A Lei da Guarda Compartilhada (ou alternada) obrigatória - Análise crítica da lei 13.508/2014 - Parte I
Fonte: Migalhas.
Para esta segunda
coluna do Migalhas resolvi tratar da nova legislação relativa à guarda
compartilhada, promulgada ao final de 2014. Penso ser muito importante, neste
momento, aprofundar a abordagem do preceito emergente, o que será feito em dois
textos. Conforme tenho destacado em aulas e exposições sobre o assunto,
parece-me que o novo diploma tende a intensificar os conflitos familiares nos
próximos anos, gerando ainda mais problemas.
Como é notório,
após cuidar da separação judicial e do divórcio, o Código Civil de 2002 elenca
as regras referentes à "Proteção da Pessoa dos Filhos". Sobre esse
tema, a codificação material traz disposições importantes, em especial nos seus
arts. 1.583 e 1.584. Tais artigos foram profundamente modificados pela lei
11.698, de 13 de junho de 2008. Sucessivamente, houve nova alteração por meio
da lei 13.058, de 22 de dezembro de 2014, originária do projeto de lei
117/2013, denominada por alguns como Lei da Guarda Compartilhada
Obrigatória. O projeto aprovado modificou outros comandos da codificação
privada, mas aqui vamos nos ater aos citados arts. 1.583 e 1.584 do Código
Civil.
Voltando a momento
anterior ao Código Civil de 2002, a lei 6.515/1977 estabelecia a influência da
culpa na fixação da guarda. De início, o art. 9.º da Lei do Divórcio prescrevia
que, no caso de dissolução da sociedade conjugal pela separação judicial
consensual, seria observado o que os cônjuges acordassem sobre a guarda dos
filhos. No caso de separação judicial fundada na culpa, os filhos menores
ficariam com o cônjuge que não tivesse dado causa à dissolução, ou seja, com o
cônjuge inocente (art. 10, caput). Se pela separação judicial fossem
responsáveis ambos os cônjuges, os filhos menores ficariam em poder da mãe,
salvo se o juiz verificasse que tal solução pudesse gerar prejuízo de ordem
moral aos filhos (art. 10, § 1.º). Sendo verificado pelo juiz que os filhos não
deveriam permanecer em poder da mãe nem do pai, seria possível deferir guarda a
pessoa notoriamente idônea, da família de qualquer dos cônjuges (art. 10, §
2.º, da Lei do Divórcio).
No sistema da
redação original do Código Civil de 2002, preceituava o art. 1.583 que, no caso
de dissolução da sociedade conjugal, prevaleceria o que os cônjuges acordassem
sobre a guarda de filhos, no caso de separação ou divórcio consensual. Na
realidade, a regra completava a proteção integral da criança e do adolescente
consagrada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990). Não
havendo acordo entre os cônjuges, nos termos da redação original da codificação
material, a guarda seria atribuída a quem revelasse as melhores condições
para exercê-la (art. 1.584 do CC/2002). O parágrafo único deste comando legal
enunciava que a guarda poderia ser atribuída a terceiro, se o pai ou a mãe não
pudesse exercê-la, de preferência respeitada a ordem de parentesco e a relação
de afetividade com a criança ou o adolescente.
Percebe-se que o
Código Civil de 2002, em sua redação original, mudou o sistema anterior de
guarda, uma vez que a culpa não mais influencia na determinação do cônjuge que
a deterá, ao contrário do que constava do art. 10 da Lei do Divórcio, norma
revogada tacitamente pela codificação privada, diante de incompatibilidade de
tratamentos. Assim, constata-se que não houve qualquer impacto da Emenda do
Divórcio (EC/2010) sobre a guarda, eis que a culpa já não mais gerava qualquer
consequência jurídica em relação a tal aspecto.
A expressão melhores
condições, constante da redação originária do art. 1.584 do CC/2002, sempre
foi como uma cláusula geral. E para preenchê-la a doutrina nacional
reiteradamente propunha o atendimento do maior interesse da criança e do
adolescente. Nesse contexto, Maria Helena Diniz, com base na doutrina francesa,
sempre apontou a existência de três critérios, três referenciais de
continuidade, que poderiam auxiliar o juiz na determinação da guarda, caso
não fosse possível um acordo entre os cônjuges. O primeiro deles seria o continuum
de afetividade, pois o filho deve ficar com quem se sente melhor, sendo
interessante ouvi-lo, sempre que isso for possível. O segundo é o continuum
social, pois a criança ou adolescentedeve permanecer onde se sente melhor,
levando-se em conta o ambiente social, as pessoas que o cercam. Por fim, cabe
destacar o continuum espacial, eis que deve ser preservado o espaço do
filho, o "envoltório espacial de sua segurança", conforme ensina a
professora Titular da PUC/SP1. Justamente por esses três critérios é
que, geralmente, quem já exercia a guarda unilateral sempre teve maiores
chances de mantê-la. Até então a guarda unilateral com regulamentação de
visitas era a única opção prevista expressamente em lei
Reafirme-se que
com a edição da lei 11.698, de 13 de junho de 2008, as redações dos arts. 1.583
e 1.584 do CC/2002 sofreram alterações substanciais. De início, o art. 1.583, caput,
passou a expressar que a guarda será unilateral ou compartilhada. Assim,
seguindo o clamor doutrinário, a lei passou a consagrar, expressamente,
a última modalidade de guarda. Nos termos legais, a guarda compartilhada
é aquela em que há a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e
deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder
familiar dos filhos comuns. O § 1.º do art. 1.583 define a guarda unilateral
como a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua. Esses
diplomas não sofreram qualquer mudança com a lei 13.058/2014.
