quinta-feira, 27 de julho de 2017

DA INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO NA MAIS RECENTE JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA. COLUNA DO MIGALHAS DO MÊS DE JULHO DE 2016

Da Indenização por abandono afetivo na mais recente jurisprudência brasileira. 
Flávio Tartuce
A responsabilidade civil no Direito de Família projeta-se para além das relações de casamento ou de união estável, sendo possível a sua incidência na parentalidade ou filiação, ou seja, nas relações entre pais e filhos. Uma das situações em que isso ocorre diz respeito à responsabilidade civil porabandono afetivo, também denominado abandono paterno-filial ou teoria do desamor.
Trata-se de aplicação do princípio da solidariedade social ou familiar, previsto no art. 3º, inc. I, da Constituição Federal, de forma imediata a uma relação privada, ou seja, em eficácia horizontal.Como explica Rodrigo da Cunha Pereira, precursor da tese que admite tal indenização, "o exercício da paternidade e da maternidade – e, por conseguinte, do estado de filiação – é um bem indisponível para o Direito de Família, cuja ausência propositada tem repercussões e consequências psíquicas sérias, diante das quais a ordem legal/constitucional deve amparo, inclusive, com imposição de sanções, sob pena de termos um Direito acéfalo e inexigível" (Responsabilidade civil por abandono afetivo. In: Responsabilidade civil no direito de família. Coord. Rolf Madaleno e Eduardo Barbosa. São Paulo: Atlas, 2015, p. 401).
O jurista também fundamenta a eventual reparabilidade pelos danos decorrentes do abandono na dignidade da pessoa humana, eis que "o Direito de Família somente estará em consonância com a dignidade da pessoa humana se determinadas relações familiares, como o vínculo entre pais e filhos, não forem permeados de cuidado e de responsabilidade, independentemente da relação entre os pais, se forem casados, se o filho nascer de uma relação extraconjugal, ou mesmo se não houver conjugalidade entre os pais, se ele foi planejado ou não. (...) Em outras palavras, afronta o princípio da dignidade humana o pai ou a mãe que abandona seu filho, isto é, deixa voluntariamente de conviver com ele" (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Responsabilidade Civil por abandono afetivo. In: Responsabilidade Civil no Direito de Família, ob. cit., p. 406). Para ele, nesse seu texto mais recente, além da presença de danos morais, pode-se cogitar uma indenização suplementar, pela presença da perda da chance de convivência com o pai.
O doutrinador e presidente nacional do IBDFAM atuou na primeira ação judicial em que se reconheceu a indenização extrapatrimonial por abandono filial. Na ocasião, o então Tribunal de Alçada de Minas Gerais condenou um pai a pagar indenização de duzentos salários mínimos a título de danos morais ao filho, por não ter com ele convivido (Apelação Cível n. 408.550-5 da Comarca de Belo Horizonte. Sétima Câmara Cível. Presidiu o julgamento o Juiz José Affonso da Costa Côrtes e dele participaram os Juízes Unias Silva, relator, D. Viçoso Rodrigues, revisor, e José Flávio Almeida, vogal).
Filiando-se ao julgado mineiro e à possibilidade de indenização em casos semelhantes também está a Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, uma das maiores juristas deste País na atualidade, expoente não só do Direito de Família, mas também da Responsabilidade Civil. De acordo com as suas lições, "a responsabilidade dos pais consiste principalmente em dar oportunidade ao desenvolvimento dos filhos, consiste principalmente em ajudá-los na construção da própria liberdade. Trata-se de uma inversão total, portanto, da ideia antiga e maximamente patriarcal de pátrio poder. Aqui, a compreensão baseada no conhecimento racional da natureza dos integrantes de uma família quer dizer que não há mais fundamento na prática da coisificação familiar (...). Paralelamente, significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Poder-se-ia dizer, assim, que uma vida familiar na qual os laços afetivos são atados por sentimentos positivos, de alegria e amor recíprocos em vez de tristeza ou ódio recíprocos, é uma vida coletiva em que se estabelece não só a autoridade parental e a orientação filial, como especialmente a liberdade paterno-filial" (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva nas relações entre pais e filhos: além da obrigação legal de caráter material. Disponível em: . Acesso em 21 jun. 2017).
