foi reconhecida a união estável do casal. Com o surgimento da
decisão do STF, pensamos ser necessário cancelar tal previsão do Provimento n. 52
do CNJ, e outras que igualmente quebram o sigilo dos doadores do material
genético.
De todo modo, como palavras finais, todos esses debates e
todas essas intrincadas questões demonstram que, de fato, o afeto foi o grande
protagonista do ano de 2016 em sede de Direito de Família no Brasil. No próximo
ano, este papel deve continuar a ser desempenhado e até incrementado, pois o
STF deve julgar, entre outros temas, a possibilidade de reconhecimento de
vínculos conjugais e convivenciais concomitantes, também em sede de repercussão
geral (ARE 656.298). Quem viver, verá! Um Grande Natal a todos e um 2017 de
muita saúde, afeto, sucesso e felicidade!
[1]
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP.
Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. Professor da Rede LFG. Diretor do IBDFAM –
Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e
consultor jurídico.
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