Porém, determinava
o § 2.º do art. 1.583 do CC/2002 que a guarda unilateral seria atribuída ao
genitor que revelasse as melhores condições para exercê-la, o que era repetição
da anterior dicção do art. 1.584 do CC/2002. Todavia, o preceito foi além, ao
consagrar alguns critérios objetivos para a fixação dessa modalidade de guarda,
a saber: a) afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; b)
saúde e segurança; c) educação. Tais fatores estavam na linha dos
parâmetros expostos por Maria Helena Diniz, o que demonstrava que a lei apenas
confirmava o que antes era apontado pela doutrina nacional.
Com a lei
13.058/2014 o diploma passou a estabelecer que "na guarda compartilhada, o
tempo de custódia física dos filhos deve ser dividido de forma equilibrada com
a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses
dos filhos". Em suma, nota-se que os critérios antes mencionados foram
retirados, com a revogação dos três incisos do art. 1.583, § 2º, da codificação
privada; o que não nos parece salutar.
Ademais, com o
devido respeito ao pensamento contrário, a este colunista a novel legislação
traz outros sérios problemas. O principal deles é a menção a uma custódia
física dividida, o que parece tratar de guarda alternada e não de guarda
compartilhada. Continuamos a seguir a ideia de que a guarda alternada é
aquela em que o filho permanece um tempo com o pai e um tempo com a mãe,
pernoitando certos dias da semana com o pai e outros com a mãe. A título de
exemplo, o filho fica sob a custódia do pai de segunda a quarta-feira; e da mãe
de quinta-feira a domingo. Essa forma de guarda não é recomendável, eis que
pode trazer confusões psicológicas à criança, como bem desenvolve a juspsicanalista
Giselle Câmara Groeninga em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. Como ela destaca, a guarda alternada
acaba por privilegiar mais o que os pais vêem como seus direitos, "sem
considerar os seus reais efeitos para o desenvolvimento da criança"2.
Dois desses direitos
dos pais, notoriamente egoísticos, podemos destacar de imediato. O
primeiro é o de reduzir ao máximo os encontros com o antigo consorte, o que é
facilitado pela existência de dois lares. O segundo diz respeito aos pleitos de
redução ou exoneração de valores alimentícios, o que vem ocorrendo perante o
Poder Judiciário sob a vigência da nova lei.
Em verdade, a nova
norma até pode parecer bem intencionada, sob o argumento de trazer a ideia de igualdade
parental, superando o modelo monista da guarda unilateral. Porém, ela
verdadeiramente esconde em seu conteúdo uma armadilha jurídica, como um Cavalo
de Tróia Legislativo. A propósito, conforme destacado por Waldyr Grisard
Filho na última Revista Informativa do IBDFAM, ainda em comentários ao projeto
que gerou a lei, "a norma projetada não só mantém vivos alguns dos velhos
equívocos à sua atribuição como ressuscita outros, de nefasta memória, como a
guarda alternada, nunca disciplinada em nosso ordenamento jurídico. Assim, a
guarda compartilhada permanece na berlinda"3.
Pertinente lembrar
que a guarda alternada é também chamada de guarda do mochileiro, pois o
filho sempre deve arrumar a sua mala ou mochila para ir à outra casa. Não se
trata de um mito, mas de uma realidade que deve ser mais profundamente
debatida. Se existem estudos de psicanalistas e juristas que apontam não
existir problema na alternância de lares; também existem outros relevantes
trabalhos que afirmam o contrário, como o da professora Giselle Groeninga, aqui
exposto. Se há séria divergência, especialmente em aspectos meta-jurídicos,
melhor seria não mudar a lei, ou pelo menos debater a então proposta
legislativa mais profundamente, o que não ocorreu. Efetivou-se uma tentativa de
solucionar o problema da prevalência da guarda unilateral com a instituição
generalizada da guarda alternada, o que é lamentável.
Continuamos a
afirmar que a alternância de guarda e de lares é altamente inconveniente, pois
a criança perde seu referencial, recebendo tratamentos diferentes quando na
casa paterna e na materna. O problema não diz respeito a gênero, mas a espaço e
a convivência social. Qual será a turma de amigos do filho? Onde ele irá
desempenhar as atividades complementares, esportivas e intelectuais, para a sua
formação? Estudará na escola próxima a qual dos lares? Conviverá mais com os
filhos dos amigos do pai ou da mãe? Como irá trabalhar psicologicamente as
informações recebidas nos dois ambientes? Em grandes cidades e em situações
concretas de pais que moram em municípios distintos a nova lei é praticamente
inaplicável.