Entretanto, como se sabe, o Superior Tribunal de Justiça reformou a primeva decisão do Tribunal de Minas Gerais, afastando o dever de indenizar no caso em questão, diante da ausência de ato ilícito, pois o pai não seria obrigado a amar o filho. Em suma, o abandono afetivo seria situação incapaz de gerar reparação pecuniária (STJ, Recurso Especial 757.411/MG, Relator Ministro Fernando Gonçalves; votou vencido o ministro Barros Monteiro, que não conhecia do recurso. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator. Data do julgamento: 29 de novembro de 2005).
De qualquer modo, tal decisão do Tribunal da Cidadania não encerrou o debate quanto à indenização por abandono afetivo, que permanece intenso na doutrina. Cumpre destacar que me posiciono no sentido de existir o dever de indenizar em casos tais, especialmente se houver um dano psíquico ensejador de dano moral, a ser demonstrado por prova psicanalítica. O desrespeito ao dever de convivência é muito claro, eis que o art. 1.634 do Código Civil impõe como atributos do poder familiar a direção da criação dos filhos e o dever de ter os filhos em sua companhia. Além disso, o art. 229 da Constituição Federal é cristalino ao estabelecer que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Violado esse dever e sendo causado o dano ao filho, estará configurado o ato ilícito, nos exatos termos do que estabelece o art. 186 do Código Civil em vigor.
Quanto ao argumento de eventual monetarização do afeto, penso que a Constituição Federal encerrou definitivamente tal debate, ao reconhecer expressamente a reparação dos danos morais em seu art. 5º, incs. V e X. Aliás, se tal argumento for levado ao extremo, a reparação por danos extrapatrimoniais não seria cabível em casos como de morte de pessoa da família, por exemplo.
A propósito, demonstrando evolução quanto ao tema, surgiu, no ano de 2012, outra decisão do Superior Tribunal de Justiça em revisão à ementa anterior, ou seja, admitindo a reparação civil pelo abandono afetivo. A ementa foi assim publicada por esse Tribunal Superior:
"Civil e Processual Civil. Família. Abandono afetivo. Compensação por dano moral. Possibilidade. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/1988. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado –, importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido" (STJ, REsp 1.159.242/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24/04/2012, DJe 10/05/2012).
Em sua relatoria, a julgadora ressalta, de início, ser admissível aplicar o conceito de dano moral nas relações familiares, sendo despiciendo qualquer tipo de discussão a esse respeito, pelos naturais diálogos entre livros diferentes do Código Civil de 2002. Desse modo, supera-se totalmente a posição firmada no primeiro julgado superior sobre o tema, especialmente o que foi desenvolvido pelo então Ministro Asfor Rocha, da impossibilidade de interação entre o Direito de Família e a Responsabilidade Civil.
Para a Ministra Nancy Andrighi, ainda, o dano extrapatrimonial estaria presente diante de uma obrigação inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a ideia do cuidado como valor jurídico, com fundamento no princípio da afetividade, a julgadora deduz pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo abandono afetivo, expondo frase que passou a ser repetida nos meios sociais e jurídicos: "amar é faculdade, cuidar é dever". Concluindo pelo nexo causal entre a conduta do pai que não reconheceu voluntariamente a paternidade de filha havida fora do casamento e o dano a ela causado pelo abandono, a magistrada entendeu por reduzir o quantum reparatório que foi fixado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais) para R$ 200.000,00 (duzentos mil reais).
Penso que esse último acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça representa correta concretização jurídica do princípio da solidariedade; sem perder de vista a função pedagógica ou de desestímulo que deve ter a responsabilidade civil. Sempre pontuei, assim, que esse último posicionamento deve prevalecer na nossa jurisprudência, visando também a evitar que outros pais abandonem os seus filhos.
De todo modo, fazendo uma pesquisa mais atual, posterior ao último aresto superior, notei que há ainda grande vacilação jurisprudencial na admissão da reparação civil por abandono afetivo, com ampla prevalência de julgados que concluem pela inexistência de ato ilícito em casos tais, notadamente pela ausência de prova do dano.
