sábado, 28 de outubro de 2017

DIREITO À POSSE DA LAJE. ARTIGO DO DES. MARCO AURÉLIO BEZERRA DE MELO.

DIREITO À POSSE DA LAJE.
Fonte: GEN Jurídico.
Marco Aurélio Bezerra de Melo. Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Mestre pela UNESA. Professor da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro.
O direito real de laje[1] na forma como veio positivado pela lei 13.465/17 (art. 1510-A e segs, CC) pode não atingir com a eficiência esperada os fins da demanda por regularização fundiária das habitações construídas sobre imóveis alheios nos assentamentos humanos informais, denominados popularmente como favela, palavra que está ligada aos homens que serviram ao exército brasileiro para dizimar os seguidores de Antonio Conselheiro na Guerra de Canudos e que receberam como prêmio a possibilidade de construir suas moradias no morro da providência, no Rio de Janeiro. Como no interior da Bahia, onde se dera o extermínio da República de Canudos, existia uma planta chamada faveleira que também era comum no referido morro, os veteranos de guerra passaram a chamar o morro da providência de morro da favela e o vocábulo se espalhou pelo Brasil e, até mesmo por razões históricas, não pode ser visto com sentido depreciativo.
Essa frustração pode se verificar porque o denominado direito de laje surge de modo informal, em tais comunidades, a partir de ocupações irregulares que não possuem assento registral imobiliário, afastando-se da premissa trazida pelo artigo 1510-A, do Código Civil. O citado dispositivo legal prevê que o direito real de laje se assentará a partir da existência de propriedade formal da construção-base, fato que, repise-se, não ocorre na realidade das favelas. Vejamos a redação do citado dispositivo legal, verbis: “o proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo.”.
A venda de lajes traz consigo um problema sério no tocante à segurança da comunidade, sobretudo pelos riscos de desabamento e outros acidentes, mas não há como negar que diante do crescente déficit de moradias diante da explosão demográfica mundial, aumento da expectativa de vida e, algumas vezes, a própria falta de comprometimento público e da sociedade com essa questão, a verticalização das favelas acabou sendo a solução encontrada e, para tanto, aquele que, na realidade, é possuidor do solo acaba por alienar o direito de construir sobre a sua edificação.
Nesse passo, importante reflexão é feita pela professora Cláudia Franco Corrêa[2] em sua alentada tese de doutorado sobre a questão quando diz que a ‘“laje’ está relacionada a uma das formas que o povo da favela instituiu para contornar a falta de recursos, de infraestrutura pública e as dificuldades geológicas e topográficas dos morros e brejos (CAMPOS, 2010: 1), como também articula sua participação em um intenso mercado de circulação de riquezas. Ou seja, o ‘direito de laje’, ao ser instrumentalizado, traz à tona o sentimento de pertencimento ao cidadão, uma vez que o favelado, ao articular tais meios econômicos, participa da mobilidade social, consequência do Estado Democrático de Direito, em que todos possuem possibilidades de participar das riquezas sociais e econômicas”.
Não se nega a importância da regularização registral do direito de laje, fartamente utilizado em comunidades de baixa renda, mas não é possível importar o modelo do direito de sobrelevação português ou suíço com algumas adaptações, pois em tais países não nos parece que a favela seja uma forma de habitação tão ricamente utilizada como ocorre no Brasil. Com efeito, a favela pode ser um problema de qualidade de vida nas cidades em razão da falta de equipamentos urbanos e comunitários como o saneamento básico, assim como a própria violência, mas forçoso é reconhecer que é esse o sistema que possibilitou a milhões de brasileiros, assalariados ou não, afirmarem a dignidade de demorar em alguma habitação para si e sua família e, nesse sentido, a favela é credora do reconhecimento constitucional (arts. 1º, III, 3º, 6º e 182, da CF).
A indigitada aquisição de posse natural que se desdobrará em comunidades de milhares e milhões de pessoas, muitas vezes, é marcada no início com vícios objetivos da posse (art. 1.200, CC) e com má-fé (art. 1.201, CC). A admitir o direito posto na novel legislação, primeiro deverá ser regularizada a situação do dominus soli para, ato contínuo, proceder ao registro do direito real daquele que comprou a laje de seu vizinho em um esforço econômico e jurídico que não se justifica diante da longevidade dessas posses imemoriais.
O fato é que enquanto tal situação jurídica não se verificar, a relação estabelecida entre os moradores será meramente obrigacional e a segurança jurídica de tais transações estará entregue à boa-fé das pessoas que a entabulam e ao registro de tal venda junto à Associação de Moradores[3], local que costuma intervir no negócio jurídico e arquivá-la entre os seus documentos a fim de atribuir a necessária efetividade ao contrato. A pessoa jurídica criada serve, não raro, para amparar e conferir segurança jurídica aos atos de alienação da laje, funcionando como um órgão registral de fato e informal, à guisa de um direito consuetudinário.
Nesse ângulo de visada, colaboramos muito timidamente com a professora Cláudia Franco na elaboração de anteprojeto de lei que se encontra em fase de estudos pelo Governo Federal e que objetiva acrescer ao direito real de laje a possibilidade de reconhecimento de usucapião especial pró-moradia, tendo objeto o espaço aéreo possuído por aquele que gratuita ou onerosamente adquiriu a posse da laje para nela edificar a sua moradia.
Importante assinalar que esse expediente seria utilizado na reurbanização de interesse social (REurb-S) estabelecida pela lei 13.465/17, verbis:
Capítulo V – DO DIREITO REAL DE LAJE
Seção I – Da Laje
Seção II – DA POSSE DA LAJE
Art. 1.510-F A posse do direito de laje constitui direito real autônomo, conferindo ao seu titular o direito de usar, gozar, dispor e reaver.
Art. 1.510-G Aquele que possuiu como seu espaço aéreo não superior a duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma, não contemplando as demais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário da construção-base, tem a concessão do direito real de laje para fins de moradia ou direito real de laje, desde que não seja concessionário ou proprietário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O direito de que trata este artigo pode ser cedido a título gratuito ou oneroso e transferível por ato inter vivos ou causa mortis.
§ 2º Os sucessores legítimos e testamentários não ficam impedidos de exercer o direito previsto no parágrafo anterior ainda que sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
§ 3º O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 4º O direito de que trata este artigo pode ser objeto de alienação fiduciária, em conformidade com a Lei nº 9.514/97.
§ 5º Para fins de REURB S, o direito de que trata este artigo dependerá de comprovação de que unidade imobiliária atende a critérios de habitabilidade, entendendo-se como tal, as condições da edificação ao uso a que se propõe dentro da realidade em que se situa o imóvel, não sendo necessária certidão de habite-se.
§ 6º A unidade imobiliária deverá ter saída própria, direta ou indiretamente para via pública e possuir designação numérica ou alfabética para fins de identificação.
Oxalá que tal positivação futura possa contribuir para a importante, sob o prisma econômico e social, regularização fundiária das favelas.

[1] Sobre o tema: Rodrigo Mazzei. O Direito de Superfície e a Sobrelevação (O Direito de construir na edificação alheia ou direito de laje). 2011. Revista Jurídica, 409, p. 67/84.
[2] Cláudia Franco Corrêa. Controvérsias entre o “direito de moradia” em favelas e o direito de propriedade imobiliária na cidade do Rio de Janeiro, 2012, p. 154.
[3] Cláudia Franco Corrêa. Obra citada, p. 169.

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