Acrescente-se que
o equívoco foi percebido pelo Professor José Fernando Simão, que participou da
audiência pública no Senado Federal de debate do então projeto de lei n,
117/2013. Conforme artigo publicado ao final de 2014, pontua o jurista:
"Este dispositivo é
absolutamente nefasto ao menor e ao adolescente. Preconiza ele a dupla
residência do menor em contrariedade às orientações de todos os especialistas
da área da psicanálise. Convívio com ambos os pais, algo saudável e necessário
ao menor, não significa, como faz crer o dispositivo, que o menor passa a ter
duas casas, dormindo às segundas e quartas na casa do pai e terças e quintas na
casa da mãe. Essa orientação é de guarda alternada e não compartilhada. A
criança sofre, nessa hipótese, o drama do duplo referencial criando desordem em
sua vida. Não se pode imaginar que compartilhar a guarda significa que nas duas
primeiras semanas do mês a criança dorme na casa paterna e nas duas últimas
dorme na casa materna. Compartilhar a guarda significa exclusivamente que a
criança terá convívio mais intenso com seu pai (que normalmente fica sem a
guarda unilateral) e não apenas nas visitas ocorridas a cada 15 dias nos finais
de semana. Assim, o pai deverá levar seu filho à escola durante a semana,
poderá com ele almoçar ou jantar em dias específicos, poderá estar com ele em
certas manhãs ou tardes para acompanhar seus deveres escolares. Note-se que há
por traz da norma projetada uma grande confusão. Não é pelo fato de a guarda
ser unilateral que as decisões referentes aos filhos passam a ser exclusivas
daquele que detém a guarda. Decisão sobre escola em que estuda o filho,
religião, tratamento médico entre outras já é sempre foi decisão conjunta, de
ambos os pais, pois decorre do poder familiar. Não é a guarda compartilhada que
resolve essa questão que, aliás, nenhuma relação tem com a posse física e
companhia dos filhos"4.
Sabe-se que o
desenvolvimento do ser humano desde os anos iniciais de vida demanda muito
tempo e muita dedicação. Empenho, disciplina e esforço são
palavras de ordem para os pais, havendo exigências sobre as figuras paternas e
maternas que não eram realidade no passado. Já é difícil a construção de laços
afetivos sociais, internos e externos, em um lar apenas. Imaginem em dois. A
sociedade contemporânea exige papéis dos pais como se fossem Super-homens e
Mulheres-Maravilhas, quando a realidade nos coloca muito distantes das
fantasias de super-heróis.
Repise-se que a guarda
compartilhada ou guarda conjunta representa a hipótese em que pai e
mãe dividem as atribuições relacionadas ao filho, que irá conviver com ambos,
sendo essa sua grande vantagem. Esse é o conceito que permanece no art. 1.583,
1º, do Código Civil, como antes exposto. Todavia, há uma total contradição da
norma ao estabelecer, no § 3º do mesmo diploma, a ideia de divisão de moradias,
comum na alternância da guarda. O paradoxo também pode ser retirado do inciso
II do art. 1.584 da própria codificação, ora modificada, ao enunciar que a
guarda compartilhada poderá ser decretada pelo juiz, em atenção a necessidades
específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao
convívio deste com o pai e com a mãe. Distribuir o tempo de convívio igualmente
é comum na guarda alternada. Para sanar o conflito existente na própria lei,
talvez a solução futura seja fixar a verdadeira guarda compartilhada,
sem considerar a alternância de lares que o comando introduziu.
Expostas essas
ideias e conceitos, fica a reflexão final deste texto: a lei 13.508/2014 é uma
norma sobre guarda compartilhada obrigatória ou uma lei sobre guarda
alternada obrigatória? Tenho respondido pelo segundo enquadramento. Por
isso o título desta coluna, a demonstrar um dos dois principais problemas do
preceito emergente. O segundo problema, a obrigatoriedade propriamente dita,
será abordado no nosso próximo artigo.
__________
1DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil
Brasileiro. Volume 5. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 28ª edição, 2010,
p. 347-348.
2GRONENIGA, Giselle Câmara. Direito à convivência entre
pais e filhos: análise interdisciplinar com vistas à eficácia e sensibilização
de suas relações no Poder Judiciário. Tese de doutorado. Acesso em 11 de fevereiro de 2015.
3GRISSARD FILHO, Waldyr. A guarda compartilhada na
berlinda. Revista do IBDFAM n. 18. Belo Horizonte: IBDFAM, Janeiro de 2015, p.
12.
4SIMÃO, José Fernando. Guarda compartilhada
obrigatória. Mito ou realidade? O que muda com a aprovação do PL 117/2013.
Acesso em 28 de novembro de 2014.
Flávio Tartuce é doutor
em Direito Civil pela USP. Professor do programa de mestrado e doutorado da
FADISP - Faculdade Especializada em Direito. Professor dos cursos de graduação
e pós-graduação em Direito Privado da lato sensu da EPD - Escola
Paulista de Direito, sendo coordenador dos últimos. Professor da Rede LFG.
Diretor nacional e estadual do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de
Família. Advogado e consultor jurídico em São Paulo
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