Trilhando esse caminho, de acordo com a primeira orientação do Tribunal da Cidadania, na Corte Estadual que despertou o debate, deduziu-se que "por não haver nenhuma possibilidade de reparação a que alude o art. 186 do CC, que pressupõe prática de ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de reparação" (TJMG, Apelação Cível n. 1.0647.15.013215-5/001, Rel. Des. Saldanha da Fonseca, julgado em 10/05/2017, DJEMG15/05/2017).
Na mesma linha, sem prejuízo de muitas outras ementas de negação do ilícito: "a pretensão de indenização pelos danos sofridos em razão da ausência do pai não procede, haja vista que para a configuração do dano moral faz-se necessário prática de ato ilícito. Beligerância entre os genitores" (TJRS, Apelação Cível n. 0048476-69.2017.8.21.7000, Teutônia, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Luís Dall’Agnol, julgado em 26/04/2017, DJERS 04/05/2017). De todo modo, pode ser notada certa confusão técnica no último decisum, pois não é o ilícito que é elemento do dano moral, mas vice-versa.
Por outra via, concluindo pela ausência de prova do dano, entendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo que "a jurisprudência pátria vem admitindo a possibilidade de dano afetivo suscetível de ser indenizado, desde que bem caracterizada violação aos deveres extrapatrimoniais integrantes do poder familiar, configurando traumas expressivos ou sofrimento intenso ao ofendido. Inocorrência na espécie. Depoimentos pessoais e testemunhais altamente controvertidos. Necessidade de prova da efetiva conduta omissiva do pai em relação à filha, do abalo psicológico e do nexo de causalidade. Alegação genérica não amparada em elementos de prova. Non liquet, nos termos do artigo 373, I, do Código de Processo Civil, a impor a improcedência do pedido" (TJSP, Apelação n. 0006195-03.2014.8.26.0360, Acórdão n. 9689092, Mococa, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. J. B. Paula Lima, julgado em 09/08/2016, DJESP 02/09/2016).
Em complemento, e mais recentemente, o Tribunal gaúcho aduziu que "o dano moral exige extrema cautela no âmbito do direito de família, pois deve decorrer da prática de um ato ilícito, que é considerado como aquela conduta que viola o direito de alguém e causa a este um dano, que pode ser material ou exclusivamente moral. Para haver obrigação de indenizar, exige-se a violação de um direito da parte, com a comprovação dos danos sofridos e do nexo de causalidade entre a conduta desenvolvida e o dano sofrido, e o mero distanciamento afetivo entre pais e filhos não constitui, por si só, situação capaz de gerar dano moral" (TJRS, Apelação Cível n. 0087881-15.2017.8.21.7000, Porto Alegre, Sétima Câmara Cível, Relª Desª Liselena Schifino Robles Ribeiro, julgado em 31/05/2017, DJERS 06/06/2017). Na pesquisa que realizei, em junho de 2017, constatei que muitos julgamentos seguem a última frase da ementa, segundo a qual o mero distanciamento físico entre pai e filho não configura, por si só, o ilícito indenizante.
Diante desse panorama recente, recomendo que os pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados, inclusive com a instrução ou realização de prova psicossocial do dano suportado pelo filho. Notei que os julgados estão orientados pela afirmação de que não basta a prova da simples ausência de convivência para que caiba a indenização.
Acrescente-se que no próprio Superior Tribunal de Justiça existem acórdãos recentes que não admitem a reparação de danos por abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade. Desse modo, julgando "alegada ocorrência de abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade. Não caracterização de ilícito. Precedentes" (STJ, AREsp 1.071.160/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJE 19/06/2017). Ou, ainda, "a Terceira Turma já proclamou que antes do reconhecimento da paternidade, não há se falar em responsabilidade por abandono afetivo" (STJ, Agravo Regimental no AREsp n. 766.159/MS, Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJE09/06/2016).
Em suma, parece que a doutrina contemporânea foi bem festiva em relação à admissão da reparação imaterial por abandono afetivo, em especial após o julgamento do REsp 1.159.242/SP, em 2012. Porém, no âmbito da jurisprudência, há certo ceticismo, com numerosos julgados que afastam a indenização. Muitos deles o fazem também com base na existência de prescrição da pretensão, tema a ser tratado no futuro, neste mesmo canal.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

