ESTATUTO
DA FAMÍLIA X ESTATUTO DAS FAMÍLIAS.
SINGULAR
X PLURAL.
EXCLUSÃO
X INCLUSÃO.
Flávio
Tartuce[1]
O Brasil vive, no presente momento, um grande conflito
ideológico e, como não poderia ser diferente, tal colisão atinge não só os
aplicadores do Direito como também os projetos de lei que tramitam no Congresso
Nacional, especialmente em temas condizentes aos costumes e à família. Como
exemplo desse embate, pode ser citada a tramitação de dois projetos de lei a
respeito do conceito de família no Congresso Nacional.
O primeiro deles, na Câmara dos Deputados, intitulado
Estatuto da Família (PL 6.583/2013), no singular, pretende restringir o
conceito de família aos casamentos e às uniões estáveis entre homens e mulheres
e seus filhos. Nos termos do seu art. 1º, "esta Lei institui o Estatuto da
Família e dispõe sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas
voltadas para valorização e apoiamento à entidade familiar". Em
complemento, enuncia a proposta de art. 2º da norma que "para os fins
desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da
união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou
ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes".
A outra projeção é o
Estatuto das Famílias (PL 470/2013), no plural, em curso no Senado Federal,
originário de proposta formulada pelos juristas que compõem o IBDFAM (Instituto
Brasileiro de Direito de Família) e que, em vários de seus dispositivos, traz
um conceito extensivo de família. Cite-se,
entre tantas regras, a proposta de conceito de união estável constante do seu
art. 61, in verbis: "é
reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas,
configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família". Como se nota, a proposta menciona a
união de duas pessoas, não obrigatoriamente homem e mulher.
Acompanhando os debates que ocorrem na Câmara dos Deputados,
e diante do momento que vive o País, o Projeto de Lei n. 6.583/2013 tem grandes
chances de ser aprovado. Se isso ocorrer, não persistindo eventual veto da
Presidência da República, dois são os caminhos interpretativos para a citada
projeção.
O primeiro deles é
o reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Ora, é sabido que o Supremo
Tribunal Federal concluiu que a união homoafetiva é entidade familiar protegida
pela Constituição Federal, devendo ser aplicadas, por analogia, todas as regras
previstas para a união estável heteroafetiva (julgado na ADPF 132/RJ, publicado
no Informativo n. 625 da Corte, de
maio de 2011). Em complemento, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, logo
após, que é possível o casamento entre pessoas do mesmo sexo, consequência
natural da decisão do Supremo, pois se todas as normas são aplicáveis por
analogia, o mesmo deve ser dito quanto à conversão da união estável ao
casamento, retirada do art. 1.727 do Código Civil (REsp. 1.183.378/RS).
Conforme o voto do Ministro Luis Felipe Salomão nesse acórdão, proferido em
outubro de 2011, “é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção
constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via
única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos
ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora,
a concepção constitucional do casamento – diferentemente do que ocorria com os
diplomas superados – deve ser necessariamente plural, porque plurais também são
as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da
proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a
proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. A fundamentação do
casamento hoje não pode simplesmente emergir de seu traço histórico, mas deve
ser extraída de sua função constitucional instrumentalizadora da dignidade da
pessoa humana. Por isso, não se pode examinar o casamento de hoje como
exatamente o mesmo de dois séculos passados, cuja união entre Estado e Igreja
engendrou um casamento civil sacramental, de núcleo essencial fincado na
procriação, na indissolubilidade e na heterossexualidade”.
Todas essas decisões fizeram o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) editar, em 2013, a Resolução n. 175, que veda às autoridades competentes,
caso dos responsáveis pelos Cartórios de Registro Civil de todo o País, a
recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união
estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Em suma, o casamento
homoafetivo transformou-se em realidade prática do Direito Brasileiro.
No âmbito da doutrina do Direito de Família, para demonstrar
qual a corrente majoritária hoje prevalecente, pontue-se que, na VII Jornada de Direito Civil, realizada
pelo Conselho da Justiça Federal em setembro de 2015, aprovou-se enunciado
segundo o qual é existente e válido o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Cabe
esclarecer que desse evento participaram juristas com as mais variadas visões
sobre o Direito de Família e, mesmo assim, a proposta aprovada conseguiu ampla
maioria, o que demonstra uma sedimentação doutrinária a respeito do tema no
País.
O citado Estatuto da Família, no singular, desconsidera toda
essa evolução. Sim, evolução, pois a
tendência dos países ocidentais é a inclusão dos direitos civis de casais
homossexuais, sem que isso represente qualquer afronta ou ofensa aos direitos
das pessoas que pretendem ter uniões heteroafetivas. Nessa perspectiva, o
projeto já soa totalmente inconstitucional.
Mas não é só. O art. 2º do Projeto de Lei n. 6.583/2013 é
inconstitucional por desconsiderar o conceito de família monoparental previsto
no art. 226, § 4º, do Texto Maior, constituída por um dos
ascendentes e seus descendentes. Como antes se transcreveu, a projeção limita a
família aos pais que vivem com seus filhos, deixando de fora as famílias
monoparentais existentes entre avós e netos.
Sem falar em outras entidades que também não foram
contempladas, caso das famílias mosaico
– de várias origens, oriundas de famílias reconstituídas – e das famílias anaparentais (na expressão
criada por Sérgio Resende de Barros) – famílias
sem pais, formadas por irmãos ou primos que vivem juntos, com intuito comunitário
familiar.
Sabe-se, conforme os escritos de vários constitucionalistas
nacionais, que a Constituição Federal Brasileira de 1988 é inclusiva, e não
exclusiva, afirmação que merece especial atenção quanto tópico que regulamenta
as entidades familiares em rol meramente exemplificativo (art. 226). Assim, não
pode uma lei infraconstitucional limitar o texto superior na concessão de
direitos civis sob pena de flagrante inconstitucionalidade.
Vale dizer, em complemento, que a Lei Maria da Penha já traz
um conceito ampliativo, em seu art. 5º, inciso II, ao estabelecer que a família
deve ser compreendida "como a comunidade formada por indivíduos que são ou
se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa". Essa é a ideia de família que deve prevalecer na realidade
brasileira, na opinião deste articulista, não só para os fins de incidência
dessa lei, mas também de outras normas.
De toda sorte, há um segundo
caminho para a interpretação do Estatuto da Família, qual seja o de
adaptá-lo ao Texto Maior e a toda essa evolução. Por essa ideia, é possível
firmar a premissa segundo a qual o projeto de lei apenas exemplifica algumas
formas de família, sem excluir outras, caso de todas as entidades aqui citadas.
Se for assim, nosso Congresso Nacional perde precioso tempo de trabalho
legislativo, pois as famílias ali previstas já estão amplamente tuteladas, especialmente
por serem maioria no Brasil.
Pensamos que o trabalho a ser desenvolvido é de proteção de
outras constituições famílias, como propõe o Estatuto das Famílias, no plural;
e não o Estatuto da Família, no singular. A inclusão deve prevalecer sobre a
exclusão, pois esse é o sentido da nossa Lei Maior. Como palavras finais, vale
lembrar que a Constituição Brasileira veda a discriminação no seu art. 5º, além
de valorizar a dignidade da pessoa humana no seu dispositivo inaugural. A
projeção no singular deixa esses valores de lado.
[1] Doutor em Direito Civil pela USP. Professor do
programa de mestrado e doutorado da FADISP – Faculdade Especializada em
Direito. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD – Escola Paulista de Direito,
sendo coordenador dos últimos. Professor da Rede LFG. Diretor nacional e
estadual do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado e
consultor jurídico em São Paulo.
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