NOVO ARTIGO DE CARLOS EDUARDO ELIAS DE OLIVEIRA

Prezados Amigos do Blog.

Vale também a leitura de um novo artigo do Consultor Jurídico do Senado Carlos Eduardo Elias de Oliveira, sobre as novas modalidades de condomínio instituídas pela Lei 13.465, de 2017.

Vejam em http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos_convidados.

Abraços a todos.


Professor Flávio Tartuce

domingo, 16 de julho de 2017

ARTIGO SOBRE O DIREITO DE LAJE. CARLOS EDUARDO ELIAS DE OLIVEIRA

Prezados Amigos do Blog.

Sugiro a leitura do importante artigo de Carlos Eduardo Elias de Oliveira, sobre o Direito de Laje.

O autor é Consultor Jurídico no Senado Federal e participou da elaboração da recente Lei 13.465/2017, que trouxe várias alterações para o Direito das Coisas.

Vejam em http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos_convidados.

Vale muita a pena a leitura.

Bons estudos a todos.


Professor Flávio Tartuce

sexta-feira, 14 de julho de 2017

DIREITO REAL DE LAJE - FINALMENTE, A LEI! ARTIGO DE PABLO STOLZE E SALOMÃO VIANA

Direito Real de Laje - Finalmente, a Lei!
Pablo Stolze - Juiz de Direito e Professor de Direito Civil
 e Salomão Viana - Juiz Federal e Professor de Direito Processual Civil
A Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, dentre várias providências, disciplinou, em definitivo, o direito real de laje, que, até então, era objeto da Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016.
Cuidaremos, aqui, de passar em revista alguns dos dispositivos do Código Civil que sofreram alterações na sua redação ou foram inseridos no código pela nova lei[1] e, ao final, sempre com os olhos postos nesse recém-nascido direito real, faremos uma breve incursão na Lei de Registros Públicos e no Código de Processo Civil, que também sofreram efeitos decorrentes do novo diploma legal.
O nosso propósito é a elaboração de uma simples resenha, precisa e objetiva, consistente em breves comentários, cotejando-se, quando possível e necessário, a norma anterior com a atual.
Analisemos, pois, algumas importantes novidades.
1. Art. 1.225 do Código Civil.
“Art. 1.225.  (...).
 XII - a concessão de direito real de uso; e  
XIII - a laje.”
Os direitos reais, diferentemente dos pessoais ou obrigacionais (a exemplo de um direito de crédito), não podem derivar, direta e exclusivamente, da manifestação volitiva das partes, uma vez que, dentre as suas características, destaca-se a legalidade.
E foi exatamente em respeito a essa característica que a Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, alterou o texto do art. 1.225 do Código Civil, que apresenta o rol dos direitos reais, para acrescentar, em seu inciso XIII, o direito sobre a laje.
Imaginemos, a título meramente ilustrativo, o sujeito que constrói um segundo andar em sua casa, e, em seguida, transfere o direito sobre o mesmo, mediante pagamento, para um terceiro, que passa a morar, com a sua família, nessa unidade autônoma.
Não se tratando, em verdade, de transferência de “propriedade" - que abrangeria, obviamente, o solo -, este terceiro passa a exercer direito apenas sobre o que se encontra acima da superfície superior da construção original, ou seja, sobre a laje.
O mesmo ocorreria se a transferência, mediante pagamento, tivesse por objeto um pavimento construído abaixo do piso da casa, o que é muito comum acontecer em terrenos inclinados: o terceiro passaria a exercer direito apenas sobre o que se encontra abaixo da superfície inferior da construção original.
Trata-se, portanto, de um direito real sobre coisa alheia - com amplitude considerável, mas que com a propriedade não se confunde -, limitado à unidade imobiliária autônoma erigida acima da superfície superior ou abaixo da superfície inferior de uma construção original de propriedade de outrem.
Com justiça, o excelente FLAVIO TARTUCE[2] adverte que o tema já havia sido enfrentado, em doutrina, por grandes autores brasileiros, a exemplo de RODRIGO MAZZEI e RICARDO PEREIRA LIRA.
2. Art. 1.510-A, “caput”, do Código Civil.
"Art. 1.510-A. O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”.
Houve, aqui, manifesto aprimoramento, em relação ao texto da Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016.
Efetivamente, do texto anterior, que não era preciso, extraía-se a definição do direito de laje como uma “possibilidade de coexistência”.
Com efeito, não se afigura adequado conceituar um direito real como uma “possibilidade”.
Nesse sentido, com razão, já disparava uma flecha crítica OTAVIO LUIZ RODRIGUES JR.:
"Especificamente quanto ao Código Civil, o artigo 25 da MP 759, de 2016, alterou a redação do artigo 1.225 do código, ao incluir o inciso XIII, que institui a ‘laje’ como novo direito real. A laje é definida no novo artigo 1.510-A, de um modo extremamente atécnico. A laje é um direito real que ‘consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo’. Um direito que é uma possibilidade! Trata-se de uma nova categoria, a qual se recomenda ao estudo nos cursos de Filosofia"[3].
Note-se, ainda, que o legislador admitiu, expressamente, que este direito poderá ser constituído acima ou abaixo do imóvel, denominado de “construção-base”.
Poderá, pois, haver, a constituição da laje acima da superfície superior ou abaixo da superfície inferior da construção-base, o que vai ao encontro da função social.
3. Art. 1.510-A, §§ 3º e 4º, do Código Civil.
"§ 3º Os titulares da laje, unidade imobiliária autônoma constituída em matrícula própria, poderão dela usar, gozar e dispor.
§ 4º, "A instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou a participação proporcional em áreas já edificadas"
O texto do § 3º permite estabelecer uma dianose diferencial entre o direito de propriedade e o direito real de laje.
Observe-se que, assim como se dá com a superfície - e anteriormente com a enfiteuse - o direito de laje é de ampla dimensão, compreendendo quase todos os poderes inerentes à propriedade, como usar, gozar e dispor.
Mas não poderá, o titular da laje, pretender “reivindicar” o imóvel ou exercer direito de sequela, eis que tais poderes emanam apenas do direito de propriedade.
Com isso, por óbvio, não se pode concluir que esteja, o titular da laje, impedido de lançar mão de interditos possessórios.
Outra diferença para a propriedade, especialmente na modalidade de condomínio, é que não há, na laje, direito projetado sobre "áreas comuns”, como jardim e quintal.
É o que se depreende do enunciado do § 4º: "A instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou participação proporcional em áreas já edificadas".
Vale salientar ainda que o novo diploma não faz menção, para a caracterização da laje, aos requisitos “isolamento funcional e acesso independente”, como estava previsto na Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016.
Compreendemos não se exigir mais a exclusividade de acesso, pois, em inúmeros casos, mormente em áreas economicamente menos desenvolvidas, a via de acesso é, comumente, compartilhada.
Todavia, o direito de laje pressupõe, em nosso sentir, em perspectiva funcional, que a unidade esteja isolada da construção original e das eventuais lajes sucessivas, configurando uma célula habitacional distinta, sob pena de se caracterizar como uma mera extensão da propriedade existente.
4. Art. 1.510-A, § 6º, do Código Civil.
§ 6º O titular da laje poderá ceder a superfície de sua construção para a instituição de um sucessivo direito real de laje, desde que haja autorização expressa dos titulares da construção-base e das demais lajes, respeitadas as posturas edilícias e urbanísticas vigentes.
Aparentemente, a norma que se extrai desse texto pôs por terra a restrição prevista na Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016, que impedia “sobrelevações sucessivas”.
PABLO STOLZE, em estudo sobre o tema, já tecia considerações críticas a respeito da restrição então imposta:
"Além disso, dada a autonomia registral que lhe foi conferida, o § 5º da MP admitiu ainda a alienação da laje: ‘as unidades autônomas constituídas em matrícula própria poderão ser alienadas e gravadas livremente por seus titulares, não podendo o adquirente instituir sobrelevações sucessivas, observadas as posturas previstas em legislação local’.
Um ponto, aqui, nos despertou atenção.
Temos certa dúvida quanto ao alcance e constitucionalidade deste dispositivo, na perspectiva do princípio da função social, no que tange à vedação de extensões ou lajes sucessivas.
Uma vez que o legislador cuidou de conceder dignidade legal ao direito sobre a laje, desde que as limitações administrativas e o Plano Diretor sejam respeitados, sobrelevações sucessivas, regularmente edificadas, mereceriam, talvez, o amparo da norma.
Fica o convite à reflexão[4].
Com isso, serão legitimadas inúmeras situações, existentes nas cidades brasileiras, em que lajes sucessivas foram edificadas ao longo do tempo, umas sobre as outras.
Andou bem, aqui, o legislador.
5. Art. 1.510-C do Código Civil.
"Art. 1.510-C. Sem prejuízo, no que couber, das normas aplicáveis aos condomínios edilícios, para fins do direto real de laje, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes que sirvam a todo o edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum serão partilhadas entre o proprietário da construção-base e o titular da laje, na proporção que venha a ser estipulada em contrato:
§ 1º São partes que servem a todo o edifício:
I - os alicerces, colunas, pilares, paredes mestras e todas as partes restantes que constituam a estrutura do prédio;
II - o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso exclusivo do titular da laje;
III - as instalações gerais de água, esgoto, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes que sirvam a todo o edifício; e
IV - em geral, as coisas que sejam afetadas ao uso de todo o edifício.
§ 2º É assegurado, em qualquer caso, o direito de qualquer interessado em promover reparações urgentes na construção na forma do parágrafo único do art. 249 deste Código".

Não havia dispositivo semelhante na Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016.
Em verdade, posto a laje não se confunda com o regime de condomínio, certas normas, de fato, lhe são aplicáveis, na medida em que o concedente e o beneficiário compartilharão uma mesma estrutura física básica.
Note-se que o texto normativo faz referência ao “contrato”, que de fato, deve ser o fato constitutivo mais comum da laje.
Mas nada impede que o direito seja adquirido por meio da usucapião, como anotou PABLO STOLZE:
"Por fim, interessante serão os reflexos do novo regramento no Direito de Família, na medida em que não é incomum o titular da construção original ceder a unidade sobrelevada a um parente, que passa a exercer direito sobre a unidade autônoma.
Dependendo da circunstância, poderá, até mesmo, operar-se a aquisição do direito real de laje por usucapião, observados os requisitos legais da prescrição aquisitiva.
E mesmo que a cessão seja gratuita, a título de comodato, se o cessionário passa a se comportar como titular exclusivo da laje, alterando o seu ‘animus’ e a própria natureza da posse precária até então exercida, poderá, em nosso sentir, consolidar o seu direto sobre a construção sobrelevada (direito real de laje), mediante usucapião, contando-se o prazo de prescrição a partir do momento em que deixa de se comportar como simples comodatário, por aplicação da regra da 'interversio possessionis’[5]."
Nessa linha, caso o contrato seja omisso quanto à proporção da despesa ou, como dito, o direito real haja se constituído por usucapião, caberá ao juiz, não havendo composição extrajudicial, fixar o valor a ser pago por cada um dos sujeitos.
Finalmente, no que toca ao art. 249 do Código Civil, mencionado no § 2º supra, escrevem PABLO STOLZE e RODOLFO PAMPLONA FILHO:
"Atento a isso, o Código Civil admite a possibilidade de o fato ser executado por terceiro, havendo recusa ou mora do devedor, nos termos do seu art. 249:
'Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível.
Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido'.
Comentando esse dispositivo, concernente às obrigações fungíveis, SILVIO VENOSA pontifica:
'É interessante notar que, no parágrafo único, a novel lei introduz a possibilidade de procedimento de justiça de mão própria, no que andou muito bem. Imagine-se a hipótese de contratação de empresa para fazer a laje de concreto de um prédio, procedimento que requer tempo e época precisos. Caracterizada a recusa e a mora, bem como a urgência, aguardar uma decisão judicial, ainda que liminar, no caso concreto, poderá causar prejuízo de difícil reparação'.
Assim, poderá o credor, independentemente de autorização judicial, contratar terceiro para executar a tarefa, pleiteando, depois, a devida indenização, o que, se já era possível ser admitido no sistema anterior por construção doutrinária, agora se torna norma expressa”[6].
6. Art. 176 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos - LRP).
“Art. 176. (…)
§ 9º A instituição do direito real de laje ocorrerá por meio da abertura de uma matrícula própria no registro de imóveis e por meio da averbação desse fato na matrícula da construção-base e nas matrículas de lajes anteriores, com remissão recíproca.” (NR)
Quanto à referência a matrícula, contida no texto do § 9º, vimos, linhas acima, que, de acordo com o enunciado do § 3º do art. 1.510-A, do Código Civil, deverá ser aberta uma matrícula própria para o direito real de laje.
A matrícula, em linhas gerais, consiste no primeiro número de registro do imóvel, a sua “numeração de registro original”.
Cada nova alienação receberá, por sua vez, novo número de registro, mantendo-se a matrícula original.
Já no que toca à alusão a averbação, lembra CARLOS ROBERTO GONÇALVES, "é qualquer anotação feita à margem de um registro, para indicar as alterações ocorridas no imóvel, seja quanto a sua situação física (edificação de uma casa, mudança de nome de rua) seja quanto à situação jurídica do seu proprietário (mudança de solteiro para casado, p. ex.)[7].
Nessa linha, o novo § 9º do art. 176 da LRP está em perfeita consonância com o sistema do Código Civil, explicitando, inclusive, a necessidade "da averbação desse fato na matrícula da construção-base e nas matrículas de lajes anteriores, com remissão recíproca”, previsão que não estava contida na Medida Provisória anteriormente em vigor.
7. Art. 799 do CPC.
“Art. 799 (…)
– requerer a intimação do titular da construção-base, além, se for o caso, do titular de lajes anteriores, quando a penhora recair sobre o direito real de laje.
XI – requerer a intimação do titular das lajes, quando a penhora recair sobre a construção-base.” (NR)
No que se refere ao impactos da disciplina do direito real de laje no âmbito processual, houve, infelizmente, inexplicável falha na atuação legislativa.
Com efeito, ao constatar que as alterações no texto do CPC se limitaram ao enunciado do art. 799, o intérprete pode ter a equivocada impressão de que a mudança teria se restringido ao acréscimo de mais duas situações em que há necessidade de intimação de terceiros a respeito da ocorrência da penhora.
Sucede que o art. 799 do CPC integra, em verdade, um conjunto de dispositivos do qual se extrai um significativo complexo de normas voltadas para a proteção dos interesses de terceiros. Esse conjunto é integrado também pelos arts. 804 e 889 do próprio CPC e os elencos de terceiros constantes em tais dispositivos, malgrado amplo, não é exaustivo.
Por meio do complexo normativo extraível dos mencionados dispositivos estabelece-se um quadro de cuidados a serem adotados quando a penhora recai sobre bens que, de algum modo, sofrem reflexos de uma eventual relação jurídica mantida entre um terceiro e o executado.
Assim, por exemplo, se a penhora recair sobre um bem gravado por hipoteca, o credor hipotecário deve ser intimado da penhora (CPC, art. 799, I) e cientificado, com pelo menos cinco dias úteis de antecedência, a respeito da data marcada para início do leilão (CPC, art. 889, V), caso contrário o ato de alienação será ineficaz em relação a ele (CPC, art. 804, caput).
Situação similar ocorre com todos os terceiros mencionados nos três dispositivos, o que conduz o intérprete à clara – e correta – conclusão de que o mesmo elenco de terceiros que devem ser intimados da ocorrência da penhora (CPC, art. 799), também deve ser cientificado a respeito da data designada para início do leilão (CPC, art. 889) e goza da proteção da norma segundo a qual, havendo alienação do bem sem que os mencionados atos de comunicação tenham sido praticados, a alienação será, quanto ao terceiro, ineficaz.
É por isso que falhou o legislador: os acréscimos feitos no texto do art. 799 deveriam também ser realizados nos enunciados dos arts. 804 e 889. Não o foram, porém, o que é lamentável.
À vista do equívoco cometido, deve o intérprete, portanto, ficar atento e, sempre que se deparar com situações fáticas decorrentes da existência de relação jurídica de direito material entre o executado e terceiro, com algum tipo de reflexo, mesmo indireto, sobre o bem penhorado, lembrar-se de que os elencos mencionados nos arts. 799, 804 e 889, além de não serem exaustivos, comunicam-se entre si.
Diante de todo o exposto, não se pode negar que, comparativamente com o que constava na Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016, a nova Lei nº  13.465, de 11 de julho de 2017, promoveu evidente aperfeiçoamento na disciplina do direito real de laje, embora o legislador, especialmente no âmbito processual, houvesse perdido a oportunidade de tornar o nosso sistema mais preciso e equilibrado.
REFERÊNCIAS
1. GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO. Manual de Direito Civil. São Paulo: Saraiva. 2017.
2. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro - Direito das Coisas - Vol. 5. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
3. RODRIGUES JR., Otávio Luiz. Um Ano Longo Demais e os seus Impactos no Direito Civil Contemporâneo, disponível no: http://www.conjur.com.br/2016-dez-26/retrospectiva-2016-ano-longo-impactos-direito-civil-contemporaneo acessado em 12 de julho de 2017.
4. STOLZE, Pablo. Direito real de laje: primeiras impressõesRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22n. 49365 jan. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/54931>.
5. TARTUCE, Flávio. Medida Provisória Introduz o Direito Real de Laje no Código Civil: http://professorflaviotartuce.blogspot.com.br/2016/12/medida-provisoria-introduz-o-direito.html.


[1] O talentoso amigo e civilista FLÁVIO TARTUCE, em seu blog, passa em revista, didaticamente, as alterações provenientes da nova Lei:https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/noticias/477452385/resumo-das-principais-alteracoes-da-lei-13...
[2] TARTUCE, Flávio. Medida Provisória Introduz o Direito Real de Laje no Código Civil: http://professorflaviotartuce.blogspot.com.br/2016/12/medida-provisoria-introduz-o-direito.html
[3] RODRIGUES JR., Otávio Luiz. Um Ano Longo Demais e os seus Impactos no Direito Civil Contemporâneo, disponível no: http://www.conjur.com.br/2016-dez-26/retrospectiva-2016-ano-longo-impactos-direito-civil-contemporaneo acessado em 12 de julho de 2017.
[4] STOLZE, Pablo. Direito real de laje: primeiras impressõesRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22n. 49365 jan. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/54931>. Acesso em: 12 jul. 2017.
[5] STOLZE, Pablo, texto citado.
[6] GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO. Manual de Direito Civil. São Paulo: Saraiva. 20-17, pág. 236.
[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro - Direito das Coisas - Vol. 5. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, pág. 309.